Rachele Gigli: punk in natura

"[...] será mesmo assim? Perguntou a si mesma. O que faz de um homem um ser livre?” Rachele Gigli, "A panela-melancia - História de uma criança indiana"

O ano de 2024 tem sido repleto de atividades para a artista italiana Rachele Gigli. Participei, recentemente, em Trieste e Grado, dos dois primeiros lançamentos do conto A panela-melancia - História de uma criança indiana / La pentola-anguria - Storia di um bambino indiano, edição bilíngue em italiano e português, com tradução minha, curada com grande esmero pela editora brasileira Confraria do Vento.

O livro tem sido considerado um pequeno tesouro para refletir, em níveis diversos, o caráter multidisciplinar da obra de arte. Todas as ilustrações presentes no livro são de autoria da própria Rachele, o que revela uma segunda dimensão da metanarrativa que nos propõe a autora.

Com um modo de contar que privilegia clareza e transparência, Rachele se posiciona de forma distinta das explícitas rupturas que habitualmente caracterizam o experimentalismo literário e da urgência de mostrar-se radicalmente contracorrente. Mesmo assim, o seu conto é, pensando com o teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), profundamente polifônico e dialógico. O eixo narrativo deste delicado opúsculo é móvel, transforma instabilidade e proliferação em estruturas de equilíbrio estilístico.

O percurso biográfico de Rachele, marcado por uma vida que transita entre a cidade e o campo, do urbano à Natureza, urbis et natura, é uma das razões que fazem de A panela-melancia um texto marcadamente contrapontístico que rompe, sem fazer alaridos, a rigidez de limites que, porventura, possam apresentar-se a um autor. Rachele nutriu-se, nos seus anos de formação, da literatura russa e do neobarroco hispano-americano. Uma das características deste conto que muito me chamou a atenção é o poder de instaurar-se como uma narrativa quase fílmica; o leitor é convidado a imergir nas imagens que insurgem da história.

A famiglia estética de Rachele Gigli abraça Dostoiévski, Anna Akhmátova, Alejo Carpentier, Lezama Lima, Severo Sarduy, Paulo Leminski, Virginia Woolf, Emily Dickinson, Tina Modotti, Emma Goldman, Simone Weil, Frida Kahlo, Clarice Lispector e Giorgia O’Keeffe, entre outros. A sua narrativa é também política e dá voz contra a exploração do trabalho infantil, contra a violência e opressão às mulheres e a voracidade do sistema econômico que agride a Natureza. Neste aspecto, Rachele filia-se ao “realismo dialético”, de Luis Martín-Santos (1924-1964), autor de Tiempo de silencio e de Tiempo de destrucción, outra forte referência entre suas influências literárias.

A geração de Rachele, pós-anos de chumbo (anni di piombo) cresce entre os conflitos políticos denunciados e combatidos pelos centros sociais italianos, lugares de agregação, discussão e ação políticas, entre anarquistas, comunistas, música punk, grafiteiros e ativismo ambiental. Por isso, Rachele é punk in natura.

É neste âmbito que, também no início de 2024, Rachele expôs na Eslovênia o seu projeto Micorrize que compreende desenhos em nanquim, fotografias, uma tela e duas bioesculturas. Micorrize, a exposição apresentada na Eslovênia, entre os meses de janeiro e março, é um manifesto estético dos poderes pouco conhecidos que pertencem ao universo da micologia, ramo da biologia conhecido mais superficialmente pelo estudo dos fungos.

A dimensão artística de uma experiência vivida in natura é traduzida e apresentada como uma experiência esotérica, aberta a todos, pública. Rachele propõe a descoberta do underground como elemento estilístico. Micorrize, Micorrizas em português, é o plural italiano de micorriza, a associação simbiótica entre um fungo e uma planta, do grego μύκης (mýkēs) “cogumelo” e ῥίζα (rhíza) “raiz”. Micorrize é arte underground num sentido profundo e semanticamente amplo. Para além do diálogo formal com os fumetti, os quadrinhos, e diversos aspectos da psicodelia, a artista nos conduz por uma leitura heraclitiana do mundo de cima e do mundo de baixo, como na prescrição alquímica do Trismegisto no seu conhecido Corpus hermeticum (II-III séculos d.C.):

(…) quod est inferius, est sicut quod est superius, et quod est superius, est sicut quod est inferius: ad perpetranda miracula rei unius (…)

(...) o que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está em baixo: para cumprir o milagre da coisa única (…)

Algumas obras permitem explicitamente esta leitura, a cidade destruída pela guerra está em simbiose com o underground, com um mundo não totalmente indiferente à violência humana. Neste sentido, Micorrize é uma ação política que nos faz refletir sobre os perigos reais que ameaçam o homem e a sua relação com a Natureza, é sobre a indiscutível desarmonia que nos assalta todos os dias nos meios de comunicação através, por exemplo, do debate sobre o aquecimento global e outras graves consequências resultantes do predatório modo de produção capitalista.

É também uma proposta de reflexão sobre as perspectivas benéficas do uso de cogumelos no combate a essas mesmas danosas consequências. A sua arte distancia-nos da constante antropocêntrica e dá-nos o direito de escolher por uma vida em simbiose. Micorrize coloca-nos no centro do relevante debate sobre as consequências de uma relação imprudente com as assimetrias ambientais. Micorrize é uma expressão dialógica da diversidade como um multiverso de arte e natureza.

O caráter underground da arte de Rachele, o seu ser punk in natura, revela a sua transcendente fome de realidade, o seu profundo amor por aquilo que se instaura, agonicamente, entre os limites e os excessos que impõe o mundo. Daí a necessidade de conhecê-lo através de detalhes e fragmentos do real, para reerguê-lo dos escombros, reconstruindo-o através da sua estética polivalente ao sonhá-lo dialeticamente diferente, talvez novo, mas não o mesmo. A obra de Rachele Gigli condensa, poeticamente, signos e sonhos de realidades que nos faz dançar sobre as ruínas do mundo.

Rachele Gigli nasceu em Grado, uma pequena ilha entre Veneza e Trieste, na parte extrema das planícies que se estendem dos Alpes Julianos até o Adriático, na região do Friuli-Venezia Giulia, no nordeste da Itália. Estudou na escola experimental Villa Greppi, em Monticello Brianza, concluindo os estudos linguísticos com um ensaio sobre Virginia Woolf. Inicia a universidade em Milão, a cidade onde cresceu, mudando-se, posteriormente, para Roma, onde se forma em Língua e Literaturas Estrangeiras na Università Roma Tre com uma tese dedicada ao escritor espanhol Luis Martín-Santos.

Viveu em Portugal e Espanha, com temporadas na França, Inglaterra, México e Rússia. Frequentou o doutorado na Universidade Nova de Lisboa para aprofundar questões relacionadas à estética neobarroca da literatura hispano-americana. Ao regressar à Itália, trabalha como tradutora, sem abandonar as artes, principalmente a fotografia, e publica em diversas revistas especializadas, assim como em libretos para casas discográficas.

Atraída pela multidisciplinaridade, desenvolve colaborações várias em âmbito musical, com uma rica produção fotográfica e de videoarte. No Recife, em 2009, realiza na Livraria Cultura a sua primeira exposição individual, o projeto Spazi Polifonici / Espaços Polifônicos, onde propõe um diálogo entre música e fotografia através de três culturas, a italiana, a portuguesa e a brasileira. Participa em diversas coletivas das edições do Urban Photo Awards. Sucessivamente expõe em Roma, no Museu Pigorini, e em Verona, na galeria de arte A2.

Em 2013 faz parte do projeto Naked City apresentado no Macro de Roma. Uma das suas fotos é escolhida para capa do livro Il regime dell’Urbe: politica, economia e potere a Roma, de Ernesto D’Albergo e Giulio Moini (Carocci, 2015).

Desde 2020, temos desenvolvido diversas colaborações. Rachele dirige e edita videoperformances, com composições e improvisações minhas, tais como: Rishi: about persuasion, para o ACT4Music, e L’elemento Umano, para o festival internacional de música improvisada Improfest 2021, mas que é também exibido na Itália no Museu Lombroso, em Volterra, onde passa a fazer parte do seu precioso arquivo. Em 2022, dirige o vídeo heha apresentado em Veneza, na Fondazione Archivio Luigi Nono, e no Centre for Contemporary Arts (CCA), de Glasgow, durante o GIOfest XV.