Um passeio pela memória na Avenida Beberibe

Escritora pernambucana Claudia Cavalcanti revisita a infância na casa dos avós em Avenida Beberibe, para compor um mosaico que mescla vivências íntimas e memórias histórica e coletiva

Se acaso procurarmos no Google Maps a Avenida Beberibe, na cidade do Recife-PE, o serviço de visualização de imagens por satélite nos fornecerá sua imagem mais recente até o momento: março de 2023. A avenida recifense que dá nome ao segundo livro da escritora Claudia Cavalcanti é o endereço da casa de seus avós, cenário de sua infância e também o ponto de partida para a narrativa memorialística de 88 páginas, editada pela Fósforo (SP). Contudo, a avenida que Claudia nos faz atravessar em seu romance não é a mesma clicada pelo Google, pois é fluida como o rio que corre dentro do seu nome.

Avenida Beberibe foi lançado em março de 2024; portanto, exatamente um ano após o Street View passar pela Avenida Beberibe coletando as imagens que hoje estão disponíveis para o mundo: a via estática com seus ônibus vermelhos, carros populares, muros pichados, e apenas três meses após a Lei Municipal 19.158 alterar seu nome para Avenida Beberibe Santa Cruz Futebol Clube. O romance de Claudia Cavalcanti hackeia esse ponto no mapa, altera o fluxo dos carros, engata-os a marcha à ré, e com um satélite próprio nos leva zoom out, zoom in, do Recife à Alemanha, ou de São Paulo ao Bairro do Pina, dobrando o tempo e o espaço.

A autora abre o romance nos levando pela antiga casa dos seus avós, localizada na Avenida Beberibe. É a casa da infância, esse nosso quintal-mundo. Ainda nessa abertura, examina uma foto antiga de seus pais e dela própria, ainda um bebê. Sem soltar a nossa mão entre os vãos da casa, Cavalcanti adentra um tom ensaístico e, da dinâmica e fisionomia de seus pais, discorre sobre o design de Wilhelm Wagenfeld, ex-aluno da escola de arte Bauhaus, criador de alguns objetos que estão no imaginário e nos lares domésticos até hoje, como um par de temperos, que apoiados em um tipo de canoa, cruzam o tempo lado a lado:

Existem coisas que nos pertencem de maneira ainda mais íntima quanto mais e constantemente lidamos com elas. Acabam se tornando inseparáveis de tão próximas, e nem sabemos direito por quê.

Wilhelm, em transcrição da autora.

Com isso, Claudia nos sinaliza que seu trabalho tratará de uma poética da memória, onde o elo consanguíneo, nossos pais, avós e até mesmo “aqueles estranhos assentados”, ou objetos inanimados, nomes próprios, substantivos, o soundscape da paisagem urbana serão um passado presente na narrativa, um elogio ao vestígio e seus aspectos alteritários escritos com lirismo: “a memória não se livra do crepitar de dados sobre a madeira”, diz, ao lembrar-se das partidas de gamão com a sua avó.

Essa travessia delicada entre a rememoração da vida íntima da autora até a vida de outros personagens, passando pela memória histórica e pela memória coletiva é um entrecruzamento que será traçado até o fim do livro, bem como o uso do recurso iconográfico, ora de fotos do seu álbum de família, ora de imagens de acervos públicos, e até mesmo fotos que não existem, mas que estão lá, reveladas por ela.

É assim que examinamos com a autora uma foto do poeta Paul Celan, sua esposa Gisele e seu filho, o pequeno Eric, em sua casa em Paris, aparentemente felizes, antes das sombras dos anos seguintes recaíram sobre aquela família, “a vida toma rumos previsíveis, as fotos congelam os improváveis”, escreve Cavalcanti. Da maneira como avizinha as coisas, nos parece até que as fotos dos casais e seus bebês figuram em quadros de uma mesma parede, lado a lado.

Ou que, ao sairmos da casa na Avenida Beberibe para tomarmos um banho na Praia de Boa Viagem (ainda deserta de tubarões) e passarmos pelo viaduto que recobre o Forte das Cinco Pontas ainda podemos ver o militante Gregório Bezerra sentado no pátio depois de ser torturado pelos militares nos primeiros dias depois do golpe de 64. Mesmo local onde em 1825 Frei Caneca foi executado a tiros e hoje funciona o Museu da Cidade do Recife, no Bairro de São José. A cidade e suas muitas camadas, território palimpsesto, nos termos de André Corboz.

A ideia da superposição de tempos em um mesmo espaço também encontra esteio no que diz Ítalo Calvino, quando este defende que uma cidade abriga muitas outras cidades. Posto que há a cidade como a vemos, a cidade desperta, e outras, ocultas, em ecos, mas evocadas por algumas chamadas à lembrança, ou pela memória involuntária, como os famosos biscoitinhos do pequeno Proust.

Afinal, como não ver, pergunta Pierre Nora, nessas biografias de anônimos, nessas micro-histórias, um meio de nos levar a aprender que as massas não se formam de maneira massificada?

Assim, vemos no livro o estado de Pernambuco e alguns elementos marcantes de sua história recente, como a passagem do Graf Zeppelin, os boatos de Tapacurá, o declínio da indústria têxtil, e também as suas feridas coletivas, como o seu passado escravista. E, numa mesma malha, elementos que habitam o universo da autora adulta (Claudia é germanista e tradutora) como o já citado poeta Paul Celan, os escritores alemães Heinrich e Thomas Mann, o Bairro de Higienópolis, em São Paulo, e da Claudia criança, entre os décadas de 1960 e 1970, como o desenho National Kid, os animaizinhos do quintal da casa de sua família, o som do carretel de costura da sua avó, o oitão da casa da infância.

Essa malha costurada de elementos individuais e coletivos, imbricados, quando tecida pela voz poética, desperta a subjetividade de cada um, a cada leitura. Para Elizabeth Sarlo, “a linguagem liberta o caráter mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou do seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum”.

Essa urdidura forma uma temporalidade que, cada vez que se repete, volta a se atualizar. Em continuum. Aqui, não é preciso voltar à casa do passado para pedir de volta a infância, como Pedro Nava em seu Galo das trevas, pois os escombros já deram lugar a um não lugar, infinito, com flores de gelo na janela. Como o disquinho azul com o qual a autora tão bem escolhe para encerrar o romance: girando, girando, girando no breu dentro de nós.

Renata Santana é escritora, atriz, jornalista, bibliotecária e mestre em Informação, Memória e Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFPE.