No final do século XVIII, o filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham imaginou o que seria uma penitenciária ideal. Projetado em forma semicircular, o edifício permitiria que apenas uma pessoa, situada no centro de seu diâmetro, observasse todos os prisioneiros sem que estes soubessem estar sendo vigiados. O projeto recebeu o nome de panóptico (do grego, visão de tudo). Sua construção, porém, era complexa e dispendiosa: pouquíssimos prédios panópticos foram de fato concluídos. Mas o conceito atravessou os séculos inflamando debates. Michel Foucault, em Vigiar e punir, menciona o panoptismo como um poder na forma de vigilância individual e contínua, com intuito de controle, castigo e recompensa, e também como forma de correção.
Na ficção literária, o panóptico oferece a perspectiva mais privilegiada que se possa conceber. Um observador central com passe livre a todos os espaços narrativos e com acesso à intimidade das personagens é o recurso dos sonhos de qualquer ficcionista – e, caso seja bem-arquitetado, pode resultar no deleite de leitores. Seria a mais bem-acabada tradução literal/literária de um narrador onisciente e também onipresente.
O escritor e historiador pernambucano Frederico Toscano opta por essa estrutura em O condomínio (Cepe Editora). O panóptico, aqui, é tanto espacial quanto diegético. Estamos diante de um edifício antigo situado no Recife atual; um prédio baixo de quase 70 anos, com apenas três andares, seis apartamentos e sete moradores. No plano da diegese, a narração em terceira pessoa – situada no ponto central do panóptico – transita de unidade em unidade, imergindo não apenas na intimidade de quem nela vive, mas também na dimensão psicológica das personagens. Nada escapa à vigilância da narração, e portanto à nossa. Isso determina a composição do enredo: cada capítulo é dedicado a um apartamento e às pessoas que nele moram. Há, também, capítulos focalizando reuniões de condomínio e a portaria. Tudo reunido em seis atos.
Dentro dessa ambiciosa moldura, Toscano nos conta uma história marcada, em diferentes planos, pelo horror e pela tensão. Na camada mais evidente, está o próprio condomínio como abrigo de personalidades divergentes, até refratárias entre si. À exceção de algumas tênues conexões, a boa convivência inexiste, substituída pela crescente animosidade entre condôminos. Isalda, uma idosa solitária cuja existência é dedicada ao netinho, não tolera os hábitos noturnos de Doralice, jovem e bela pianista que trabalha como prostituta
para complementar a renda mirrada. Beatriz e Téo parecem um casal funcional da porta para fora, mas um olhar atento os revela arruinados. O outro casal do prédio, formado por Jonas e Anderson, é um contraponto, uma fonte de vida onde tudo tende a secar; ainda assim, os dois têm de lutar contra os olhares enviesados. Sobretudo de Carlos, o ex-militar egresso do golpe de 1964, que se mostra cada vez mais disposto a emendar o país começando pelo próprio condomínio, do qual é síndico. A propósito, dentro do enredo, Carlos figuraria como o observador central de Bentham e o vigilante de Foucault, sem jamais descansar de sua função de vigiar e, até onde lhe permitem seus pequenos poderes, punir. Também atento a tudo está Tião, o velho porteiro da noite, testemunha sábia e silenciosa do que subjaz no local.
Já em um plano menos aparente, revelado aos poucos, temos o relato de um crime. Representa-o o único apartamento fechado à nossa observação, o 301, ao qual as personagens apenas aludem, e sempre com temor. Seus antigos moradores – um casal e dois filhos pequenos – são ausências que vão se fazendo contundentes, ameaçadoras. E à medida que se revela a tragédia ali ocorrida, o condomínio assume de vez sua condição de terreno amaldiçoado, encharcado de sangue e violência, a influenciar a vida daqueles que abriga. No léxico do gótico e do horror, trata-se do locus horribilis, ou lugar horrível, um estruturante dessas vertentes literárias cujo marco inicial foram os castelos assombrados dos romances ingleses do século XVIII.
Somam-se ao espaço condenado os fantasmas de um passado que se recusa a ficar para trás. Eis outro determinante das histórias assustadoras, agora alçadas ao plano sobrenatural – no qual O condomínio, em certo ponto, também adentra. E o faz triunfalmente: as cenas de horror são bem-descritas, com notável domínio semântico e senso de ritmo. Toscano mostra-se à vontade em meio à composição do arrepio. E, mais importante ainda, é corajoso ao apresentá-la em todo o seu repulsivo esplendor. O horror, aqui, tem dupla projeção: é o efeito estético resultante da minuciosa construção narrativa, como postulou o principal teórico do gênero, o filósofo estadunidense Noël Carroll; e é também o espelho de temores e aflições de um determinado grupo – neste caso, o núcleo de personagens a refletir a sociedade brasileira dos tempos recentes, acossada por convulsões políticas, paranoias e medos do outro, do diferente. Como afirma a argentina Mariana Enriquez, o horror, ao fustigar nossos traumas por meio de metáforas e representações imaginativas, é capaz de chegar mais perto de uma realidade que se prova mais e mais assustadora. Ou seja, é capaz de enunciar com maior clareza o assombro de existirmos em um mundo em perene dissolução.
E se dissolvendo está o universo ficcional de Toscano, da primeira à última de suas mais de 300 páginas – uma extensão que, a propósito, acaba ofuscando parte do brilho
do romance. Se a estrutura geral da história se sustenta pelo princípio do panóptico, no plano fechado de cada capítulo o excesso de digressões por vezes retira o ímpeto da trama, arrastando-a. Também não tarda para compreendermos as motivações das personagens, para adivinharmos aquilo que as leva a colidir umas com as outras. É verdade que alguns segredos, ocultos até mesmo da perspectiva panóptica, mantêm-nos presos ao desenvolvimento; é verdade também que nos magnetiza a prosa firme e exuberante do autor, com o excelente manuseio do discurso indireto livre, o encadeamento suave de marcações coloquiais e a costura de símiles memoráveis. O romance, contudo, se beneficiaria de um andamento mais acelerado até seu desfecho caótico e impressionante.
A despeito disso, O condomínio capta em cheio a direção dos ventos atuais. Filia-se à vigorosa corrente latino-americana da produção de horror atual, ancorada em mazelas sociais e em dívidas históricas; também oferece densidade literária e qualidade estética suficientes para desmontar argumentos de que o gênero esteja circunscrito ao mero entretenimento. Nesta sua quarta obra de ficção, Frederico Toscano – que em 2015 ficou em terceiro lugar no Prêmio Jabuti com o livro À francesa: a belle èpoque do comer e do beber no Recife e em 2022 foi semifinalista do Prêmio Oceanos com a coletânea de contos O rinoceronte na parede –, se firma como notável artífice do horror. É o atento observador central de um edifício invadido pela lama do passado e assolado pelos tremores do presente, na iminência de desabar. Como a cidade, o estado, o país – enfim, o mundo que o abriga.
Oscar Nestarez é escritor, tradutor e pesquisador da literatura de horror