O navio de Teseu nos mares da ficção científica

Com adaptação cinematográfica pelo premiado Bong Joon Ho," Mickey7", de Edward Ashton, publicado no Brasil, em 2023, aborda questões como clonagem e colonização, em um futuro distante

Imagine a seguinte situação: avanços tecnológicos permitem que sua consciência, suas memórias e tudo o que define a sua identidade sejam transferidos a um outro corpo; esta nova pessoa seria você? Ou seria alguém diferente se passando por você, vivendo sua vida? No processo de transmissão de dados de um corpo para outro, o seu eu iria junto? Ou a transmissão para um novo corpo implicaria a morte do corpo anterior? 

Em linhas resumidas, este é o paradoxo do teletransporte, uma questão que há décadas vem tirando o sono de filósofos e cientistas no geral. É também a base do romance de ficção científica Mickey7, do estadunidense Edward Ashton. Publicado no Brasil pela Planeta no final de 2023, o livro foi adaptado para o cinema por Bong Joon Ho (Parasita, Okja), com Robert Pattinson encabeçando o elenco, pré-estreia em sessão de gala especial no Festival de Berlim, e lançamento mundial nos cinemas em 7 de março. Tão boa foi a recepção que o romance já rendeu uma sequência, Antimatter blues (Blues da Antimatéria), publicada em 2023 e ainda sem edição por aqui.

A história de Mickey7 se passa cerca de mil anos no futuro, na missão colonizadora de um planeta gelado e hostil chamado Niflheim. É narrada por Mickey Barnes, um homem cujo trabalho é, literalmente, morrer: seu cargo na colônia é o de prescindível, alguém recrutado para tarefas perigosas e muitas vezes letais. Depois de morrer em serviço, Mickey é “reciclado” por meio de um sofisticado processo envolvendo o upload de sua identidade e a composição de um corpo idêntico ao seu. É, de maneira nada glamurosa, imortal.

O número 7 indica que Mickey havia falecido seis vezes, e já no início do romance está prestes a perecer novamente. Em uma missão de reconhecimento pelos arredores do planeta, ele pisa em falso e cai em uma fenda. Pede socorro às naves que o escoltam, mas a salvação não vem; haveria muito risco para pilotos e para os equipamentos. Ele é, afinal, um prescindível, e nessa condição é deixado para morrer. Com um agravante: os pilotos que poderiam resgatá-lo são um amigo, Berto, e sua namorada, Nasha. Ambos lhe desejam boa sorte e se despedem com um ordinário “até amanhã”.

Acontece que Mickey 7, no momento culminante, não se mostra um bom profissional, pois não morre. Consegue escapar e, ao voltar à base no dia seguinte e entrar em seu quarto, depara-se com Mickey 8, sua nova instanciação, dormindo tranquilamente em sua cama. Assim se estabelece o conflito central do romance de Ashton, que se desenvolve em duas dimensões: dentro do espaço psicológico do próprio narrador e protagonista, confrontado com a materialização do paradoxo do teletransporte; e na colônia de Niflheim, onde a duplicação de prescindíveis é proibida. As cerca de duzentas pessoas encarregadas de colonizar o planeta são controladas pela mão de ferro de Marshall, um militar que, por questões religiosas, considera Mickey uma “abominação”. 

A narração em primeira pessoa e no tempo presente é um dos trunfos do romance. Enquanto desperta nossa empatia em relação aos conflitos do protagonista, o recurso também diferencia os Mickeys. Tomamos o partido do 7, o narrador, e seu clone passa a figurar como um possível vilão da história, pois encontra maneiras diferentes de sabotar a já duríssima vida de ambos. A fome, por exemplo, é uma ameaça constante: o salário dos colonizadores é pago em calorias que lhes são permitidas ingerir durante um dia. Os vencimentos de um prescindível são baixos, e Mickey 7 ainda precisa dividir seu alimento com o 8. 

A propósito, a atenção aos detalhes é outro acerto de Ashton. O romance se enquadraria na categoria de ficção científica hard pela precisão com a qual o autor fundamenta a obra, com foco especial na física quântica. À maneira de figuras renomadas como Arthur C. Clarke ou Philip K. Dick, Edward Ashton não economiza dados sobre antimatéria e fótons, mas sem desequilibrar sua narração. A carga científica em Mickey7 é suficiente para nos convencer da viabilidade de suas proposições, sem soar cansativa — graças à leveza e à comicidade do relato. O tom escolhido por Ashton é o de um humor sombrio, matizado pelo cinismo de um narrador com plena consciência de sua condição. Mickey 7 navega por um cotidiano hostil, saltando de morte em morte (algumas brutais), enfrentando a fome, lidando com o desprezo de seus colegas de missão, encarando a animosidade de Marshall e tendo de aceitar as imposições de Mickey 8, sob o pretexto de que ele, 7, está “sobrando”. Até a namorada Nasha entra nessa estranha partilha.

A minúcia narrativa vai além da ciência. Balanceando as descrições objetivas e as imersões na psique de seu protagonista, Ashton logra compor um universo não só verossímil, mas vibrante. O fato de Mickey ser um historiador justifica o seu conhecimento a respeito do contexto em que se deu a “Diáspora” na Terra, mil anos antes, e as missões interplanetárias que seguiram. Em obras assim, dependentes de um complexo sistema com leis e estruturas diferentes das nossas, o didatismo é sempre um risco; são comuns as notas de rodapé e os glossários, como no caso de Duna, de Frank Herbert. 

Mas Ashton opta por incorporar o embasamento histórico e científico à diegese. E o faz com habilidade, por meio de uma estilística sem qualquer pretensão ao refinamento, mas límpida e coloquial. Em seus raros momentos de ócio, Mickey 7 lê a respeito dos avanços científicos que permitiram a duplicação de seres humanos. Também se informa sobre missões interplanetárias bem-sucedidas ou fracassadas. Assim, encadeando a rotina do protagonista às digressões de suas leituras, Ashton vai construindo seu rico universo ficcional. Neste âmbito cabe destacar a tradução de Aline Storto Pereira, que preservou a fluidez da prosa do autor e encontrou soluções inteligentes para termos capitais do livro, como “prescindível” para “expendable” — cuja tradução literal seria “dispensável”, mas que não dá conta da exata condição do protagonista na obra.

A leitura de Mickey7 é rápida, de fato, mas de modo algum ligeira ou rasteira. Por se tratar de um romance alicerçado em ideias em vez de ações, são raros os embates contra as criaturas alienígenas que povoam Niflheim, os rastejadores. O que move a trama adiante são os dilemas de Mickey, seus conflitos com Marshall, Berto e Nasha, e uma engenhosa bomba relógio armada logo no início da história, relacionada à possível descoberta de seu duplo. 

Subjazendo tudo está o paradoxo do teletransporte, aqui transfigurado na certeira metáfora do navio de Teseu. Em suas longas viagens marítimas, o mítico rei fundador de Atenas precisou realizar seguidas manutenções em sua embarcação, trocando peças de tempos em tempos. Em certo momento, todos os componentes originais haviam sido substituídos. Surge a pergunta: o navio de Teseu que concluiu as viagens é o mesmo que as iniciou? Tal é o dilema proposto a Mickey 7 por Gemma, a instrutora que o prepara para a função de prescindível. Todo o romance se organiza em busca dessa resposta, o que implica uma profunda transformação de seu protagonista, em um processo que é coroado pelo notável desfecho da obra. 

Assim, imaginando o futuro enquanto remete ao passado, Mickey7 cumpre a vocação da ficção científica de qualidade, que é servir-se da especulação tecnológica para perscrutar, de maneira ao mesmo tempo aprofundada e minuciosa, dilemas atemporais. Mais de quatro mil anos separam o navio de Teseu e um prescindível, mas os dilemas propostos por ambos são exatamente os mesmos. Por muito mais tempo nos indagamos sobre a imortalidade, que aqui é apresentada de maneira dolorosa, até mesmo devastadora. Quais respostas a leitura de Ashton nos oferece? Nenhuma exata, felizmente; apenas vislumbres ou possibilidades. Precisamos fabular porque somos inquietos e curiosos. Enquanto assim permanecermos, a boa literatura também permanecerá. 

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

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