Solano vive um inferno

A culpa vai arrastá-lo pelo corredor a vida inteira, no novo romance de Raimundo Carrero

No decorrer de meio século, Carrero construiu não somente seu pueblo, seu mundo imaginado, mas seu próprio algoritmo
No decorrer de meio século, Carrero construiu não somente seu pueblo, seu mundo imaginado, mas seu próprio algoritmo

A vida é traição, novela de Raimundo Carrero, é escrita em quatro partes. É um pouco uma novela de formação. Uma novela de passagem. Trata do sentimento de culpa e desejo do menino Solano, e se passa no sertão.

As casas sertanejas têm uma arquitetura opressora para uma criança. Quem cresceu em casa do interior, no Nordeste do Brasil, sabe o terror de atravessar aquele longo corredor. Longo e escuro. Corredores são passagens ligando os cômodos da casa.

O menino Solano vive em uma casa com corredor. Quando o encontramos, está ali, à porta do quarto, onde a mãe agoniza. Talvez ele nunca mais tire os pés dessa soleira.

Para Freud a casa é a representação do eu. Cômodos são camadas do inconsciente. O menino Solano não sabe nada sobre o inconsciente.

Freud entende de culpa e desejo. Nisso se montaram a psicanálise e boa parte das religiões. Disto, sim, o menino sofre desde cedo, sobretudo com a culpa. Ela vai arrastá-lo pelo corredor a vida inteira. Solano vive esse inferno. O inferno de crianças-órfãs feito Solano é o pior dos infernos. A casa é quem primeiro trai o órfão. O espaço, antes familiar, se torna sinistro. Sei do que estou falando.

Um romance não vem ao mundo para praticarmos psicanálise. Ou não vem somente a isso. A não ser quando a crítica ou argumento pretendem se sobrepor ao romance. É comum. De todo modo, análises são traições, tanto quanto o é a vida, como afirma o título dessa recente novela de Carrero, publicada pela editora Record.

Raimundo Carrero sabe: a literatura é a mãe dos enganos e das traições. No texto de ficção, seu significado sempre foge do leitor. Se desloca no tempo o tempo todo. E, fugindo do leitor, o obriga a se manter ativamente na leitura. O advérbio aqui é necessário.

A linguagem é traição. Ela não é nossa. Ela nos fala. É ativa. Nessa novela de Carrero, a linguagem adia tudo. Perde-se em sentidos. Quando o leitor busca a exatidão, como um pároco busca o mal no corrompido coração humano, esse leitor, ambicioso por imanências, descobre o transe, a transcendência, o deslocamento, a desestabilização.

Quando nós lemos A vida é traição, de Carrero, sentimos isso. Sentimos. Não vemos. Há uma promessa, velada, de as cenas explodirem na sala, no quarto da morta, nos cabarés, nos desfiles. A novela, porém, vai além da mera experiência sensível ou particular. Estamos em um universo invisível, suprassensível, feito para quem já viu tudo, igual àqueles de olhos eternamente fechados, como parecem morrer-viver os personagens de Arcassanta. Arcassanta é o universo criado por Carrero.

O lugar está presente desde As sementes do sol - o semeador, romance de 1981. Aparece de forma bem definida, com sua lógica e geografia, em O amor não tem bons sentimentos (2008). Ali o leitor encontra personagens dessa novela recente, a exemplo de menções à Tia Guilhermina e, mais especialmente, Dolores e Matheus. Esse personagem é fundamental na obra de Carrero e podemos também encontrá-lo no Maçã agreste (1989). Em A vida é traição, Matheus aparece en passant, mas de forma a empurrar a narrativa para frente. Em O amor não tem bons sentimentos, Matheus, filho de Dolores, é um assassino. Dolores matou o próprio pai. Nada disso está por acaso nessa novela.

Uma curiosidade para quem estuda a obra de Carrero: Dolores não está de corpo e alma em A vida é traição. Explico: lá está Maria de Elói, alma, pessoa de verdade da infância do autor que foi base para a construção da personagem Dolores. Esses elementos dramáticos são importantes para a compreensão de A vida é traição.

Sabemos agora: no mesmo espaço-tempo da Arcassanta real, sempre existiu uma Arcassanta-fantasma. Ali está outra camada de ficção, outros cômodos e incômodos. Essa Arcassanta é povoada por seus mortos, que vêm recepcionar os moribundos, pessoas que fazem sua “passagem”, mudança, desencarne, como quiserem chamar. Os mistérios e os sofrimentos da morte.

MISTÉRIO E TÉCNICA

Se para Carrero o amor não tem bons sentimentos, o mal deve ter lá sua inteligência e metafísica. O mal tem mesmo alguma transcendência? Sim. Alguns teólogos podem até duvidar da afirmação, mas o ficcionista precisa acreditar nisso.

Assim cuida e usa Carrero, nessa novela onde se mostra a constante evolução do autor. A vida é traição é um novo relâmpago na atmosfera sombria de sua obra consagrada. Tanto é assim que ele não está muito aí para “conduzir” a narrativa. Nem para dizer ao leitor o quanto “domina” a linguagem.

Mestre da técnica, ele a subordina aos impulsos mais profundos. Em vez do enredo em reta, a reticência. O silêncio na obscuridade, outra sua marca, parte legítima da narração. Tudo isso em favor de algo mais profundo, a experiência caótica e transgressora da existência. Carrero rasga a forma por dentro, como fazem os grandes do jazz. Há algum tempo, sua prosa tem anunciado que as formas clássicas não dão conta do mundo.

Algumas técnicas são peles mortas. É preciso algo vivo. Grandes autores como Carrero se encontram em um ponto no qual a técnica já não é mais obstáculo, mas outro elemento a ser traído. Assim, escrevem como se ouvissem vozes. A boa literatura se estabelece na tensão entre a técnica e o mistério. Técnica sem mistério é zoada. Mistério sem técnica é zumbido. Quando o mistério engole a técnica, temos a obra literária autêntica.

Para Carrero, não existe nada mais importante do que o escrever. Escrever cartas ao mundo.

AS ÍTACAS DE RAIMUNDO CARRERO

Tanto para o autor quanto para o leitor desse livro, a leitura é algo de crescente desejo, mas sem a necessidade de checar se tudo está ali. O leitor — oh cornudo leitor —, traído, ao final saberá quem de fato conduz a narrativa, a Narrativa, todas.

No decorrer de meio século, Carrero construiu não somente seu pueblo, seu mundo imaginado, mas seu próprio algoritmo. Talvez seja uma metáfora fecunda demais. Mas falo de quando a literatura reproduz códigos, repetições, que nem sempre o autor domina, pois há uma vida autônoma naquilo que inventa, independente de tudo, fruto da pulsão do mundo criado por ele. Quando fracassa a tentativa de entender os mistérios da vida, dali aparecem o desencaixe, a perplexidade, o bug, os fantasmas, as falhas dessa matrix.

Qual o nome dessa falha? O mal. O mal é a falha do ser. Uma vontade radical — má — no homem. Custa-nos aceitar isso, porquanto o mal está intimamente ligado à liberdade. Ele ultrapassa a mediocridade dos obedientes. Viria dos demônios internos? Não se sabe. Por isso, é tão difícil compreendê-lo. Mas cabe bem à sensibilidade do artista e à lucidez de um escritor chamado Carrero.

Carrero alcançou a força dessas metáforas, no mundo da metonímia, da opacidade da linguagem, que sempre trai e nunca entrega o prometido. Ele que a vida toda gargalhou diante da mentira da exatidão e se enamorou da ruptura da ordem, deu à transgressão uma feição quase sagrada.

Sua obra é toda um escárnio diante do fracasso da compreensão plena, humana, do mundo. Sendo crente e temente a Deus, essa limitação, para ele, mostra o quanto a vida, além de traição, é a cela de uma cadeia, uma condenação. Por isso Carrero é um místico, e seus narradores, que não são ele, são místicos vestidos de imanência. Místicos que traem a partir do seu próprio código moral, um misticismo mais arbitrário ainda.

Por falar em narradores, as vozes se misturam em A vida é traição. Há um murmúrio instalado ali, sendo essa a voz mais poderosa, especialmente na primeira parte. Essa voz o autor a traz para junto de si como fosse sua. Ora a repudia, quando a vida do menino Solano se torna uma fuga, uma fuga inútil pelo mundo. Ora a usa para buscar perdão.

A vida é traição: carta ao mundo é um exemplo de como um autor pode se manter vitalista, décadas e mais décadas, dedicado à literatura. Que sejam mais e mais.

Cada novo livro seu merece a atenção dos leitores, do mercado e da crítica. Digo isso que escrevi sobre ele pela primeira vez, em 1992. É uma sorte que todos nós, como Raimundo Carrero, estamos condenados à literatura, uma forma de vida como aquela Ítaca de Kafávis, que não nos enganou nem nos traiu.

Serviço:

A vida é traição: carta ao mundo
Editora Record
Novela, 80 páginas
1ª. edição