A autora mineira Nara Vidal ainda está dentro do avião quando envio uma mensagem pelo WhatsApp para ouvi-la sobre a sua obra literária e o seu premiado romance Puro (Editora Todavia). Ao fundo, vozes fantasmagóricas femininas — enquanto escuto a resposta da escritora com a confirmação da entrevista para esse perfil. Penso na sua personagem Eva. Mas logo os sons se dissipam e ela me diz: “ Você já foi em Genebra? Gente, que cidade feia, ali não é minha praia. Algumas pessoas que moram lá se ofenderam, mas já pedi desculpa”. Essa interlocução da autora tem a essência da sua voz literária — coragem para expor um pensamento sem rodeios, a verdade que dói – forjada na psique humana.
A ideia inicial era logo falar de Puro, mas foi impossível não lembrar o primeiro livro da autora – Sorte (2018). Sem ter uma cópia em papel, fui obrigada a ler no Kindle e logo me impressionei com a construção das personagens mulheres que pareciam quebrar o vidro da tela num pedido de ajuda.
“Sabíamos lá em casa que aquela chuva, a enchente, os móveis arruinados, os ratos que subiam do porão para escapar do afogamento, aquilo era tudo castigo de Deus. A nossa pobreza era também punição do Senhor.” Essas primeiras linhas são do primeiro capítulo de Sorte, o livro que levou o terceiro lugar do prêmio Oceanos em 2019. Cruzo dois passados e agora tenho certeza que as vozes que escutava ao fundo enquanto falava com Vidal, não eram apenas de Eva, mas também de Margareth, narradora das duas primeiras partes do livro: “Início” e “Meio”.
Sorte destrincha os meandros da violência sofrida pelas mulheres na primeira metade do século XIX a partir da religião enquanto instrumento que rege o cotidiano de uma família miserável na Irlanda. Um pai católico opressor em que nada diverge de muitos homens com quem ainda esbarramos na própria família ou no ambiente de trabalho.
Releio alguns capítulos e faço um paralelo entre esse pai de Sorte e a mãe de Eva, protagonista que também intitula o livro, lançado em 2022. Em “Superfície” (primeira parte), confirma-se a obsessão de Nara Vidal pela violência no ambiente familiar a partir da religião e seus desdobramentos: “A primeira decepção que eu dei à mãe foi meu nome. A única vez em que o pai insistiu em falar mais alto. Quis um nome fácil para ajudar na alfabetização. A vó ficou para morrer de desgosto. A mãe fez novena para pedir perdão a Deus por um nome de filha tão mundano, um símbolo do pecado. Tereza, Francisca e Rita era o que ela tinha em mente”.
Eva também leva a três autoras cuja obra desenham melancolia, erotismo e opressão – Tove Ditlevsen, Anaïs Nin e Natalia Ginzburg. Se Ginzburg chama a atenção para as cortinas marrons de um flat soturno em Londres, Nara fala também de um tule marrom de um flat em cima de uma floricultura. Tenho vontade de perguntar se existe alguma intenção em ligar as obras, mas logo lembro que a palavra “sorte” sempre aparece em seus livros.
Voltando à conversa com Nara e o romance Puro, um livro que li como se fosse uma peça de teatro. Com seis livros publicados e mais um a caminho, ela é uma das mais prósperas autoras da literatura brasileira contemporânea. Puro ganhou o prêmio APCA de melhor romance de 2024. Em abril, era o livro mais vendido da Amazon Brasil na categoria História e o 22º no ranking geral no mesmo site de venda, após ser incluído no Clube do livro, do influencer Felipe Neto. Assim, Puro escapa das bolhas literárias e ganha o leitor menos acostumado a uma literatura mais trabalhada nas ambiguidades. Ambientado na cidade fictícia de Santa Graça, aborda a política eugenista e higienista da população brasileira na década de 1930, durante a ditadura do presidente Getúlio Vargas.
Para a crítica literária, professora e pesquisadora de cinema e literatura Paula Jacob, “apesar de curto, o Puro é um livro imenso, nele a gente começa a entender essa construção hipócrita da nossa sociedade, que julga, mas, na verdade, no privado está fazendo justamente o contrário, está fazendo justamente aquilo que está criticando. Esse contraponto entre ação e pensamento se costura num fluxo de consciência. A estrutura também é assombrosa, não é um romance clássico. É a mistura de diversos gêneros literários”.
Puro também tem uma edição portuguesa pela prestigiada Relógio D’Água e em breve ganha traduções na França (La Place Éditions), Bélgica (Printim Editions) e Estados Unidos. Puro também chamou a atenção do diretor Jefferson De pela temática e teve seus direitos autorais vendidos para o cinema. Para a psicanalista, pesquisadora e tradutora Fabiane Secches, “Nara Vidal é uma autora muito original, que embora aborde temas de relevância e ampla repercussão contemporânea, ela o faz a partir de um prisma particular, valendo-se de outras referências literárias, como a dramaturgia, para trazer o romance ou a novela, como é o caso de Puro, um formato que se destaca em meio à produção do nosso tempo”.
Sobre os procedimentos empregados em de Puro, Nara Vidal afirma que se interessa há anos por essa questão de método. “Curiosamente, tenho interesse pelos procedimentos dos outros e muito pouca ideia do meu próprio. Talvez esse distanciamento em relação ao método da minha escrita se dê porque a escrita é, pra mim, quase que uma experiência da qual não me lembro bem. Tenho sempre que fazer um esforço para me lembrar de como escrevi meus textos de ficção. Por isso entendo bem quando há escritores que digam que escrevem de forma intuitiva. Escrevo de forma intuitiva e caótica”.
Nara reconhece que poucas vezes soube, de fato, o que queria escrever. Revela que já aconteceu de ter um final de um conto e precisar chegar até ele. “Mas é raro.” Ela afirma que isso não tem nada a ver com insolência ou negligência. “Levo o trabalho de escrever profundamente a sério. Só não consigo criar um texto de ficção através de um plano. Gosto e preciso ter um esvaziamento, uma liberdade de ser movida.”
A autora é radicada na Inglaterra há 23 anos, mas não tem certeza sobre o impacto deste fato na escrita dela. Acredita que, de alguma maneira, a língua, tanto a portuguesa quanto a inglesa, se contaminam: uma língua serve para comunicar e a comunicação tende a ser desenvolvida de forma a facilitar a elaboração de pensamentos e ideias. “É possível que a língua sofra com as impurezas da vivência num lugar onde não se fala a língua que aprendi e através da qual eu crio. Em termos de temática, não há impacto direto. O tema se dá através da nossa experiência e curiosidade pelo mundo. Basta estar de olhos e ouvidos abertos para ser tocado por alguma história, imagem, sensação e isso pode acontecer em qualquer lugar.”
Fecho o computador e vou até a estante para resgatar Mapas para desaparecer (Farias e Silva), livro de contos de Vidal. Fecho os olhos e abro uma página de maneira aleatória. Dou de cara com Luciana Espírito Santo – “Luciana é uma escritora. É o que dizem os perfis do Instagram e do Facebook. Não tem Twitter. Luciana quer ser respeitada. Curte as fotos e postagens de todas as pessoas influentes, mas quem curte suas postagens são sempre as tias e primas do interior. Luciana saiu do interior para vencer, não para carregar essa família para todo lado”. Sinto um incômodo profundo nesse parágrafo e decido levá-lo para a minha sessão de análise. Me dou outra chance, mas desta vez vou procurar algo mais palatável e não encontro. E meu corpo, nesse incômodo, se sente muito vivo, talvez como o de Eva. É nessa ferida exposta que se dá a escrita de Vidal. E o leitor que se vire com o curativo.
Nara Vidal nasceu em Guarani (Minas Gerais). Pergunto o quanto de Minas tem na sua escrita. “É possível uma contradição minha, já que, de fato, pensando nisso, no impacto que a língua tem na escrita, talvez essa língua/linguagem radical, de origem, essa que nos constrói e expõe apareça mais do que eu consigo localizar. Se escrevemos, como eu acredito, a partir de nós mesmos – isso não se relaciona, necessariamente com autoficção aqui –, então trazemos com a gente uma linguagem, uma forma de ver as coisas que nos foi ensinada coreografada com a língua”, explica. Ela reconhece que em Puro há muito de Minas e não houve esforço para isso. E que também em Sorte, na parte final, a linguagem e as vozes são completamente da cidade onde nasceu. “Eva também traz alguma coisa de lá porque eu escrevi com o que eu tenho que é essa forma de falar, ler e sentir atrelados a um espaço, a uma cartografia. O livro de ficção que estou escrevendo também tem esse elemento. Já os livros de não ficção eu proponho um cuidado meu em não entrar em demasia nesse território. É uma escolha estética mesmo.”
Quero confirmar a suspeita sobre um possível fio-condutor na obra de Vidal e ela sem titubear responde: “O único compromisso que tenho quando vou escrever é escrever honestamente, ou seja, ter coerência com o meu desejo sem sacrificar nada, sem qualquer influência externa de tendência ou ideologia ou comportamento. Assim, não vejo tanta interseção entre os meus trabalhos. Claro, há coisas que podemos agrupar como Sorte e Puro que nascem de pontos em narrativas históricas. Mas são muito diferentes na forma, assim como o Eva. Mais que o tema, me interessa a forma de escrever”. Para Vidal, esses elementos chamam a atenção. “Tenho um tesão imenso quando escrevo a partir dessa consciência de que sou dona da minha escrita. Essa noção de liberdade total é muito atraente.” Ela lembra quando Virginia Woolf rascunhava Mrs. Dalloway e anotou num canto de página uma ideia que surgiu: que ela deveria escrever sobre o que quisesse escrever. “É um pouco como estar sozinha e gostar dessa autonomia. De fato, é delicioso poder fazer o que queremos na criação de um texto. Se o resultado funciona ou não é outra coisa. Mas ter como ponto de partida a honestidade para com o próprio desejo e experimentar o que quer que seja, livre de moralismo, julgamento ou boa educação, é algo sublime.”
Para o crítico literário Alysson Oliveira e doutor em Letras pela USP, o que chama a atenção na obra de Vidal é com ela lida com a mulher na sociedade contemporânea em seus enfrentamentos e vitórias . “E tudo isso ela faz embalada numa prosa de sofisticada elaboração formal. Mesmo num romance histórico, como Sorte, ela tem a habilidade de fazer uma ligação entre passado e presente. Ao contar, nesse livro, a história de uma jovem irlandesa que vem ao Brasil, Nara mostra como as coisas mudam para continuar as mesmas. E em Puro, novamente olhando o passado que se reflete no presente, tenho a impressão de que ela ampliou de forma muito sagaz suas temáticas e investigações literárias. E sempre me impressiona a concisão, como ela consegue abordar temas complexos com muita criatividade e profundidade.”
Vidal é uma das poucas autoras da literatura contemporânea brasileira que não se relaciona diretamente com a escrita de si. Ela diz que fica impressionada com a obsessão de escritores e leitores em procurar uma verdade, algo que posso traçar e provar como verídico. “Mas na arte e na linguagem, a quem interessa se é real ou não? Aliás, o termo real é complexo. Se eu contar muito bem-contada a história de um morcego que sugou todo o sangue da minha avó, é possível que alguém acredite. Não no fato de que isso não interessa, mas na história que eu contei porque é uma linguagem, uma narrativa, uma proposta de jogo, de criação. Por isso, não tenho assim tanto a escrever sobre mim. E confesso que, às vezes, posso mudar uma coisa aqui e outra ali em alguma entrevista se a pergunta é a mesma. O fato é que eu não me lembro tão bem das origens das coisas. Por isso, posso até contar uma mentira, mas tento narrar a mentira com toda a honestidade possível, com uma linguagem que interesse o ouvinte/ leitor.”
Sobre projetos futuros, Nara já trabalha numa análise sobre temas primordiais expostos por Virginia Woolf a partir de Um teto todo seu há cerca de100 anos. “Quero comparar notas, ver o que foi transformado e reivindicado com a alteração e emancipação política, social, cultural e financeira da mulher. Como esses elementos aparecem no nosso trabalho de escrita. Questões que preocupavam a autora como autonomia financeira, autoria, plágio, oportunidade de movimento, direito à privacidade para criar, são questões que ainda atravessam nosso tempo e que ainda impactam na literatura feita por mulheres.”
Desconfio de que as vozes que eu escutava no primeiro parágrafo são de Virgínias deste presente. Virgínias essas, que permeiam os livros de Nara. Muitos dos seus contos, por exemplo, levam nome de mulheres. Então, para concluir (por enquanto) a conversa, pergunto o que ela diria a Woolf. A resposta vem afiada, mas ainda assim cheia de ternura e humor. “Passamos a viajar sozinhas, traduzir a partir de muitas línguas, escrever ensaios variados, amar mulheres e homens, beber bons vinhos, mas a casa própria, Virgínia, continua caríssima.”
Assim como o preço das flores frescas, admiradas por Eva e Mrs. Dalloway, que após três dias vão começar a apodrecer e incensar cheiro podre pela casa e nos lembrar que é hora de ir mais uma vez na banquinha em busca de lírios, cravos e delfínios.