Uma reflexão sobre arte e beleza sob o impacto dos estilhaços do atentado ao Charles Hebdo

Em "Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise"!, a escritora Michèle Petit defende a arte como um meio para catarse diante de traumas

Conversas, alguma terapia e alguma psicanálise tentaram ajudar Catherine a seguir em frente. Mas o que ela precisava mesmo era de beleza. Um oceano para mirar; uma exposição para visitar… Nada mudou sua letargia. Até que se viu diante do quadro O grito, de Munch. “É o grito que eu gostaria de ter dado depois do 7 de janeiro”, disse Catherine, jornalista e ilustradora do periódico francês Charlie Hebdo, cuja redação sofreu um brutal atentado, no dia 7 de janeiro de 2015, cemetido por um grupo terrorista de radicais islâmicos. Catherine só escapou da morte porque, naquele fatídico dia, acordou deprimida por causa de uma desilusão amorosa e se atrasou para chegar ao trabalho. Na porta do prédio, soube por um colega - que também se atrasou porque perdeu o trem - que dois homens armados haviam acabado de entrar no edifício.

O belo encontrado na natureza, na arte, na literatura, na poética podem não reverter traumas como o de Catherine. Mas são um meio para uma catarse necessária, um desabafo, um grito, um expurgo. Ao menos é o que defende a antropóloga francesa Michèle Petit, no livro Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise (Editora 34, 2024). Pesquisadora das práticas de leitura e referência mundial nos estudos sobre a leitura, sobre a função das bibliotecas e dos mediadores culturais nos mais diferentes contextos, Petit recolhe depoimentos de pessoas conhecidas e anônimas para enriquecer o argumento de que a literatura e outras expressões artísticas são ferramentas importantes para reconectar indivíduos com o mundo ao redor, através da imaginação, do sonho, da estética.

Em 192 páginas de uma escrita acolhedora, o livro busca nos fazer crer na extrema utilidade e necessidade da cultura para a vida humana. Cultura esta que, em tempos de crise, costuma ser a primeira na lista de cortes de gastos governamentais.

Parece quase absurdo pensar em arte dentro de um campo de refugiados famintos. Mas a autora recorre a um pensamento do escritor francês François Cheng, de que o universo não precisava ser belo, e de que é a beleza que leva ao sentido. “E a alma humana responde a essa beleza com a criação artística”.

Há comprovação científica para a influência da arte sobre o cérebro humano. Pesquisa do Fundo Nacional para as Artes (National Endowment for the Arts) citada por Petit aponta estudo realizado com alunos norte-americanos, australianos e ingleses de classes economicamente menos favorecidas. O resultado é que a taxa de desistência no ensino médio é de 22% no caso dos que não tiveram contato com atividades culturais. A porcentagem diminui para 4% entre os que conviveram com o fazer artístico desde a infância.

“A beleza constitui uma dimensão humana, não um luxo. E se ela não torna ninguém virtuoso, sua privação pode desencadear uma raiva destrutiva, uma inveja odiosa. Ou uma fragilidade diante do primeiro charlatão que aparece e que, com frases muito bonitas, lucrará com sua angústia”.

Pesquisadora do Laboratório de Dinâmicas Sociais e Recomposição dos Espaços, do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, desde 1972, nos mostra o pensamento do matemático, físico e filósofo Henry Poincaré, um dos fundadores da teoria da relatividade: “o cientista não estuda a natureza porque ela é útil; ele a estuda porque tem prazer nisso, e tem prazer porque ela é bela. Se a natureza não fosse bela, não valeria a pena conhecê-la , a própria vida não valeria a pena ser vivida”.

O neurobiologista francês Jean-Pierre Changeux defende que as interações estéticas são complementares à comunicação. Esse pensamento nos leva a compreender que, quando indivíduos compartilham experiências estéticas como uma oficina artística, por exemplo, tornam-se mais próximos e solidários. Autor de livros como Razão e prazer: Do cérebro ao artista (1997) e O verdadeiro, o belo e o bem - Uma nova abordagem neuronal (2013), Changeux se dedica a pesquisar os efeitos causados no cérebro quando uma artista cria e o prazer de se contemplar uma obra de arte. “Um componente estético emocional também entra em jogo na criatividade científica”.

“A arte não repara nada, mas te escolta até no inferno”, disse o jornalista e sobrevivente do atentado ao Charlie Hebdo, Philippe Lançon. Submetido a sete cirurgias após ficar gravemente ferido, Philippe encarava o bloco cirúrgico com morfina, Bach e literatura. Sobre o episódio, Lançon escreveu o livro O retalho (2018), vencedor do prêmio literário francês Femina.

A antropóloga conta ainda que espaços de leitura em locais pobres ou de refugiados, ou ainda de vítimas de violência permitem aos jovens uma expansão de si mesmos. Nossa necessidade natural de pertencimento a um grupo nos leva ao isolamento quando não nos encaixamos nos padrões: econômicos, de gênero, de classe, de cor, de etnia. Estamos com pressa, sem tempo para ouvir, sem paciência para ler. Perdemos a concentração, o poder de prestar atenção, de contemplar.

Como recuperar a atenção? Petit aprende com Paulo Freire que contemplar a natureza pode ser a solução: “O grande pedagogo brasileiro dizia ter lido a linguagem das mangueiras nas diferentes estações, dos galhos das árvores, da voz do vento e de tantas outras coisas, essa leitura do mundo lhe facilitaria o acesso à leitura de livros”. Não custa tentar.

Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise
Autora: Michèle Petit
Editora: 34
Páginas: 192
Preço: R$ 65,00