A vida é traição, novela de Raimundo Carrero, é escrita em quatro partes. É um pouco uma novela de formação. Uma novela de passagem. Trata do sentimento de culpa e desejo do menino Solano, e se passa no sertão.
As casas sertanejas têm uma arquitetura opressora para uma criança. Quem cresceu em casa do interior, no Nordeste do Brasil, sabe o terror de atravessar aquele longo corredor. Longo e escuro. Corredores são passagens ligando os cômodos da casa.
O menino Solano vive em uma casa com corredor. Quando o encontramos, está ali, à porta do quarto, onde a mãe agoniza. Talvez ele nunca mais tire os pés dessa soleira.
Para Freud a casa é a representação do eu. Cômodos são camadas do inconsciente. O menino Solano não sabe nada sobre o inconsciente.
Freud entende de culpa e desejo. Nisso se montaram a psicanálise e boa parte das religiões. Disto, sim, o menino sofre desde cedo, sobretudo com a culpa. Ela vai arrastá-lo pelo corredor a vida inteira. Solano vive esse inferno. O inferno de crianças-órfãs feito Solano é o pior dos infernos. A casa é quem primeiro trai o órfão. O espaço, antes familiar, se torna sinistro. Sei do que estou falando.
Um romance não vem ao mundo para praticarmos psicanálise. Ou não vem somente a isso. A não ser quando a crítica ou argumento pretendem se sobrepor ao romance. É comum. De todo modo, análises são traições, tanto quanto o é a vida, como afirma o título dessa recente novela de Carrero, publicada pela editora Record.
Raimundo Carrero sabe: a literatura é a mãe dos enganos e das traições. No texto de ficção, seu significado sempre foge do leitor. Se desloca no tempo o tempo todo. E, fugindo do leitor, o obriga a se manter ativamente na leitura. O advérbio aqui é necessário.
A linguagem é traição. Ela não é nossa. Ela nos fala. É ativa. Nessa novela de Carrero, a linguagem adia tudo. Perde-se em sentidos. Quando o leitor busca a exatidão, como um pároco busca o mal no corrompido coração humano, esse leitor, ambicioso por imanências, descobre o transe, a transcendência, o deslocamento, a desestabilização.
Quando nós lemos A vida é traição, de Carrero, sentimos isso. Sentimos. Não vemos. Há uma promessa, velada, de as cenas explodirem na sala, no quarto da morta, nos cabarés, nos desfiles. A novela, porém, vai além da mera experiência sensível ou particular. Estamos em um universo invisível, suprassensível, feito para quem já viu tudo, igual àqueles de olhos eternamente fechados, como parecem morrer-viver os personagens de Arcassanta. Arcassanta é o universo criado por Carrero.
O lugar está presente desde As sementes do sol - o semeador, romance de 1981. Aparece de forma bem definida, com sua lógica e geografia, em O amor não tem bons sentimentos (2008). Ali o leitor encontra personagens dessa novela recente, a exemplo de menções à Tia Guilhermina e, mais especialmente, Dolores e Matheus. Esse personagem é fundamental na obra de Carrero e podemos também encontrá-lo no Maçã agreste (1989). Em A vida é traição, Matheus aparece en passant, mas de forma a empurrar a narrativa para frente. Em O amor não tem bons sentimentos, Matheus, filho de Dolores, é um assassino. Dolores matou o próprio pai. Nada disso está por acaso nessa novela.
Uma curiosidade para quem estuda a obra de Carrero: Dolores não está de corpo e alma em A vida é traição. Explico: lá está Maria de Elói, alma, pessoa de verdade da infância do autor que foi base para a construção da personagem Dolores. Esses elementos dramáticos são importantes para a compreensão de A vida é traição.
Sabemos agora: no mesmo espaço-tempo da Arcassanta real, sempre existiu uma Arcassanta-fantasma. Ali está outra camada de ficção, outros cômodos e incômodos. Essa Arcassanta é povoada por seus mortos, que vêm recepcionar os moribundos, pessoas que fazem sua “passagem”, mudança, desencarne, como quiserem chamar. Os mistérios e os sofrimentos da morte.
MISTÉRIO E TÉCNICA
Se para Carrero o amor não tem bons sentimentos, o mal deve ter lá sua inteligência e metafísica. O mal tem mesmo alguma transcendência? Sim. Alguns teólogos podem até duvidar da afirmação, mas o ficcionista precisa acreditar nisso.
Assim cuida e usa Carrero, nessa novela onde se mostra a constante evolução do autor. A vida é traição é um novo relâmpago na atmosfera sombria de sua obra consagrada. Tanto é assim que ele não está muito aí para “conduzir” a narrativa. Nem para dizer ao leitor o quanto “domina” a linguagem.
Mestre da técnica, ele a subordina aos impulsos mais profundos. Em vez do enredo em reta, a reticência. O silêncio na obscuridade, outra sua marca, parte legítima da narração. Tudo isso em favor de algo mais profundo, a experiência caótica e transgressora da existência. Carrero rasga a forma por dentro, como fazem os grandes do jazz. Há algum tempo, sua prosa tem anunciado que as formas clássicas não dão conta do mundo.
Algumas técnicas são peles mortas. É preciso algo vivo. Grandes autores como Carrero se encontram em um ponto no qual a técnica já não é mais obstáculo, mas outro elemento a ser traído. Assim, escrevem como se ouvissem vozes. A boa literatura se estabelece na tensão entre a técnica e o mistério. Técnica sem mistério é zoada. Mistério sem técnica é zumbido. Quando o mistério engole a técnica, temos a obra literária autêntica.
Para Carrero, não existe nada mais importante do que o escrever. Escrever cartas ao mundo.
AS ÍTACAS DE RAIMUNDO CARRERO
Tanto para o autor quanto para o leitor desse livro, a leitura é algo de crescente desejo, mas sem a necessidade de checar se tudo está ali. O leitor — oh cornudo leitor —, traído, ao final saberá quem de fato conduz a narrativa, a Narrativa, todas.
No decorrer de meio século, Carrero construiu não somente seu pueblo, seu mundo imaginado, mas seu próprio algoritmo. Talvez seja uma metáfora fecunda demais. Mas falo de quando a literatura reproduz códigos, repetições, que nem sempre o autor domina, pois há uma vida autônoma naquilo que inventa, independente de tudo, fruto da pulsão do mundo criado por ele. Quando fracassa a tentativa de entender os mistérios da vida, dali aparecem o desencaixe, a perplexidade, o bug, os fantasmas, as falhas dessa matrix.
Qual o nome dessa falha? O mal. O mal é a falha do ser. Uma vontade radical — má — no homem. Custa-nos aceitar isso, porquanto o mal está intimamente ligado à liberdade. Ele ultrapassa a mediocridade dos obedientes. Viria dos demônios internos? Não se sabe. Por isso, é tão difícil compreendê-lo. Mas cabe bem à sensibilidade do artista e à lucidez de um escritor chamado Carrero.
Carrero alcançou a força dessas metáforas, no mundo da metonímia, da opacidade da linguagem, que sempre trai e nunca entrega o prometido. Ele que a vida toda gargalhou diante da mentira da exatidão e se enamorou da ruptura da ordem, deu à transgressão uma feição quase sagrada.
Sua obra é toda um escárnio diante do fracasso da compreensão plena, humana, do mundo. Sendo crente e temente a Deus, essa limitação, para ele, mostra o quanto a vida, além de traição, é a cela de uma cadeia, uma condenação. Por isso Carrero é um místico, e seus narradores, que não são ele, são místicos vestidos de imanência. Místicos que traem a partir do seu próprio código moral, um misticismo mais arbitrário ainda.
Por falar em narradores, as vozes se misturam em A vida é traição. Há um murmúrio instalado ali, sendo essa a voz mais poderosa, especialmente na primeira parte. Essa voz o autor a traz para junto de si como fosse sua. Ora a repudia, quando a vida do menino Solano se torna uma fuga, uma fuga inútil pelo mundo. Ora a usa para buscar perdão.
A vida é traição: carta ao mundo é um exemplo de como um autor pode se manter vitalista, décadas e mais décadas, dedicado à literatura. Que sejam mais e mais.
Cada novo livro seu merece a atenção dos leitores, do mercado e da crítica. Digo isso que escrevi sobre ele pela primeira vez, em 1992. É uma sorte que todos nós, como Raimundo Carrero, estamos condenados à literatura, uma forma de vida como aquela Ítaca de Kafávis, que não nos enganou nem nos traiu.
Serviço:
A vida é traição: carta ao mundo
Editora Record
Novela, 80 páginas
1ª. edição