O ambiente de extrema polarização e a difícil equação entre verdade, mentira, interesses autênticos e escusos servem de pano de fundo para o recém-publicado Passeio com o gigante, romance em que Michel Laub retoma o tema da herança judaica. Se Diário da queda (2011) apresenta os efeitos emocionais e afetivos das vítimas da Segunda Guerra sobre o núcleo familiar, aqui a questão identitária tem como marco temporal a ascensão da extrema-direita no Brasil, o que conduz a narrativa ao cenário político atual.
A adesão de um grupo de judeus ricos à mesma ideologia fascista que pautou a máquina assassina do Holocausto e que, na pandemia do Covid no Brasil, reiterou o pacto com a morte, leva a indagações sobre o modo de honrar antepassados; o preço da indiferença face a outros grupos igualmente vítimas da perseguição e opressão; a culpa; e o enfrentamento de movimentos cíclicos de antissemitismo, que, em sua nova versão, ressurge identificado ao antissionismo.
O protagonista David Riesman vivencia a luta entre narrativas sobre momentos cruciais da sua vida: infância pobre, como bolsista deslocado numa escola de ricos e protegido pela mãe; juventude, como líder de organização judaica que prega a solidariedade; vida adulta, quando ascende financeira e socialmente graças ao suporte do sogro rico e reacionário; e viuvez precoce.
Seu percurso chega ao leitor de forma não linear. Contextos históricos de alta complexidade e de radicalismos à flor da pele favorecem simplificações, mas a obra de Michel Laub não comporta caricatura nem toma partido. A ironia instala uma zona de suspeição propícia à dúvida e afinada com o humor angustiado e não raro sarcástico que distingue a cultura judaica. Conforme afirma Jankélévitch, quando se imagina aprisionar a ironia a um sentido, ela escapa ardilosamente.
Na abertura do livro, o poderoso advogado judeu prepara em 2018 uma palestra dirigida a empresários da comunidade. Como se deduz a seguir, é uma iniciativa de apoio à campanha do candidato de extrema-direita, não nomeado. Anos depois, ao repaginar o discurso para o mesmo público na sede de sua empresa, exibe domínio da oratória: boa aparência, estudo das pausas e o truque de invocar um herói “esquecido no tempo”, pois “as plateias gostavam desses começos”. No caso, um judeu norte-americano cujas habilidades nada têm a ver com os traços assimilados ao “judeu de óculos no gueto”. Trata-se do boxeador Benny Leonard, ídolo nos anos de 1920, símbolo de um novo ideal de judeu: menos cérebro e mais músculos.
Mas o ironista instala incertezas, e o glamour do evento social será minado aos poucos, como se Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, murmurasse ao pé do ouvido: “Monstros existem, mas são tão poucos, que não podem ser considerados realmente perigosos. Muito mais perigosos são os cidadãos comuns, os burocratas prontos para agir sem fazer perguntas”.
O antagonismo entre ideias e ideais cresce através do coro, que o autor importa do teatro grego e clássico. Laub potencializa qualitativamente a voz coletiva que toma de assalto o protagonista, com provocações e memórias incontornáveis. Além de exprimir opiniões, levantar questões sociais e éticas e revelar segredos, o expediente dramático define a estrutura da obra, em forma de contraponto. O coro não oferece caminho de salvação, saída mítica ou messiânica. É constituído por artistas e intelectuais judeus de diversos lugares e épocas, todos combativos, às vezes ao preço da própria vida, como Olga Benário, deportada para campo de concentração por Getúlio Vargas, e Antônio José da Silva, dramaturgo morto pela Inquisição.
O romance não deixa de apontar os efeitos traumáticos de sucessivos e milenares genocídios sofridos pelos judeus e que assombram gerações. Mas defender-se do antissemitismo tem agora outro ingrediente: o Estado de Israel. Como conciliar os que sustentam o direito à autodefesa e a necessidade de permanente vigilância, os que até hoje renegam a existência do país e os extremistas de ambos os lados que refutam a coexistência de dois Estados?
Por outro lado, como aceitar o subterfúgio de Davi que justifica biblicamente o pacto político e comercial feito com evangélicos? E as apropriações da bandeira de Israel, contestadas pela esquerda judaica? E a divisão simplista pela qual “O judeu angustiado é o esqueleto dos campos, o boxeador Benny Leonard é o soldado de Israel. (...) Kafka e Philip Roth são o esqueleto. Woody Allen é o esqueleto”.
A referência ao cineasta aproxima Davi, hábil em se esconder sob um lacônico “pois é”, do protagonista inescrupuloso de Match point, filme em que o diretor opera com primor o efeito do coro sobre a plateia. Sem dilemas morais, ambos não vestem o papel de herói trágico ou anti-herói. Sequer de alguém digno de pena. A diferença é que o romance já começa considerando o antes e o depois, causas e consequências. Dois momentos de vida correm lado a lado. Em Passeio com o gigante paira o fantasma da catástrofe sanitária que ceifou tantas vidas. Inclusive a da esposa de Davi, por falta de ar. Enquanto ele percorre, desnorteado, um imaginário labirinto de salas num hospital, deve prestar contas das decisões e alianças. “O maior morticínio do século XXI começa dois anos depois do meu discurso”, desabafa, esmagado pela crueldade do governo que ele e outros brasileiros apoiaram, por ação ou inação.
Sob os refletores da pandemia, Davi simboliza o choque entre a antiga imagem de autossuficiência e a de agora, que o acusa de falta de discernimento, controle e autonomia. A memória coletiva asfixia: “traí a história dos judeus, desprezei o que nós passamos ao longo dos séculos, é isso que vocês querem que eu diga?”. Enquanto judeu, é cobrado em dobro, como se concentrasse as contradições de outros que foram alvo de deboche e discriminação por parte do presidente fascista, mas também o elegeram.
Em dado momento, Davi alega que não podia prever a tragédia. De fato, ninguém é adivinho. O “futuro”, tema palpitante no livro, está presente como subtítulo da novela A hora da estrela, de Clarice Lispector, “precedido por um ponto final e seguido de outro ponto final”, sugerindo a falta de opções para Macabéa, nordestina miserável. Mas o contexto é outro. Há meios e recursos para refletir sobre o próprio destino. Trazendo a ficção para a realidade e repercutindo o pensamento de Walter Benjamin, o romance parece dizer: o futuro está aqui, no presente e no passado. Não deve ser confiscado por decisões meramente pragmáticas ou autopiedade. Tragédias humanitárias não autorizam mais a falta de senso histórico.
Clarisse Fukelman, doutora em Literatura Brasileira, dramaturga, pesquisadora e curadora de exposições e seminários. Entre outros, organizou o livro Eu assino embaixo: biografia, memória e cultura, publicado pela EdUerj.