Tão belo quanto lúdico e triste romance Mariana Salomão Carrara

Escritora paulistana denuncia a exploração do trabalho e a contaminação por agrotóxicos em "A árvore mais sozinha do mundo"

“O que uma árvore tem para fazer o dia inteiro é espiar os humanos por cima. É um ângulo um pouco sórdido, porque eles julgam que vigiando por cima há somente Deus, se tanto”, diz a árvore solitária, narradora do próprio drama e dos que à sua sombra recorrem: o casal Carlos e Guerlinda e os filhos Alice, Maria e Pedro, além da avó, Elvira.

Não é só a árvore que conta essa história. O espelho de origem colonial portuguesa reflete, literalmente, o que se passa com a família de agricultores. Daí vem o modo de falar um tanto diferente dos brasileiros. Da caminhonete modelo Rural também chega um vocabulário mais típico dos trabalhadores da terra. E é assim que o leitor consegue distinguir a mudança de narração, em primeira pessoa, do tão belo quanto lúdico e triste romance A árvore mais sozinha do mundo, da escritora paulistana Mariana Salomão Carrara (Todavia, 2024).

Do alto de sua sabedoria, a árvore tenta justificar a solidão a qual a condenaram. “Ninguém cresce melhor que ninguém, os nutrientes todos distribuídos na justa medida de um vigor uníssono. Mas deve ter sido mesmo por amor que me deixaram isolada, tudo isso aqui só pra mim. E de amor eles é que sabem”.

Há uma poesia delicada, e até lúdica, nessa literatura de denúncia que retrata uma dura realidade social de exploração que se esconde no véu da subjetividade dos sentimentos cotidianos

Talvez não. O sustento da família vem da produção de tabaco. A lida é dura, acaba com a saúde. Ainda mais porque todo mundo fica exposto ao agrotóxico aplicado no roçado. Desconfia-se até que o veneno afeta a saúde do mais novo, Pedro. A crise climática também os expõe às intempéries do tempo. Se chove ou seca demais, a plantação não resiste. E aí amargam o prejuízo. Não há muita comida porque o espaço destinado ao plantio fica todo para o famigerado tabaco. “Vão arando, adubando, pulverizando, irrigando, cada dia uma praga diferente para combater (...) Não há família mais talentosa, tenho certeza”.

Há uma poesia delicada, e até lúdica, nessa literatura de denúncia que retrata uma dura realidade social de exploração que se esconde no véu da subjetividade dos sentimentos cotidianos.

Não é fácil criar animais, alimentá-los e depois levar à boca faminta. Menos mal do que a criação desumana e o abate em proporções industriais. Galinhas, porcos e cabras são diferentes de cães e gatos? Como permitir que as crianças frequentem a escola se é preciso utilizar a mão de obra delas para o plantio e a colheita?

A fronteira entre o humano e o desumano recai na subsistência, que por sua vez esbarra na exploração. Contrai-se dívidas de empréstimos, porque a venda do produto passa por atravessadores, que oferecem muito pouco pelo trabalho braçal.

A visão lúdica do mundo deixa os pequenos mais cedo do que outras crianças com recursos. A vida se torna um arrastar de corrente. E o indivíduo, um morto-vivo a cumprir seu amargo destino de exploração e de contaminação por agrotóxicos.

Mariana Salomão Carrara nasceu em 1986 e além de escritora é defensora pública. Já foi indicada ao Jabuti duas vezes pelos livros Se deus me chamar não vou (Nós, 2019) e É sempre a hora da nossa morte amém (Nós, 2021). Este último também foi indicado ao Prêmio São Paulo de Literatura, honraria que arrematou com Não fossem as sílabas do sábado (Nós, 2022).

A árvore mais sozinha do mundo | Mariana Salomão Carrara | Editoria Todavia | 208 páginas | R$ 49,90