Um noir brasileiro em terra portuguesa

O pernambucano Álvaro Filho, radicado em Lisboa, lança romance policial noir que retrata os conflitos cotidianos entre os portugueses e os imigrantes brasileiros

No romance O Mau Selvagem, de Álvaro Filho, um imigrante brasileiro, aspirante a escritor, trabalha numa livraria em Lisboa, onde ouve os relatos sobre os feitos de um antigo funcionário, conhecido justamente pelo apelido de Mau Selvagem. Uma pessoa que desde sempre não cedeu ao papel inferior que alguém como ele, indo tentar a vida em uma nação estrangeira, colonizadora do seu país natal, pudesse aceitar. O Mau, de acordo com os colegas de trabalho, era o extremo oposto da ideia servil do colonizado de séculos passados. Ser um “bom” selvagem nunca esteve nos planos desse homem, que investia toda a sua fúria nos patrões e clientes portugueses, ao menor sinal de humilhação sofrido por ele ou pelos compatriotas funcionários da livraria.

O fato é que este homem desaparece sem deixar rastro e torna-se, aos poucos, uma obsessão no livreiro. Surge, então, a ideia de ele escrever um livro sobre esse personagem enigmático, sem rosto, de muitas histórias mirabolantes. O enredo se desenvolve a partir de uma pegada policial, noir, ao mesmo estilo dos livros que ele, o aspirante, lê e se identifica, inclusive trabalhando na seção dedicada ao gênero na livraria.

É regra comum dos romances policiais alguns ingredientes que tornam a experiência de leitura prazerosa, como os finais dos capítulos com pontas soltas e viradas inesperadas, ao estilo dos melhores autores policiais clássicos. O romance de Álvaro tem esses ingredientes, mas reforçado, sobretudo, na ideia da busca por uma obsessão. Enquanto investiga, o narrador acaba escrevendo a história. O famoso livro dentro do livro. O personagem central, e autor da obra dentro da obra, vai desenrolando o novelo, ligando um ponto a outro, sem deixar aparente as sutis conexões.

O narrador faz paralelos entre o Brasil, Portugal e a história conturbada entre os dois povos, desde períodos de ocupação até a forte imigração de cidadãos brasileiros nos tempos recentes. No meio disso tudo, ainda há espaço para falar sobre literatura policial com alusões a autores como Hammett, Chandler, Poe e Fante; e detetives como Philip Marlowe, Arturo Bandini, Dupin, entre outros, de gêneros diversos. Um conto de Borges, aliás, dá sentido à sua busca. Serve até como leve dica aos jovens escritores que tentam uma voz própria na ficção.

O mau selvagem é um romance onde o personagem-narrador fica no encalço dessa figura mítica, quase na busca por uma entidade sobrenatural. Ele vai encontrando pistas como cartas escondidas no piso da pensão onde mora (onde, não por acaso, o outro também morou) e resolvendo enigmas, montando, assim, seu quebra-cabeças. Uma das peças que faltam é, justamente, saber se ele está vivo ou não.

Os personagens que trabalham na livraria têm papel importante na trama, como a balconista-psicóloga, Bárbara, baiana que tem um leve flerte com o livreiro, e o Velho, especialista em filosofia, que lhe dá conselhos quase como que saídos das histórias de ficção, além de alguns outros colegas de trabalho e clientes.

O Mau Selvagem é um romance irônico e hilariante. Recorre a componentes do gênero, como uma chave misteriosa, um cobiçado cofre e uma loira fatal – a mulher do Mau. No andamento da trama, o narrador começa a adotar o mesmo comportamento do alvo de sua busca. O estranho que habita no Mau Selvagem e que também passa a habitá-lo. As mesmas atitudes, como uma espécie de maldição, a exemplo do antigo selvagem que agora quer ser ele mesmo o colonizador, ou do novo rico brasileiro, que ocupa o território português maciçamente. O protagonista começa a duvidar de si mesmo. Que busca é essa que ele está empreendendo? Se pergunta em determinado momento. Tentando encontrar o outro, começa, na verdade, a reencontrar a si mesmo.

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