Uma poeta da alteridade

Em Fazer círculos com mãos de ave", Ana Estaregui investiga o ato da escrita a partir das relações entre cultura e natureza. Pernambuco publica, com exclusividade, poemas inéditos

Foi numa manhã de abril de 2022 que pela primeira vez ouvi a voz da poeta Ana Estaregui. Estávamos numa sala digital, um ambiente frio, completamente divergente da obra da autora. Meus olhos se concentraram a cada som emitido pela boca da poeta. E de pronto, percebi: Ana faz poesia sem pressa. Asmática, ela sabe bem o quanto a rapidez atrapalha. É na observação lenta aquecida por gravetos recolhidos numa mata fechada que esse corpo se inscreve e escreve em múltiplas naturezas. Um músculo de escrita que se percebe no outro, apaga-se, e emerge fundido na pele do que é vivo. Pelas páginas dos seus livros, a semente vinga, preenche mais o espaço e vibra entre a fragilidade do doméstico e o fazer-se selvagem. Naquela época pandêmica, Estaregui já tinha publicado Chá de jasmim (Editora Patuá, 2014), Coração de boi (Editora 7Letras, 2016) e o celebrado Dança para Cavalos (Círculo de Poemas/Fósforo, 2022) que recebeu pelos originais o Prêmio Governo Minas Gerais de literatura na categoria poesia.

Em seu quarto livro, Fazer círculos com mãos de ave (Editora 34), a ser lançado neste segundo semestre de 2025, a poeta aprofunda uma investigação sobre os limites entre a natureza e cultura, humano e mais-que-humano, vivo e inerte, poema e linguagem cotidiana. Estaregui tece uma malha habitada por bichos, fungos e plantas. Nesta investigação iniciada há mais de 10 anos, ela escolhe o fruto – marca, sulca, lambe até cravar o último ato – o da mordida. Nota-se uma ramagem de materialidade ambígua – alteridade, diferença, mistura. A poeta apresenta um estudo que propõe tensão entre natureza e cultura a partir de um entrelaçamento entre essas duas dimensões dentro do poema. A força dessa poesia está entre o selvagem, a delicadeza e os ambientes de estranhamento e docilidade.

Nos poemas, gentilmente cedidos à Pernambuco, Estaregui oferece pelo sensorial (tato) um caminho possível para um corpo que se percebe no outro. A escrita e a linguagem a partir do gesto de marcar, silenciar, e assim inaugurar entendimentos para o transitório. Para escrever, Ana não o faz com os dedos no teclado ou com uma caneta de prata. Ela transmuta e crava com suas patas uma escrita física entre o dizer e, assim, apagar-se como vemos no verso “uma força que se apaga enquanto se faz”. Ali a precariedade é barro para a construir uma comunicação íntima entre corpos e linguagem.

No segundo poema dividido em seis partes, se instaura um incessante rito interrogativo, no qual o sujeito pergunta aos órgãos do corpo a origem da própria existência, numa tentativa visceral de compreender-se. Com ecos de filosofia e rituais xamânicos, percebemos no corpo o tempo circular onde se inscreve a ancestralidade para chegar a um possível sentido nos versos – “e ele disse o que vai acontecer já está acontecendo”. Ana vai além e sugere um momento de epifania ao escrever um silêncio revelador na sexta parte final do poema.

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