No romance Ao perdedor, os pombos, de Marcelo Conde, Eduardo, é um publicitário carioca que vive às sombras de um antigo sucesso, tendo que lidar com o recente Alzheimer da mãe. Numa trama aparentemente simples, o autor mostra as várias contradições da própria masculinidade urbana, tóxica, baseada no seu comportamento grotesco, frio, egoísta. Para ele, o que realmente importa é levar mulheres para a cama, tomar uísque, fumar e se manter refém do passado de glória.
Eduardo é alguém que ama aproveitar a vida, sem pensar muito no futuro. Um personagem que só tem pensamentos sobre sexo com as mulheres do ambiente de trabalho, entre outras tantas que cruzam o seu caminho. A chegada da mãe, no entanto, muda o equilíbrio da narrativa, trazendo um toque de instabilidade a esse personagem livre das convenções. Ele é um profissional de meia-idade (aproximadamente 45 anos de idade) em um momento de desilusão, já consciente do fim iminente de sua carreira, manifestando o esvanecimento do talento que um dia teve. Alguém que segue em frente na vida, sem pensar demais, com os rabiscos que lhe restam de prestígio. O personagem interage com as mulheres, navegando pela rotina dos dias, sem saber exatamente seu destino, levando o leitor na mesma jornada incerta. A convivência difícil com a mãe enferma faz com que ele mude seu jeito de ser.
Conforme se adapta à rotina materna, a dele também é modificada, tanto a profissional como a social. Dessa forma, damos um mergulho na mente e atitudes deste publicitário e seu passado é revelado. Inicialmente, como aprendiz em uma firma de advocacia, depois enveredando para a publicidade. São algumas situações hilariantes, que provocam risos, sobre os bastidores da propaganda e das agências, verdades inconvenientes narradas com habilidade pelo narrador, de forma não linear, descrevendo os pormenores desse universo.
Eduardo vive aceleradamente. A fragilidade da mãe o faz revisitar sua infância, de memórias carinhosas. Essas lembranças se entrelaçam também na mente confusa da mãe. Um filho que se comunicava apenas por telefone com ela e nunca a via pessoalmente com frequência. O distanciamento afetivo da mãe (a mãe que moldou o caráter do filho), a relação de conflito, é a base da história. Não por acaso, o destino o coloca na posição de cuidador dessa mulher que ele nunca teve intimidade. Eduardo precisa estar atento à rotina dela, entre um gole e outro do seu uísque, enquanto a fumaça do cigarro dança no ar.
A escrita de Marcelo Conde nos leva a acreditar que ele registra tudo o que vê, com uma incrível fluidez. Uma perspectiva de 360 graus do dia a dia. Trata-se de uma abordagem que enfatiza muito o aspecto externo do personagem, a partir da estrutura narrativa que conecta o leitor e a história, com momentos de exuberância pura.
Eduardo carrega consigo sonhos e desilusões. Está na fase do azar, onde tudo de ruim acontece ao mesmo tempo. Uma situação profissional inesperada o leva a repensar diversos aspectos de si. É alguém que precisa enfrentar os dois extremos impostos pelo vida.
Boa parte da narrativa se desenvolve durante os relacionamentos passageiros do protagonista com diversas mulheres. As cenas de sexo são bem desenhadas. Fogem do lugar comum. Longe de ser pornográfica, apresenta momentos de erotismo sem subterfúgios, com uma linguagem casual e direta, diálogos cativantes e autênticos. É um romance repleto de nuances, no qual o autor demonstra habilidade ao modular a voz e o caráter de cada personagem.
Ao perdedor, os pombos se divide em duas partes. A primeira acompanha Eduardo tentando se encontrar em meio a tantas surpresas desagradáveis, com as quais nunca imaginou lidar. Assistir a sua jornada é entender o mundo real, distante das propagandas publicitárias de sucesso, que ele idealizou e ainda cria. É compreender que a vida é uma caixinha de surpresas prestes a explodir. Especialmente para indivíduos como Eduardo, que nunca se preocupou muito com o futuro. Viver o presente, para ele, revela-se a grande cilada de sua existência.
Em sua trajetória incerta, marcada por momentos de triunfo, o protagonista começa a se conhecer melhor e a entender a dimensão da desgraça em que se encontra. Ao tentar escapar da crise, nos oferece uma perspectiva que alterna momentos de solidão, frustração e apreensão em relação ao que está por vir. Algo que ele antes nunca havia considerado. Surpreendentemente, Eduardo encontra forças onde menos esperava: na mãe debilitada.
Em Ao perdedor, os pombos, Marcelo Conde procura fugir do clichê carioca (palco do romance). Tudo induz o leitor à reflexão. Afinal, é impossível ignorar a realidade em que se vive e a busca incessante por felicidade e prazeres efêmeros, ciente de que o futuro, a cada dia, bate à porta cobrando seu preço.
Na segunda parte, acompanhamos o personagem imerso na rotina dos cuidados com a mãe. Uma imensa colcha de retalhos, tecida no pequeno apartamento que se torna o seu universo. Na melancolia que envolve o protagonista e a mãe. Vivendo, ambos, como se fosse o mesmo dia repetidamente, enquanto ele busca novas oportunidades profissionais.
Eduardo sente o peso da culpa por ter negligenciado a mãe a vida inteira, justo quando ela ainda gozava de lucidez. O leitor acompanha os detalhes do relacionamento entre mãe e filho, relação-limite entre o remorso e o estorvo. Nesta segunda parte da obra, Eduardo começa a desmoronar junto com ela e passa a ter atitudes impensadas. São momentos que saem do controle, com ele afogando-se no álcool, no ciclo destrutivo que o atira no abismo. O leitor presencia a sua decadência psíquica e moral, após as quedas sucessivas em pouco tempo.
A situação de Eduardo incomoda, poise está só, fruto do estilo de vida que escolheu. Sem laços de amizade, filhos ou relações estáveis. Alguém que chegou ao auge, despencou e tem dificuldade de lidar consigo mesmo. A fronteira entre a realidade e a loucura se torna turva. O que é real e o que é fruto da imaginação? Tudo isso intercalado com momentos de doçura, quando o protagonista tem de lidar inevitavelmente com a fragilidade materna.
A cada página, acompanhamos uma história densa, mas onde há pitadas de leveza, humor e entretenimento, em suas inúmeras camadas. É quase impossível não se deixar se envolver. Sobretudo por conta da complexidade da mente humana, que pode ser, ao mesmo tempo, fonte de orgulho e genialidade, mas também de ruína, como a face sombria da existência de quem perde a memória. Como o fundo do poço pode ser tão profundo, tornando a volta à superfície impossível.
Marcelo Conde transmite um frescor narrativo que torna a leitura fácil. Consegue prender o leitor através das situações em que o personagem principal se envolve. Um romance sincero, no qual a decepção reina no ambiente extremamente tóxico e pode levar à decadência e a um mergulho no vazio. Uma história onde a fantasia e a loucura se misturam na fragmentação da realidade e o tempo avança para todos. Alguns com mais, outros com menos sofrimento.
Trechos do livro:
“Em toda agência esse momento é igual. Mudam os nomes, as contas, mas no fundo as pessoas conversam sobre a mesma coisa, do mesmo jeito. Os medos e as possibilidades são comuns. E por mais que você tenha certeza de que vai empurrado da prancha, a hora da demissão guarda sempre uma surpresa, a morte de uma esperança moribunda. O último galho em que você se agarrava se quebra e, a partir daí, há só o ar. A sala aumenta, a agência fica grande demais, você sente a nuca gelar como se alguém estivesse soprando”.
“Eu não sentia íntimo o suficiente da minha mãe nem para abraçá-la com força por mais do que dois segundos. Não lembro de ter falado que a amava, por vergonha de me ver dizendo essas palavras para uma pessoa de quem eu não conseguia me aproximar”.
“A tortura desse silêncio é aguardar indefinidamente pelo seu fim, sem saber o momento em que surgirão outros assuntos ou uma série de perguntas que não podem ser respondidas senão através de mentiras leves, um tratamento infantil a alguém bem mais velho do que você, como se essa pessoa tivesse a inocência dos que não viveram nada, prontas para acreditar em tudo”.
“Limpar o cocô do corpo da sua mãe não é a pior coisa do mundo. Na verdade, o pior é quando você deixa de limpar direito por alguns dias até ser inevitável tirar as crostas de merda que ficam grudadas na pele. É preciso esfregar. Eu uso uma esponja tipo aquelas Scotch Brite, que deixam a pele da minha mãe irritada até criar pequenas feridas. Se você não trata todo banho como uma busca séria pela limpeza total, essas cascas de cocô se escondem entre as dobras da pele. E não dá para imaginar a quantidade de dobras que uma pessoa de idade tem. A bunda, as coxas, tudo é fenda, tudo é cânion. Uma pressa, um noje, uma ânsia de vômito e você deixa passar um cantinho onde a merda se petrifica e gruda firme como se tivesse velcro”.
Ney Anderson é jornalista, escritor e crítico literário. Editor do site Angústia Criadora: www.angustiacriadora.com / @angustiacriadora
Ao perdedor, os pombos
Autor: Marcelo Conde
Editora: Aboio
[ 256 páginas ] [ R$ 69,90 ]