Mi ojos - Meus olhos

Sobre Enrique González Tuñón

Menos conhecido que seu irmão, o poeta Raúl (1905–1974), Enrique González Tuñon (1901-1943) é daqueles escritores que merecem atenção pela originalidade e pelas contribuições feitas com sua pluma a nomes que tiveram maior repercussão, que também militaram em jornalismo de traços semelhantes, como Roberto Arlt (1900-1942), Jorge Luis Borges (1899-1986), Carlos de la Púa (1898-1950), Nicolás Olivari (1900-1966).

Um dos motivos dessa falta de reconhecimento deve-se também à sua morte prematura aos 42 anos.

A maioria dos seus textos veio à luz inicialmente no periódico Crítica. Colaborou também com as destacadas publicações literárias Proa e Martín Fierro.

Era uma época marcada pela imigração europeia no Rio de la Plata. Migrantes ninavam o sonho de hacerse la América (expressão que, durante muito tempo, na Argentina, usava-se para indicar o rápido enriquecimento).

Seus escritos também influenciaram essa massa de trabalhadores, os anarcossindicalistas, e a sua bagagem cultural e política.

Raúl e Enrique, como vários de seus colegas, não enriqueceram em dinheiro, mas construíram certa idiossincrasia de desprendimento e lucidez na leitura da realidade.

Esses escritores retratistas dessa Buenos Aires de começos do século XX, que marcariam a produção literária, teatral e as letras de muitos tangos, cabem bem na qualificação benjaminiana-baudelairiana de flâneurs. Seus modelos eram essa amálgama de paisanos migrados e misturados com autóctones. Carentes de uma representação já sem cabimento nas próprias características de origem.

A crítica é unânime em destacar uma das marcas dessa produção: o grotesco, caracterizado pela dualidade contraditória; o tratamento sarcástico ou satírico da dor, dos desarraigamentos e fracassos; a leitura da realidade social através dos elementos inanimados, numa sociedade de uma nação nascente, promissora, em formação, cheia de mudanças e, de algum modo, caótica, onde antigos valores morais são questionados o tempo todo. E a aproximação de personagens habitantes das margens sociais, quando não da marginalidade assumida.

Não coincidindo plenamente com as tentativas de identificação dada aos bandos surgidos nas letras portenhas dos 20s (seria anos 1920?) , nem de Florida nem de Boedo (referência aos bairros em que se reuniam os dois grupos), os críticos apresentam esses autores em uma “terceira zona”, tanto à zona da arte-purismo quanto da arte-comprometida, ou nenhuma.

Enrique González Tuñón foi jornalista, pintor, escritor, romancista e roteirista de cinema. Há aqui uma lista quase completa das suas obras escritas e publicadas:

1926: Tangos. Buenos Aires. Editor Manuel Gleizer

1927: El alma de las cosas inanimadas. Buenos Aires. Editor Manuel Gleizer

1928: La rueda del molino mal pintado. Buenos Aires. Editor Manuel Gleizer

1930: Apología del hombre santo. Buenos Aires. Francisco A. Colombo.

1932: El Tirano. Novela sudamericana de honestas costumbres y justas liberalidades. Buenos Aires. Manuel Gleizer; Camas desde un peso. Buenos Aires: Manuel Gleizer.

1933: Las sombras y la lombriz solitaria. Buenos Aires. Manuel Gleizer; El cielo está lejos. Buenos Aires. Manuel Gleizer.

1941: La calle de los sueños perdidos. Buenos Aires: Americana.

Um comentário no jornal La Nación de 12 de outubro de 1927 (pena não constar a assinatura do autor) descreve com justeza e delicada redação as características da escrita de Enrique. Ao opinar sobre volume El alma de las cosas inanimadas, cujo primeiro conto se publica neste número de Continente, a confirmar plenamente o comentário:

...nos sucessos mais triviais se oculta, às vezes, um profundo significado cujo segredo descobrem mais facilmente os espíritos ingênuos, ao desunir os elementos de seculares cristalizações de ideias, que o hábito ou o interesse mantém tenazmente associadas a outras. É a tarefa que realiza o autor deste livro: desassociar ideias que, ao recobrar o seu estado livre, são suscetíveis de entrar em novas infinitas combinações.

Estes motivos bastariam para suscitar interesse, se não existissem outros de igual valor. Originada numa atitude particular face à vida, esta faculdade, derivada de uma habitual maneira desinteressada e livre de contemplar o espetáculo do mundo, por um trânsito quase insensível, leva a confundir numa mesma pessoa o espectador e o objeto. É um desfazimento de todas as coisas, que se presta lucidez à especulação e ocasiona sempre uma dor secreta. Por isso, neste livro de aparente humorismo, oculta-se talvez uma tristeza muito real”. (Tradução nossa) [M.P.]

MIS OJOS

Enrique González Tuñón

Don Agustín, filósofo energúmeno del café de “La Araña”, desalojó de su privilegiada mollera para ubicar en un apólogo, a un pobre hombre insensato que creía en lo sobrenatural y que negaba la realidad externa.

Este hombre insensato del apólogo de don Agustín, aplicó sus ojos, con la ayuda de un sabio italiano apellidado Rissotto, la virtud perforadora de los rayos X.

Y ocurrió que el hombre insensato fué precursor del futurismo y terminó sus días en un manicomio.

Yo padezco también, sin haber conocido el milagroso bisturí de Rissotto, la enorme desgracia de los ojos X.

Poseer ojos X es síntoma de anormalidad. Anormalidad inofensiva para el prójimo y libre del socorrido chaleco de fuerza.

Esto, agregado a las seguridades que me otorgan aquellos que sufren mi cercanía, me convence de que, efectivamente, soy un hombre anormal, una especie de sujeto de laboratorio.

Por tal me tengo desde que mis miradas rectas y certeras se incautaron de un nuevo y simple modelo filosófico, del cual resulta fácil desglosar un bondadoso sentido de la vida.

Sin realizar el misterioso aprendizaje de las ciencias ocultas, por temor de perturbar el sueño, he aquí que mis ojos esclarecieron el alma de las cosas inanimadas y atraparon la ridícula pedantería del hombre que, como yo, habla a menudo en primera persona.

Porque es preciso – ya que nuestros progenitores nos colocaron en el duro trance de vivir encarar – la vida desde un grotesco punto de vista. Y sonreír, frente a las novísimas ediciones de tragedias antiguas, con sonrisa sin repuesto, estereotipada en el rostro de un loco dócil.

El hombre de los ojos X es humanamente bueno porque ve la vida en paños menores y preside lo poco que valemos, la insignificancia de nuestras actitudes y la inutilidad de nuestros malos humores.

Tener ojos X que perforan la materia, es llegar sin esfuerzo al esqueleto. De aquí que no resulte muy regocijante extraviarse en 37 soliloquios con el propio esqueleto, sentado en pose meditativa bajo el huraño ademán del mozo de café o moviéndose cómodamente, como un títere de barracón de feria.

Los ojos X miran el fondo de las cosas. Si no fuera así y vieran al trasluz, permutaría mi posición de periodista por el descansado, lucrativo y noble oficio de tahúr.

Quizá sean los ojos X, consecuencia fatal del mal específico que enloqueció a nuestros ascendientes.

Yo sólo sé que mis ojos X no tienen remedio y que es inútil y tonto pretender distraerlos con el lente ahumado de espectáculos maravillosamente lujuriosos.

Mis ojos X están enfermos de ver siempre un mismo melancólico paisaje de almas.

El día en que se aburran definitivamente y cansados de desnucarse contra las cosas inanimadas vuelvan hacia dentro sus miradas, se decretará la noche eterna en el inacabable bostezo de mi vida.

MEUS OLHOS

Enrique González Tuñón

Dom Agustín, filósofo energúmeno do café “A Aranha”, desalojou da sua privilegiada moleira para colocar num apólogo, um pobre homem insensato que acreditava no sobrenatural e que negava a realidade externa.

Este homem insensato do apólogo de dom Agustín aplicou aos seus olhos, com ajuda de um sábio italiano apelidado de Rissotto, a virtude perfurante dos raios X.

E aconteceu que o homem insensato foi precursor do Futurismo e terminou seus dias num manicômio.

Eu padeço também, sem ter conhecido o milagroso bisturi de Rissotto, a enorme desgraça dos olhos X.

Possuir olhos X é sintoma de anormalidade. Anormalidade inofensiva para o próximo e livre da ajuda da camisa de força.

Isto, somado às garantias que me brindam os que sofrem de minha proximidade, convence-me de que, efetivamente, sou um homem anormal, uma espécie de sujeito de laboratório.

Assim me vejo desde que minhas olhadas retas e certeiras se apossaram de um novo e simples modelo filosófico, do qual resulta fácil deduzir um bondoso sentido da vida.

Sem realizar o misterioso aprendizado das ciências ocultas, por temor de perturbar o sono, tem-se aí que meus olhos debelaram a alma das coisas inanimadas e incorporaram a ridícula pedantaria do homem que, como eu, fala amiúde em primeira pessoa.

Porque é preciso – já que nossos progenitores nos colocaram no duro transe de viver – encarar a vida a partir de um grotesco ponto de vista. E sorrir, face às novíssimas edições de tragédias antigas, com sorrisos sem estepe, estereotipadas no rosto de um louco dócil.

O homem dos olhos X é humanamente bom porque vê a vida em trajes menores e percebe o pouco que valemos, a insignificância das nossas atitudes e a inutilidade de nossos maus humores.

Ter olhos X que perfuram a matéria é chegar sem esforço ao esqueleto. Daí que não resulte muito regozijante se extraviar em 37 solilóquios com o próprio esqueleto, sentado em pose meditativa sob o pouco amigável gesto do garçom do café ou se mexendo comodamente, como um mamulengo de feira.

Os olhos X miram o fundo das coisas. Se não fosse assim e vissem de forma translúcida, trocaria minha posição de jornalista pelo descansado, lucrativo e nobre ofício de fulheiro.

Talvez sejam os olhos X, consequência fatal do mal específico que enlouqueceu nossos ascendentes.

Eu só sei que meus olhos X não têm remédio e que é inútil e tolo pretender distraí-los com a lente esfumaçada de espetáculos maravilhosamente luxuriosos.

Meus olhos X estão doentes de ver sempre uma mesma melancólica paisagem de almas.

No dia em que se entediem definitivamente cansados de desnucar-se contra as coisas inanimadas direcionem para dentro suas miradas, se decretará a noite eterna no infindável bocejo da minha vida.

Sobre o tradutor

Marcelo Jorge Pérez
Nascido em Buenos Aires em 1957. Formou-se em cinema em Avellaneda, Buenos Aires. Doutor em Letras pela UFPE, com tese sobre as literaturas dos povos originários dos Andes Centrais do Peru. Tradutor, professor e realizador cinematográfico.

Autor: Henrique González Tuñon. Tradução: Marcelo Perez