Túlio Carella, drama e revolução na América Latina

Álvaro Machado revela em livro a amplitude da produção e atuação do escritor, dramaturgo e diretor teatral argentino, que viveu no Recife, cuja dimensão precisa ser reconhecida e apreciada

O dramaturgo e escritor argentino Tulio Carella é quase uma lenda na memória do universo queer da cidade do Recife. Essa relevância nasceu graças ao livro Orgia, onde ele, usando o heterônimo de Lucio Ginarte, contou, em forma de diário íntimo, como foi sua vida na capital pernambucana quando aqui morou de março de 1960 a março de 1961. No livro, publicado no Brasil pela primeira vez em 1968, sob os auspícios do dramaturgo e também escritor Hermilo Borba Filho, de quem se tornara grande amigo, Carella descreve o seu cotidiano como professor convidado do curso de teatro da então Escola de Belas Artes da Universidade do Recife. A maior parte da obra, no entanto, não é dedicada a assuntos intelectuais e acadêmicos, mas a narrar suas aventuras sexuais com homens das classes populares com quem ele estabeleceu laços afetivos em suas andanças pelas ruas do centro da cidade.

Embora fosse casado, no Recife, Tulio Carella viveu sua bissexualidade sem freios. Esse aspecto de sua personalidade acabou sendo o que mais ficou conhecido sobre ele entre nós, principalmente pelos diversos estudos sobre sexualidade que tomaram os seus diários como exemplo. É o caso do livro Devassos do Paraíso do escritor João Silvério Trevisan, no qual ele apresenta uma história da homossexualidade no Brasil e um capítulo inteiro é dedicado a Carella. Nas artes ele também foi fonte de inspiração, a exemplo do cantor Johnny Hooker que produziu um álbum dedicado à figura do dramaturgo, isso sem contar espetáculos teatrais, filmes e a reedição do próprio Orgia, os diários de Tulio Carella 1960-1961, em 2011. Todas essas iniciativas e referências terminaram por delinear um perfil do portenho como se ele fosse um ícone do universo LGBTQIAPN+ dos trópicos, muito antes dos movimentos de libertação homossexual ganharem forma.

Túlio Carella, todavia, é muito mais do que esse personagem destemido que praticava de forma compulsiva o amor que, na época, ainda não ousava dizer o nome. E nisso reside o maior mérito do livro Orgia e compadrio. Túlio Carella, drama e revolução na América Latina, do jornalista e doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo Alvaro Machado. Fruto de uma tese de doutoramento e de anos dedicados à pesquisa e ao estudo da vida de Carella e da sua produção artística e literária, Machado nos revela um intelectual cuja dimensão e cuja dimensão precisa ser reconhecida e apreciada. Autor de peças teatrais de sucesso e estudos originais sobre a cultura popular na Argentina, principalmente teatro e música, Carella foi também ator, crítico, poeta. roteirista de filmes e sua vida e obra o colocam de maneira pertinente e incontornável, como demonstra a minuciosa análise de Machado, ao lado dos grandes artistas e pensadores latino-americanos do século XX, cuja produção intelectual é marcada por ideias e ações de contraposição ao colonialismo europeu para a construção de um possível pan latino-americanismo nas artes e na cultura.

A trajetória de Álvaro Machado como repórter, editor, crítico de artes, curador musical e pesquisador de esmero no campo da cultura com diversos trabalhos publicados é um aval indiscutível para um estudo sobre um artista tão erudito e ao mesmo tempo inquieto, impetuoso e complexo quanto Tulio Carella. Basta lembrar que apenas com 21 anos de idade, Carella foi da sua província até Buenos Aires para conhecer o poeta espanhol Federico Garcia Lorca a quem admirava e com quem travou um relacionamento mais intenso do que uma simples amizade. Para elaborar a biografia de Carella, como observa na apresentação do livro Ricardo Cardoso, Machado usou o mesmo método histórico-dialético proposto por Jean-Paul Sartre quando escreveu as biografias de Jean Genet e Gustave Flaubert. O método, ao qual alude Cardoso, consiste em “apreender o processo que produz uma pessoa, bem como o produto desta no interior de uma classe e de uma sociedade dada”.

De fato, percorrendo as páginas da obra de Machado fica clara a costura elaborada por ele no sentido de nunca dissociar o seu biografado dos espaços e acontecimentos que se entrelaçam com sua existência e emergem tanto nas peças que escreveu – Dom Basilio malcasado (1940), Dona Clorinda, descontente (1941), Juan basura (1965), entre outras – quanto em obras ensaísticas como Tango, mito y esencia (1956) e El sainete criollo (1957). Se nos seus primeiros textos teatrais Carella ainda devotava admiração pela cultura europeia e se valeu dos preceitos estilísticos do barroco espanhol e da commedia dell’arte para elaborá-los, nos anos seguintes, à medida que foi questionando uma série de elementos da vida política e cultural não apenas da Argentina, mas de outros países da América do Sul, incluindo o Brasil, sua criação ganhou novos contornos. Ela vai reverberar o pensamento e a atitude de um autor que, mesmo sendo descendente de imigrantes italianos, se aproximou das margens da sociedade, da cultura das ruas e buscou destrinchar a complexa teia da formação do tecido social de sua terra natal em que o branco, de origem europeia, apagou a presença dos povos originários e dos africanos escravizados, movimento que ganhou ainda mais força após a sua experiência no Recife.

Um dos elementos cativantes da leitura do livro de Álvaro Machado é a sinceridade com que ele demonstra a admiração e o fascínio por Carella, quando confessa ter conduzido sua escrita “à maneira do próprio Túlio”, assimilando o hibridismo de historiografia e ensaio presente nos trabalhos do escritor portenho. Machado adotou o modelo de “biografia crítica” baseando sua pesquisa em entrevistas, fotografias, reportagens, depoimentos, cartas, críticas da época, assim como obras da história argentina e brasileira. Mas são as obras memorialísticas do próprio Carella, em especial Las puertas de la vida (1967), Cuaderno del delírio (1959) e Orgia, diario primeiro (1968), ao lado da vasta correspondência trocada entre o argentino e o pernambucano Hermilo Borba Filho nos anos 1960 e 1970, as principais fontes usadas por Machado para articular sua narrativa. Machado compõe um painel rico e detalhado da vida de Carella na Argentina, com destaque para o período vivido em Mercedes, cidade onde passou a infância e adolescência, em Buenos Aires, onde consolidou sua formação e ganhou fama, e no Recife, cidade onde viveu apenas um ano, mas que lhe deixou marcas profundas.

Convidado por Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho para ministrar aulas de direção e cenografia na Escola de Belas Artes, enquanto exercia com primor as tarefas como professor, Carella encontrou na população mestiça das ruas do Recife, elementos que o fascinavam desde quando, em Buenos Aires, se dedicou a observar e estudar os compadritos, figuras populares associadas ao tango e à vida urbana marginalizada na Argentina e Uruguai no início do século passado. Sua vinda a Pernambuco coincidiu com um período de grande agitação política, social e cultural. Na época, o estado era governado por Miguel Arraes e o Movimento de Cultura Popular (MCP) estava no auge de sua atuação. Era também o tempo das Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião. Embora Carella não tenha se envolvido diretamente em ações políticas, sua presença no Recife chamou atenção das forças militares de repressão, já ativas no período pré-golpe de 1964. Por conta de sua convivência com as classes baixas, ele passou a ser perseguido sob a suspeita de ser um agente revolucionário cubano traficante de armas. Acabou sendo preso, torturado e expulso do Brasil, mesmo comprovando sua inocência.

Apesar de não ser um militante engajado em partidos, o conturbado cenário político na Argentina dos anos 1940 e décadas seguintes foi determinante na trajetória de Carella. Com a ascensão do peronismo e a oposição reacionária que gerou os sucessivos golpes militares da extrema-direita, era quase impossível que um intelectual com o pensamento de Tulio Carella permanecesse incólume a tantos episódios e reviravoltas, sobretudo nos governos ditatoriais quando a censura e perseguição aos opositores do regime se tornava violenta. Por conta de suas ideias, na medida em que foi expressando suas convicções, ao contrário de escritores como Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato, que mantiveram relações cordiais com os militares, Carella foi sendo pouco a pouco escanteado e a publicação de Orgia por seu conteúdo homoerótico foi a gota d’água para a intelectualidade conservadora buenairense colocá-lo no ostracismo. Nesse sentido o resgate da figura de Carella por Alvaro Machado é muito significativo, pois ele mergulha profundamente na alma do escritor portenho, esmiuçando, com sensibilidade e respeito, a partir de evidências expressas em suas obras e nas cartas a Hermilo, a evolução do seu pensamento com as influências dos filósofos gregos, da sua fé católica, da poesia de Lorca, do indigenismo e da afinidade que encontrou na cultura nordestina que conheceu no Recife.

O livro de Machado, ademais, é um rico compêndio de história social comparada da cultura contemporânea latino-americana ao cotejar os principais acontecimentos na Argentina durante o século XX com o Brasil. A partir dos caminhos de Carella e de sua estada no Recife, Machado puxa vários fios que formam um vasto painel que entrelaça o teatro, a música e a literatura com a realidade social desses lugares de onde emergem, sobretudo, questões relacionadas à construção da identidade de seus habitantes e como elas influenciaram a linguagem e a estética dessas expressões. A leitura de Orgia e compadrio exige um olhar acurado que invariavelmente nos induz à reflexão e, melhor, nos permite compreender quem foi e o que representou o autor do livro de poemas Roteiro recifense (1966) que, a seu modo, amou os homens e as artes.