Um forte instinto de vida em Rui Couceiro

Escritor português lança romance 'Baiôa sem data para morrer', que traz à lembrança Pedro Páramo, de Rulfo

O avanço da comunicação de massa alterou o modo como acessamos as histórias. Com isso, também se acentuaram as diferenças em muitos pontos, inclusive entre “contar” e “narrar”, e naquilo a hoje se chamar de “romance” e “narrativa”. Quanto a essa última, a retórica dos políticos tratou de estragar todo o sentido.

Com a imprensa, aparece, de forma desajeitada, a figura do leitor. Com o tempo, ele tira de cena a figura arcaica do ouvinte, filho da tradição oral, da experiência tradicional.

Nesse ponto reside a leitura do romance Baiôa sem data para morrer, do português Rui Couceiro: essa tal experiência.

Walter Benjamim (1892-1940), no artigo “O narrador: observações sobre a obra de Nikolai Lescow”, tradução de Sérgio Paulo Rouanet (1934-2022), anuncia uma tragédia em andamento: a perda de um tipo de conhecimento obtido por meio dos sentidos: a comunicabilidade. Diz Benjamim: “No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e, sim, mais pobres em experiência comunicável”.

Ainda para sitiar ou situar melhor o leitor/ouvinte sobre algumas diferenças entre termos, explico melhor: o narrador se parece com alguém distante, o viajante que tem muita coisa a contar. Diferente daquele, o contador de histórias, o camponês, o beradeiro, o periférico, o sedentário, preso à comunidade narrativa arcaica de onde nunca saiu.

Em busca da verdade

Rui Couceiro é um narrador preocupado com a verdade. Isso se nota desde as epígrafes no romance. A verdade sobre a qual se declina é de uma grandeza na qual a narrativa, se estendida, culmina na morte, como diz Hemingway.

Seu pueblo se situa no Alentejo profundo, arcaico, esse mundo beradeiro. É aquele “amontoado de branco e telhas escurecidas que nunca interessaram a romancistas ou poetas, a aldeia sem história ou tradição chamada de Gorda-e-Feia” (pág. 14). O tempo do seu romance é um lento processo de morrer: quase dois anos de duração. Ou 127 capítulos. Seus fantasmas vivem como os ex-combatentes mencionados por Benjamin e descritos pelo narrador: “Todos os dias estavam lá, parados, sem falar”.

A história é atual, se passa em 2015. O personagem central desse romance, o arcano desse universo, se chama Joaquim Baiôa. Um homem do povo. A voz do romance, ou as vozes, a polifonia, é orquestrada por um professor, de uns 35 anos, enfim, um estrangeiro, alguém em busca do passado, da hoje muito cultuada pela classe média “ancestralidade” de tudo.

Há o tema recorrente do retorno, da nostalgia, mas, nesse romance, o conflito do narrador se faz em uma volta introjetada, digamos, ele a realiza no lugar (sobretudo) da mãe e do pai. Nisso reside sua autoridade: na substituição. Seu sofrimento é por procuração. Numa análise psicanalítica, esse “enviado” seria incumbido de lidar com situações difíceis, conflitos emocionais como o medo e a culpa, que até ali desconhece. Desejos e memórias também são emprestados, verá o leitor (ou se verá neles o leitor), se sua leitura encontrar a mesma entrada nessa aldeia. Ou seja, enquanto o professor vive uma experiência introjetada, o leitor desse romance é convidado a uma experiência projetada, onde se veja mais a si que aos personagens.

Entre o urbano e o rural, o estranho e o familiar, o passado e o presente, esse personagem termina envolvido por uma ideia mágica de reconstrução ou ressurreição.

Tecnicamente, o professor criado por Rui Couceiro se aproxima de um narrador, onde ele conta essa experiência ou ela é contada pelos outros, em um resultado todo válido para o romance.

O autor aplica bem essas mudanças de chave, porque ali está o narrador, disposto à troca, à comunicação, tanto quanto está o romancista, encalacrado, o indivíduo ilhado, sem muita disposição para conhecer mais sobre o mundo, quando olha para o céu e não vê muitas camadas.

As camadas estão na linguagem. O tempo todo sabemos: o narrador é também leitor. E se dirige, muitas vezes, a quem porventura o leia. Ele escreve “este texto”, ler/escreve aquelas memórias. Escrevê-las faz parte de sua transformação. Sua experiência emocional não é direta. Em si, pouco resulta enquanto vive as circunstâncias, mas narrá-las é mais viver que viver. Assim funciona a psique de um romancista. É no contar que aparece, enfim, sua verdade.

Entre os vivos mortos

A aldeia Gorda-e-Feia, de Rui Couceiro, pode lembrar a Comala, de Rulfo, como a Serra Morena, de Os Malaquias, de Andrea Del Fuego, especialmente quando emula traços do realismo mágico para buscar sua atmosfera de mistério ou horror psicológico e existencial.

A lembrança de Pedro Páramo é anotada por Alberto Manguel, em comentário na quarta capa do livro do Rui. Embora eu não tenha visto tantos ecos assim, sabemos quanto o Páramo influenciou até mesmo grandes nomes de ontem&sempre, do boom, como García Márquez, Carlos Fuentes e Julio Cortázar. Pedro Páramo é também uma das inspirações para o autor queer Justin Torres, no seu novo romance Blackouts, vencedor do National Book Award de Ficção (2023), nos Estados Unidos. O livro sairá em breve pela Random House.

Porém, embora ao final alquebrado e em ruínas, sofrendo de ataques de ausência e lapsos de memória, como sofrem ex-comb  atentes, o Joaquim Baiôa de Couceiro não é o típico moribundo como o Páramo de Juan Rulfo ou o Juan Gay, no leito de morte, de Torres.

Pelo contrário, Baiôa está ligado a um forte instinto de vida e busca recuperar o vitalismo e alguma glória de Gorda-e-Feia, alcançada o tempo inteiro pela morte, que arrasta todos aqui e ali.

Talvez haja no velho Caieiro Baiôa, de Couceiro, traços do Édipo-Rei, de Sófocles, tentando salvar sua Tebas da maldição da esfinge. Mas sem heroísmos ou recompensas. Disposto a visitar oráculos, com o professor, no caso o santuário de São Gonçalo, à procura da cobrição da verdade. São muitas leituras possíveis.

O início da narrativa é lento. Subtende-se a emulação do ritmo impregnante no qual se vive em Gorda-e-Feia. É propositalmente descritivo. No curso, a história se acelera mais, quando a morte mais galopa, e é nesse ponto que o narrador vai ganhando alguma transcendência, ou alguma “filosofia”, e isso quer dizer mais dúvidas, para, ao fim, encontrar fugazes nirvanas, onde “esperanças e medos tantas vezes se cruzam no espírito humano” (pág. 378).

Seus dilemas se estabelecem em duas verdades menos esotéricas e mais estatísticas: teorias sobre o acaso e o destino. Do meio para o fim do romance, ele se transforma nesse indivíduo envolvido na mentira do autoanalisado, do leitor de autoajuda, ratinho perfeito para os consultórios de psiquiatria ou psicanálise. Nesses pontos, e como exemplo o melhor emblema é o capítulo “Um homem de sonho” (pág. 375), o romance volta a uma velocidade mais lenta.

As frases do narrador são elaboradas como as da pessoa ansiosa. Os períodos são longos. Há pensamentos intrusivos o tempo todo. É uma pessoa preocupada em não ser bem-compreendida ou não ser levada a sério. Ansiosos são assim: mesmo falando a verdade, carregam o discurso de tantos detalhes para construir alguma verossimilhança, que parecerem mentirosos. Suas emoções precisam parecer complexas. Esse narrador de Rui Couceiro é certamente alguém doente de ansiedade: gasta o tempo em confissões, todo na esperança de ser ouvido e compreendido.

Mas quanto a isso, ele e nós somos iguais. Essa é uma das experiências possíveis de alguém retirar dessa leitura, se não é aquele tipo de leitor que tudo sabe.

Ao fim, Baiôa sem data para morrer é uma história de autoengano e fuga do confronto direto com os sofrimentos. Cujo castigo será viver ou relembrar até o fim de vidas que não são a sua.

Se houvesse uma cena para além do final, poderíamos ver esse narrador, de volta à casa, em Lisboa, igual ao alter ego de Raul Seixas (1945-1989), na letra de “Ouro de tolo”, sentar-se: “no trono de um apartamento/ Com a boca escancarada/ Cheia de dentes/ Esperando a morte chegar”.

Assim deve lhe alcançar a indesejada das gentes, gorda e feia, como devem saber todos que, como nós, da aldeia, a pudemos ver um dia.

Enquanto escapamos, escrevemos e lemos romances.

Dois aspectos editoriais

O livro alcançaria mais o público no Brasil se a editora o “traduzisse” para o português brasileiro. Autores de cá precisam ser traduzidos por lá. Quando do contrário, o que ocorre? Baixa o José Saramago em todos os escritores portugueses publicados no Brasil?

O volume tem mancha gráfica apertada. Para se ler próximo às margens internas é preciso quase escangalhar o livro. Tive ganas de parti-lo à faca ao meio e arrancar as orelhas para conseguir melhor conforto ao passar as páginas. É pesado. Com meia horinha de leitura no ônibus ou no sofá, pesa, fácil, mil quilos.

Ainda bem, para os leitores menos musculosos, que há a versão digital.

Sidney Rocha é romancista e contista, autor de O inferno das repetições, Flashes, A estética da indiferença, O destino das metáforas e outros livros.