Quando começou a escrever o material que se tornaria sua novela Devastação, recém-lançada pela Arquipélago Editorial, o escritor José Castello pensou que, ao final do trabalho, teria provavelmente um conto longo – e talvez voltado ao público infantojuvenil.
Como é da estirpe de autores que deixam a ficção achar seus próprios caminhos, enquanto costurava à mão uma palavra à outra, em um caderno, na cozinha de seu apartamento em Copacabana, durante o verão carioca de 2024, Castello deixou que um livro de outra, e quase indefinível, natureza surgisse.
Uma novela que não parece com nenhum livro anterior do autor carioca que vive em Curitiba desde 1993. Quanto à forma, o tamanho do texto indica que se trata de uma novela, mas uma das leituras possíveis – e até inevitáveis – é partir de uma dramaturgia.
A cenografia, aliás, está pronta para o palco: um quarto mal- iluminado e um espelho. Os demais cômodos do apartamento onde a narrativa se passa – o prédio decadente que a abriga, o edifício vizinho onde acontece um crime estranho e o caos do Rio de Janeiro num crepúsculo de tempestade e apagões – podem ser apenas imaginados.
Mas essa é só uma das muitas leituras possíveis.
Em Devastação, a narrativa é centrada em quatro horas da vida de Anita Vogler, uma mulher doente e idosa que vive em um apartamento em Copacabana. Ela não mora exatamente sozinha, pois divide o imóvel com o neto “hiperconectado” e sua cuidadora, com quem está em situação de confronto permanente.
Toda a ação, contudo, acontece dentro da cabeça de Anita, onde se constrói retrato apavorante da solidão absoluta de alguém fisicamente frágil e dependente que, diante de um espelho, percebe que está “trancada por dentro” e começa a duvidar da própria identidade: quem é real, ela mesma ou a imagem que vê no espelho?
“Drama Cósmico”
Em entrevista à Pernambuco, Castello chama a atenção para o subtítulo do livro – “drama cósmico” – que fez questão de incluir como uma espécie de “advertência” aos leitores.
“Penso que estamos em um momento – e não estou criticando de maneira nenhuma, pelo contrário – em que questões concretas, questões de raça, de gênero, de minorias, estão todas muito presentes na literatura”, disse.
“Então, quando eu penso em ‘cósmico’, em Cosmos, é porque eu acho que nessa novela não há essa segmentação. Ao contrário: de alguma forma, entra tudo ali ao mesmo tempo e isso é o que há de mais interessante na criação”, disse.
Para Castello, a arte, antes de tudo, é “liberdade, aventura e risco”. “E, quando você se aventura, sobretudo em caminhos de alto risco, tudo pode acontecer, tudo pode entrar. Você não precisa dominar para incluir”, disse.
De fato, cabem muitas coisas nas 128 páginas de Devastação.
É possível conceber todo o texto como uma visão. Um delírio senil enlouquecido da narradora. Um pesadelo.
Mas, se assim fosse, se excluiria a tapeçaria complexa em que as muitas influências artísticas de Castello se cruzam fazendo a narrativa caminhar sempre na fronteira entre o real e o imaginário.
Desde o “teatro do absurdo” de autores como Ionesco e Beckett até o cinema de horror alemão expressionista do início do século XX. Passando pelo Surrealismo até outras influências cinematográficas caras à geração do escritor como os filmes de Andrei Tarkóvski e de Ingmar Bergman, pelo menos os da primeira fase “preto e branca” do cineasta sueco.
Castello admite que se alimenta “da fronteira entre a magia e o charlatanismo, entre a sedução e o crime” que tanto interessavam Bergman e toma dele outras referências mais literais como o sobrenome da personagem principal, tem como uma das origens: Elisabet Vogler, a atriz e paciente de Persona, tratada pela enfermeira Alma.
Vogler também remete à palavra alemã vogel, que significa “pássaro”, e ao substantivo vögler, que pode se referir àquele que captura pássaros – ou, na linguagem do samba carioca, um “passarinheiro”.
Todo leitor de Ribamar o romance epistolar, de cariz kafkiano, com o qual Castello ganhou, em 2011, um de seus três prêmios Jabuti, sabe que sua literatura é “passarinheira”.
No cenário surreal do apartamento de Devastação, isso surge na figura de pombos que Anita acredita serem gralhas invasoras, aliás uma ave cujo nome quando também é traduzido para o alemão é grafado como Kafka.
Estas sutilezas entrecruzadas são pilares de Devastação, mas Castello observa que nada disso é premeditado. “Para mim, a ficção se passa mesmo no corpo da linguagem. Uma frase puxa a outra e o texto toma seu caminho. Eu vou sendo arrastado por ele. Eu acho que essa, inclusive, é a melhor maneira de escrever ficção, primeiro porque isso dá uma imensa liberdade que ultrapassa qualquer decisão que você possa ter”, disse.
“Não tem misticismo, método ou metafísica. Eu acho que a literatura, pelo menos como eu a vejo, exige uma grande entrega a algumas ideias fixas que se tornam obsessivas. E foi assim que eu escrevi o Devastação.”
O Espelho
Há, contudo, outros pilotis mais fincados no real que sustentam o livro como a questão do envelhecimento da população brasileira e a dificuldade de enfrentá-la do ponto de vista da saúde pública, do direito, da economia política — o que se expressa na relação de Anita com o filho, que já não sabe o que fazer para lidar com a condição da mãe.
Neste ponto, um foco de luz que orientou a novela foi a história da própria mãe do escritor, Dona Lucy — como ele a chamava e a quem está dedicado o livro.
Ela morreu há cerca de 10 anos, e passou os últimos anos em cadeira de rodas e com problemas de saúde parecidos com os da protagonista de Devastação.
“Falo desse sentimento de ser incompreendida, de ser, de certa forma, desprezada. Assim, tratada um pouco como objeto, ou tratada sempre como um problema a ser resolvido.”
Dona Lucy trouxe outro componente fundamental à narrativa, pois em comum com Anita Vogler, ela tinha uma questão com o espelho – não com espelhos em geral, mas com um específico, que ficava em seu quarto, também num apartamento antigo em Copacabana.
“Ela sempre ficava intrigada com a imagem dela, com a figura, em dúvida se aquela figura correspondia realmente a ela naquele momento ou não. Tudo muito fluido, muito perdido, como ela já estava. Mas havia essa história dela diante do espelho.”
A relação de Anita Vogler com o espelho é a chave para tratar de outra questão muito atual que é como cada um lida com a própria imagem. “O espelho tem uma potência, porque ele duplica, mas, ao mesmo tempo, apaga. Ele reproduz a realidade, mas, ao mesmo tempo, a cancela”, ele observa.
Nessa faixa de indefinição, a dicção literária de Castello “joga em casa”. O enfrentamento sem pudor da questão da velhice em Devastação torna-se um meio de falar de outras doenças sociais contemporâneas como a superficialidade, a alienação coletiva e pessoal que nos faz tocar nossas vidinhas enquanto o mundo pega fogo — ou enquanto as coisas que amamos estão em grande risco.
“No processo de escrita, eu fui descobrindo que a Anita Vogler é um pouco um personagem-síntese de um tempo. As pessoas, em geral, estão com essa sensação de que estão perdendo o controle, de que o mundo está se fragmentando e se decompondo. Decompondo-se de uma forma irreversível. E, no entanto, não se consegue fazer muito, por mais que se tente.”
A própria condição pessoal do autor, de 74 anos, também tem pontos de contato com este “espírito do tempo”. Castello convive com uma insuficiência renal crônica e grave. Desde meados de 2023, faz sessões de hemodiálise.
No ano passado, enquanto escrevia Devastação, ele estava no Rio de Janeiro em tratamento. No segundo semestre, teve uma crise e o quadro se agravou. Precisou ser internado e passou três semanas na UTI.
“Foi um momento de muitas restrições e aflições – próprias até da minha idade. Mas em nenhum momento achei que estava fazendo um livro confessional. Não houve isso. Mas esse ambiente de fragilidade, de limitações que aparecem no livro, eu já vivia naquele momento também.”
As quatro horas em que a narrativa é concentrada, porém, são o mesmo tempo que leva cada uma das quatro sessões de hemodiálise semanais que o autor precisa fazer para manter seu quadro clínico controlado e estável, como tem, felizmente, conseguido.
Para dar conta de falar de tudo isso, em Devastação, o escritor lança sem pena sua personagem Anita Vogler neste espaço indefinido de uma experiência que a enlouquece e adoece, mas não é muito diferente daquela que cada um de seus leitores está vivendo.
“Basta ver como pessoas de todas as idades passam o tempo todo na internet, sem conseguir se concentrar em nada, sem foco a respeito do mundo. Há um mundo desmoronando e pessoas em estado de flutuação e, de alguma forma, é preciso jogar com essa condição para sobreviver, nadar, se debater, não se afogar e seguir em frente.”
Copacabana – Cristo Rei
Outro ponto incontornável de Devastação é o território da narrativa. Do jeito que as coisas acontecem, o cenário só podia ser Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro. Bairro em que Castello cresceu e onde ainda mantém um endereço.
“Copacabana é hoje um bairro cheio de velhos e muitos deles escolhem morar ali por causa justamente disso: das facilidades. É um bairro que tem tudo à mão, é um bairro que tem movimento 24 horas por dia”, disse.
Em Copacabana, explica o autor, as pessoas andam e se vestem como querem e ninguém liga se é certo usar bermuda ou biquíni para entrar em tal lugar ou não. “Há essa liberdade — embora meio triste — inclusive para envelhecer, para decair”, disse.
Em perspectiva, este lugar onde diz “se sentir em casa” é bastante diferente daquele em que efetivamente mora, no Cristo Rei, bairro residencial a 10 minutos do centro de Curitiba.
Castello vive com seu companheiro Joaquim, que é empresário na capital paranaense há 30 anos, atualmente em um apartamento perto do Jardim Botânico, o mais visitado ponto turístico da cidade.
Para Castello, o sentimento muitas vezes é de um exílio voluntário e admite que, mesmo três décadas depois, ainda luta para adequar seu temperamento ao da cidade onde está radicado.
“Levo uma vida completamente isolada. Às vezes eu acho que eu sou o verdadeiro vampiro de Curitiba”, brinca. “Aqui, as pessoas se isolam muito, são muito desconfiadas, é tudo planejado com muita antecedência, tudo muito formal. O carioca não organiza nada, fala com todo mundo. No entanto, eu fui absorvendo esse espírito da cidade. E admito que, às vezes, eu acho que me isolo até demais.”
Ao mesmo tempo, ele reflete que a solidão deste autoexílio tem sido fundamental para o bom andamento de seu ofício. “Já escrevi dezenas de livros em Curitiba... Será que, morando no meio da muvuca de Copacabana, eu teria conseguido?”
Castello não romantiza sua uma “rotina de escritor”. Ele diz que seus dias são muito definidos pela convivência com Joaquim e pelas sessões de hemodiálise, em que aproveita a trégua das distrações do mundo para colocar a leitura em dia. No momento, está relendo toda a poesia de Jorge Luis Borges.
Além das colaborações permanentes com veículos literários como o Jornal Rascunho e a revista Pernambuco, há o compromisso com a oficina literária que ministra aos alunos sempre aos sábados há alguns anos.
Castello conta que “escreve nos intervalos”, em qualquer tempo livre que tenha, e aposta numa tradição pessoal de começar seus livros novos em locais inusitados.
Se Devastação foi gestado na cozinha do velho apartamento carioca, o livro anterior, o infantojuvenil Dentro de mim ninguém entra (Editora Belendis), pelo qual ganhou o prêmio Jabuti, em 2017, teve a primeira versão escrita na cama de um hospital.
“Há alguns anos, tive uma coisa misteriosa. Acordei sem conseguir andar. Aí me levaram para o hospital, me puseram lá internado, fazendo um monte de exames — e eu não sentia nada. Não estava acontecendo nada, eu estava bem. Eu só não conseguia andar. E aí, estava de saco cheio daquela situação — e eu sempre ando com caderno, com caneta — e me pus a escrever uma história”, lembra.
“No fim dessa semana, comecei a andar de novo, sem nenhuma explicação. E o médico me deu alta dizendo: ‘Não tenho a menor ideia do que aconteceu com você. Vai em frente. Se acontecer alguma outra coisa, volte’.”
A doença misteriosa, assim como veio, sumiu — mas dessa experiência ficou um livro premiado. E tem sido assim que sua literatura nasce nas últimas cinco décadas.
“Eu escrevo por pedaços, por momentos em que me dá vontade. Gosto muito de escrever à mão — sobretudo quando o texto está nascendo. Agora mesmo, eu estou rascunhando um romance novo. Não sei o que é. Talvez não venha a ser nada do que está aparecendo agora. Por enquanto, está nos meus cadernos.”