Raimundo Carrero, com sua prosa intensa e profundamente sensorial, retorna em A vida é traição (Ed. Record) ao universo trágico e lírico de Arcassanta, território mítico que atravessa sua obra. Neste novo trabalho, o autor tece uma narrativa densa, carregada de culpa, delírio e espiritualidade. Após a morte da mãe, o protagonista se vê mergulhado em um interrogatório interno (psíquico) devastador, que atravessa sua história familiar e a sua existência, onde o real e o imaginário se confundem em uma espiral de dor e lucidez brutal.
Nesse cenário, logo nas primeiras páginas, Carrero nos lança no corredor da casa junto com o protagonista – espaço frio, clínico, onde começa a reverberar o impacto da perda materna. O falecimento de Norma, desencadeia nele um retorno não apenas físico, mas também psicológico e espiritual ao passado. É ali, entre os cômodos da residência – agora assombrada por fantasmas e por almas que ainda pagam seus pecados na terra –, que se estabelece o cerne do livro: o diálogo torturante de Solano consigo mesmo, à beira do colapso existencial. Uma descida ao inferno da própria consciência.
Solidão, trauma e delírio
Raimundo Carrero, como sempre, atua nos detalhes. Cada sentença pesa como se carregasse séculos de silêncio. O universo familiar é um palco de solidões sobrepostas. Solano se vê órfão de ambos: o pai melancólico e severo, sempre calado; a mãe marcada por uma “felicidade triste” e com a intimidade com Deus, mas não do mundo, cuja morte (natural, suicídio ou assassinato?) se torna o grande enigma; e Solano, esmagado pelo remorso e pela dúvida.
Longe de seguir uma lógica tradicional, a narrativa é fragmentada, quase alucinatória. O que é sonho vira verdade absoluta; o que é lembrança torna-se delírio; o que é sobrenatural não se apresenta como terror, mas como parte de uma fantasia densa, quase religiosa. O erotismo, o desejo, o sangue e a música – como o saxofone que Solano aprende a tocar – se misturam aos lamentos da infância e aos ecos da morte. A cidade de Arcassanta é povoada por personagens simbólicos e já conhecidos do universo carreriano: Seu Venturano, Dona Quermesse, Maria de Elói, Deusdete. Também mortos que voltam à cena, espíritos que cercam cadáveres, vozes do além que não se calam. “Na hora da morte, os mortos chamam os mortos”, escreve o narrador, numa das passagens mais simbólicas. Os nomes dos personagens, aliás, carregam significados, e cada um deles parece trazer um pedaço da dor coletiva de uma terra em que a violência, o misticismo e a memória se fundem.
Culpa, memória e o peso da existência
O que se sabe perde-se no emaranhado das lembranças. Solano não sabe se a mãe se matou ou se ele cometeu o ato. Vive atormentado por essa obscuridade que se confunde com sua própria identidade. Há no texto um traço bíblico muito forte: sangue, sexo, carnaval, expiação, sacrifício, culpa e pecado convivem em um cenário onde o erotismo é presença constante, ultrapassando os limites dos corpos, misturando-se ao desejo de castigo e redenção.
Em meio ao sol e à secura da alma, Solano encarna uma espécie de Cristo às avessas, um homem condenado a carregar o fardo de suas dúvidas, dores e pecados não redimidos. Um anti-herói que, ao revisitar a própria história, tenta compreender sua posição diante do mundo – e falha, como todos falham, diante do insondável.
O saxofone que o jovem aprende a tocar ainda menino funciona como único refúgio sonoro em meio a um mundo de silêncios impostos. A música, o sangue e o suor formam um tecido narrativo poderoso e perturbador. Há cenas que beiram o bizarro, como o velório onde os mortos observam os vivos, e outras de uma realidade crua e violenta, como a da menina vítima de feminicídio – um grito contra o horror que também habita Arcassanta.
Literatura como revelação do caos
Mais do que um livro, A vida é traição é uma carta ao mundo, como diz o subtítulo, o mergulho no inconsciente humano, um raio-X da mente febril de Solano. Carrero não apenas expande seu universo literário: ele o conecta de forma magistral com outras obras. Arcassanta aqui não é só cenário por onde o personagem caminha e vive, é metáfora de uma alma arcaica, sofrida, contraditória e pulsante. Um microcosmo onde coexistem memória, infância, luto e todos os demônios.
A complexidade da obra comprova aquilo que está no cerne da literatura do escritor pernambucano: a capacidade dele narrar o caos da existência, a contradição de estar vivo, com uma prosa vigorosa, quase mística, onde até a frase mais simples carrega o peso do mundo. Da revelação. Não há concessões ao leitor. É uma narrativa dura, exigente, mas recompensadora. A linguagem é precisa e trabalhada. Cada frase é burilada para extrair a densidade e o desajuste emocional que ela exige. É carregada de poesia, mostra a aridez de Solano. O autor sabe que contar uma boa história é mais do que narrar eventos: é saber transformar o sofrimento humano em literatura. A leitura é inquietante e perturbadora. Mas também é bela, porque o autor sabe que a beleza também pode habitar o desespero. Espelho e reflexo do mundo ao redor do personagem principal.
A trama não responde perguntas. Pelo contrário: amplia as incertezas. O rapaz matou a mãe? Ela se matou? Ou tudo é fruto de uma imaginação corrompida pelo sofrimento? Não se sabe o que é lembrança e o que é alucinação. “Quantas vezes uma pessoa pode trocar de alma?”. Essas e outras perguntas assombram Solano.Verdade e literatura se confundem. E é nesse lugar, entre o visível e o invisível, que a história se instala com potência e coragem.
Povoado por imagens belas e perturbadoras, como a maneira em que a mãe de Solano morreu, marcado por frases lapidadas com precisão, por dores ancestrais e verdades incômodas, A vida é traição, com apenas 80 páginas, é uma daquelas ficções que não se lê impunemente: ela se infiltra, fere e transforma a alma do leitor.
Prosa que nasce para domesticar os demônios
Ler Raimundo Carrero é entrar em contato com uma ficção que nasce do íntimo da experiência humana. Em A vida é traição, o autor entrega talvez uma de suas obras mais sombrias e ao mesmo tempo mais reveladoras. Solano, com sua alma atormentada, é um espelho do mundo caótico em que vivemos. Um personagem que caminha à beira do abismo, carregando em si a violência da memória, o desamparo da orfandade e a busca desesperada por algum vestígio de luz.
Raimundo Carrero confirma sua posição como um dos grandes nomes da prosa brasileira contemporânea. Esse texto, para ser lido de um só fôlego, é um testemunho de que a ficção ainda pode ir além da superfície e desvendar a aflição humana. A vida é traição é um livro duro, inquietante, belo e devastador. Um livro arrebatador.