Sr. Loverman dá uma espiada do outro lado do muro

Bernardine Evaristo destrincha, em Sr. Loverman, os meandros do que é ser negro no Reino Unido

De Londres

Antes de você ler essa resenha, esse parágrafo foi escrito sete vezes. Mon dieu, Morris! E não digo apenas reescrito. Digo criado no caos, caminhando em diversas direções, como um ator que hesita entre a improvisação e o texto interpretado, tal e qual o script. Poderia ter dito que Sr. Loverman (Companhia das Letras)  é o novo velho livro da celebrada autora anglo-nigeriana Bernardine Evaristo, lançado no Brasil para os órfãos de Garota, mulher, outras. Também poderia lembrar que ali está o embrião da estrutura do que viria ser o livro que a catapultou ao seleto time dos escritores mais inovadores da literatura contemporânea ocidental. Ou ainda que lá está a sua marca, batizada por Evaristo de fusion fiction, os longos períodos sem pontuação num transe poético de prosa ágil intercalada com narrativas e diálogos carregados de humor.

Também alertaria que, diferente de Garota, mulher, outras, não há 12 personagens e, sim, três principais e mais um punhado de outros periféricos. Ainda assim, não ficaria satisfeita e tentaria explicar: Sr. Loverman é um experimento radical de uma autora que não acredita na luta entre o bem e o mal. Apontaria que importantes referências literárias dela estão naquelas páginas – Toni Morrison, James Baldwin e Derek Walcott. Ler um livro da Bernardine Evaristo é uma experiência que te joga para vários lados.

Agora que desisti da oitava versão, já ficam aclimatados ao universo da autora. Evaristo já revelou inúmeras vezes que a reescrita é um dos princípios primordiais do seu processo criativo. Lançado em 2013 no Reino Unido, e sétimo livro dela, Sr. Loverman parte da vida afetiva de Barry, um imigrante gay nascido na Antígua, de 74 anos, que carrega uma existência tripla. Casado com Carmel, ele tem uma relação paralela desde a adolescência com Morris e se aventura com desconhecidos no escuro do parque. Bernadine destrincha a partir deste recorte os meandros do que é ser negro no Reino Unido.  Ela constrói de maneira muito meticulosa esse personagem que, assim como a autora, prefere se beneficiar do sistema para conquistar um lugar ao sol (contém ironia: apenas 30%, em média, dos dias em Londres são azuis).

Barry é um landlord, um imigrante que depois de anos em Londres, vive de maneira bastante confortável, comprando casas, reformando estes imóveis, para alugá-los a outros imigrantes (raro um britânico não ter sua própria casa). Ele é misógino, horroriza-se com o desleixo de Carmel e desdenha dos grupos organizados de minorias – “Não gosto de enfrentar o assim chamado ‘sistema’  como aqueles exibicionistas gays que o Morris tanto ama. Gosto de me infiltrar no sistema e me beneficiar dele”. Este é um conceito que vemos no projeto literário de Evaristo, não só nos seus protagonistas, mas sobretudo na biografia dela.

Evaristo é professora de escrita criativa  na Universidade de Brunel, presidente da Royal Society of Literature e membra honorária da American Academy of Arts and Sciences. O ativismo dela não é exercido em coletivos (mas lá atrás fundou junto com duas amigas a companhia Theatre of Black Women ), nem muito menos de maneira festiva. Ela se infiltra de maneira pragmática no sistema já estabelecido para ocupar espaços de poder.

Evaristo monta estratégias de diálogo com o establishment sem perder de vista a ancestralidade, dispensando qualquer ingenuidade ou ressentimento. Ao ser a primeira mulher negra a ganhar o Booker Prizer (2019) com Garota, mulher, outras, ela abriu uma cratera na tradição na cena literária britânica. Recentemente, recebeu duras críticas dos membros mais antigos da RSL que acusaram a gestão dela de ser etarista e contrária à liberdade de expressão. Tudo começou quando foi acusada de não ter defendido o autor Salman Rushdie, depois de ter sofrido um ataque à faca em 2022 durante um evento literário em Nova York. E também por não expressar apoio a poeta Kate Clanchy, dispensada pela própria editora que publicou o seu livro de memórias Some kids I taught and what they taught me depois de ter sido acusada de usar estereótipos raciais na obra que levou o Orwell Prize (2020).

Evaristo, em entrevista ao The Guardian, defende a instituição:  “Não podemos tomar lados em controvérsias e assuntos ligados no âmbito particular dos escritores. A organização tem a obrigação de se manter imparcial”. A polêmica não para por aí. Antigos integrantes a acusam de ter baixado o nível da RSL ao nomear novos membros. O autor Philip Hensher diz que Evaristo trouxe para a instituição “um membro do privilégio e outros dois não muito qualificados”. Ela rebate: “Esta é uma velha tática da elite literária londrina apoiada pelo status quo. Nós estamos de acordo com as boas práticas do século XXI”.

O grande triunfo de Evaristo é mostrar os seus personagens sem filtros, com todas as nuances que carregam. Barry pode ser afetuoso quando elogia o curry de Carmel, mas um machista que nunca quis aprender a cozinhar. E também um sacana ao deixar Morris, seu amor desde os 14 anos, em banho-maria à espera que ele se divorcie de Carmel, que, por sua vez, desconfia erroneamente que Barry dorme com outras mulheres e ainda assim não quer a princípio deixá-lo. A humanidade destes personagens cria uma empatia profunda no leitor.

Apesar de não ser tão afiado e sofisticado quanto Garota, mulher, outras, o estilo experimental da autora já está muito bem-definido no livro, assim como seu apego pelas cenas detalhadas e carregadas de ambiguidade. Evaristo é da mesma geração de Zadie Smith e Rachel Cusk, mas a linguagem dela é menos carrancuda e blasé. A autora investiga os pormenores da diáspora africana e rasga a capa de valores britânicos com mais leveza e autocrítica ferina. Evaristo mapeia temas universais – orientação sexual, classe, tradição versus modernidade, envelhecimento e autodescoberta, desafios da vida urbana e multiculturalismo, pertencimento e imigração, colorismo, racismo, relacionamentos familiares e intergeracionais. A religião não escapa. Lá está Carmel e suas amigas chaleirando os manda-chuvas da igreja que enriquecem à base de doações e tem suas relações homoafetivas mascaradas. Também vemos o próprio Barry bancar a escola privada do neto Daniel (apenas 7% daqueles em idade escolar no Reino Unido frequentam o ensino privado) num gesto de quem sabe jogar xadrez por estas bandas se as condições permitirem. Oxbridge vem sendo pressionada há anos para aumentar o número de ofertas para alunos da rede pública e, sendo assim, apesar do processo demonstrar algum avanço, ele ainda é lento. Essa realidade faz com que os alunos da elite britânica tenham procurado cada vez mais universidades estadunidenses. Daniel logo aplica para Harvard e garante uma bolsa integral de estudos.

A apropriação cultural também é abordada através do namorado de Donna, a filha mais velha de Barry e Carmel, um inglês branco de família aristocrática que mora numa ocupação e tem dreadlocks. Mais pra frente, vamos saber que aquilo era só uma fase e que ele se estabelece como produtor de alimentos orgânicos e doador de bombas de água para países africanos. A relação com Maxine, a filha caçula, expõe a proximidade entre pai e filha. É também através de Maxine que conhecemos mais a fundo o mundo da moda com seus códigos que abraçam a anorexia e práticas de bullying. O DNA de Garota, mulher, outras, está nas duas filhas de Carmel e Barry. Evaristo já confirmou que, ao concluir  o Sr. Loverman desejou explorar mais a fundo o universo feminino e não binário de identidade negra.

É interessante ver no que se transformou Barry desde que chegou à Inglaterra de navio. Ele continua com expressões do inglês caribenho, que marcam a sua origem, e com o sotaque de que não resta dúvida que ele vem de Antígua. A tradução de Camila von Holdefer é primorosa e fiel à fluidez do original. Com o passar dos anos, Barry vai incorporando ao inglês a afetação de um vocabulário afrancesado, jogado como cereja do bolo, em discursos de ironia. Também vemos citações de Shakespeare e filósofos gregos. Barry apesar de ter passaporte britânico, vestir ternos bem-cortados no estilo dandy saville row e frequentar lugares caros em Mayfair,  um dos bairros mais sofisticados de Londres,  continua morando em Stoke-Newington, na parte leste da cidade, com uma forte presença caribenha, mas que já mostra sinais de gentrificação na primeira década dos anos 2000. Existe uma piada em Londres – quando o supermercado Waitrose chega ao seu bairro, é porque o seu aluguel ou valor da sua casa vai aumentar. Resta-nos saber se você é landlord ou inquilino. Barry mais uma vez entendeu o jogo e trabalhou para ser proprietário,  ainda que prefira Sainsbury, um concorrente menos chique do que Waitrose.

Sr. Loverman é denunciador sem usar do didatismo. Joga luz e dá presença a figuras mais toleradas do que celebradas pela sociedade britânica tradicional. Não adianta se você toma chá em porcelana chinesa, se fala outras línguas, se coleciona carros antigos (entre eles um Jaguar). Você sempre será visto com filtros e enquadrado em estereótipos. Poderíamos dizer que Sr Loverman flerta com o filme  American Fiction (Cord Jefferson) e o Quarto de Giovanni (James Baldwin) e tem pontos a serem ligados com o enredo de  A palavra que resta (Stênio Gardel). Ao terminar a leitura, lembrei-me da canção "You don't know me" (Caetano Veloso) composta durante o  exílio do artista em Londres, do seu disco Transa.

You don’t know me

Bet you’ll never get to know me

You don’t know me at all

Feel so lonely

 

The world is spinning round slowly

There’s nothing you can show me from behind the wall

Show me from behind the wall

C’mon an’ show me from behind the wall 

Show me from behind the wall

C’mon and show me from behind the wall

Penso que Barry daria uma gargalhada nada discreta ao ouvir a canção. E emendaria: “Nossa, o Caetano fez pra mim”.


Manoella Valadares é jornalista e escritora.