Memória é dor

A velhice e o passado são persona non grata em "A violência gentil", de Daniel Longhi, que lida com o contraditório e a “metanoia”

No escritório do advogado Augusto Baldemar, o barulho do ar-condicionado velho neutraliza qualquer outro som que tente entrar em sua sala. Ou qualquer vontade de mudança que se atreva a aparecer em sua cabeça. Os clientes reclamam da temperatura. “Que sala fria, doutor.” O cérebro inerte de Augusto, já domesticado e manso de tanto ouvir reclamações sobre baixas temperaturas e direitos trabalhistas negados, de repente desperta ao ouvir o nome de sua falecida mãe, a também advogada Judite Weberbauer. “Alguns nomes vibram em frequências tectônicas.”

Após cinco anos da mãe morta em condições incomuns, o chão parece se mexer e, com ele, os pensamentos do nosso protagonista, “homem gordo e careca de meia-idade, com segredos em todos os bolsos, arrastando-se em campo aberto”. A mãe, aquela figura esfíngica por quem sente um amor edipiano. Judite invade sonhos proibitivos de desejos eróticos do filho. “Sonho é neurose condensada.” Sob a pele de Judite habita uma mulher ainda desconhecida para Augusto. “Preciso de memória. Eu e o passado ignoramos um ao outro por tempo demais.”

O primeiro romance do recifense radicado em São Paulo Daniel Longhi, A violência gentil (Editora Cachalote) lida com o contraditório. O que parece “civilizado”, inofensivo como uma rotina massacrante (pleonasmo?), com o passar do tempo; com a chegada tão brusca quanto lenta da velhice; com a revisão da memória guardada que essa narrativa nos conta, se mostra brutal, torturante. As neuroses causadas pelo ambiente familiar tão aparentemente amável em superfície quanto profundamente cruel no subterrâneo dos sentimentos.

A sensação de fracasso que chega aos 50 anos tende a culpar alguém: a mulher, Tereza, que se divorcia de Augusto após ler mensagens dele com a amante, Mirella. A culpa também pode ser do sócio e amigo tão masculinista quanto Otávio, que supostamente poderia ter impedido o desejo de mudança de Augusto. Resta a ele a companhia frequente de uma garrafa de uísque Chivas 12 anos e das prostitutas, porque o patriarcado não o ensinou a lidar com a solidão. O sócio e amigo Otávio não é diferente. “Obrigar um homem a ser pai é arrastar uma pedra pra cima de um morro que não acaba”. Não, foi a família a culpada. “Você se lembra do que foi crescer naquela casa? A tensão. Todo momento de alegria seria retaliado. O silêncio como antessala da próxima gritaria.”

Afasta-se do filho Theo como um covarde. Acha que ele estará melhor sem o pai acovardado. O pai que diz que fotografia – profissão seguida por Theo – não é memória. “Memória convida monstros. Aprendi a deixá-la quietinha, trancada no quarto, saindo apenas para serviços muito específicos.” Memória é dor. “E por que molhar os pés? Por que seguir quietinho pela margem, seco, salvo, sem assaltos?.”

Como água mole em pedra dura, o leitor pode resistir a princípio ao jeito tosco masculinista do protagonista, com diálogos e pensamentos repugnantes do repertório tipicamente machista. É assim quando fala de um disco que “pega mulher sozinho”; ou quando faz analogia ao personagem mais sexista do cinema: “Não trate um martini como você trata suas mulheres, Mr. Bond”. Mas com o passar das 352 páginas do livro, surgem tiradas engraçadas e reflexões ponderadas. “A violência gentil do homem de família, acreditar que é ele a maior vítima do mal que causa”, escreve o narrador-escritor, como se estivesse expiando culpa. Talvez chegar à casa dos três dígitos de páginas tenha sido um caminho cansativo.

Dividido em três partes, o livro fala do presente-consequência antes de chegar ao passado-fato e, na terceira parte, com as “metanoias” e vozes dadas às mulheres da história, a obra chega ao seu melhor momento. Sentindo-se vítima e vilã, Judite sempre carrega a família nas costas. “Arrasto a família por metade do mundo pela chance pequena de entender as transformações que me atravessam.”

Em muitos momentos, quase nos confundimos se estamos diante de uma leitura com viés político de direita. Talvez o protagonista, sim. O livro, nem tanto. Talvez pelo caráter quase surreal que se apresenta em trechos como o que fala de uma empresa que “reforma” personalidades. Lembra imediatamente um passado tão recente quanto igualmente absurdo: a cura gay. Os exageros religiosos de agora também são referenciados no romance. Um homem sem neuroses aparentes se apaixona por uma fervorosa cristã e passa a ser tão misericordioso, que vê no amor um ato egoísta, a ponto de desmanchar noivado e se livrar totalmente dos bens materiais.

Tudo tem a ver com memória. O designer de interiores Jânio Palmira levou uma demissão pelas costas porque a mente se esvaziou. Mas a moléstia só se dá no trabalho. Fez exames, rituais, consultou medicinas alopáticas e ancestrais e nada. O que seria? “Esquecer tem sempre razão. Às vezes é um hábito, às vezes é um tique. Mas tem sempre razão.”

A velhice e o passado são persona non grata que rondam quase todo o romance. “O passado quanto mais distante, mais envolve perigos em seu manejo. Você acha que conhece suas esquinas, suas ruas, mas elas mudaram desde que você as deixou pela última vez.” Basta tentar olhar para o umbigo e não conseguir por causa da barriga grande. Basta passar as mãos pelos cabelos ralos.

Daniel, servidor público, mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Chicago, com textos publicados pela Chicago Policy Review, nos presenteia com outro mal-estar necessário para chacoalhar memórias inertes afora e, com isso, leva a reflexões bem contemporâneas: fascismo, preconceito, nazismo e uma tortura dos tempos ditatoriais. “Você já arriscou o vislumbre do quão pequeno você é, Augusto? (...) A gente surge e some da terra sem fazer barulho, acreditando com todas as forças que há valor em nossa "rota particular do nada a lugar nenhum.”