É fevereiro de 2025. Enquanto o Brasil se vestia de confetes e serpentinas para brincar o Carnaval, o STF discutia a Lei de Anistia de 1979 sobre as mortes do ex-deputado federal Rubens Paiva e outras duas vítimas da ditadura militar, ocorrida entre 1964 e 1985; e o filme Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles Jr., baseado no desaparecimento do político, ganhava o primeiro Oscar – de Melhor Filme Internacional – para o Brasil. A conquista foi celebrada em todos os polos de folia. Afinal, a alegria é também uma forma de resistência. Mércia Albuquerque (1934-2003), uma das maiores defensoras de presos políticos do País, sabia bem disso. Mulher nordestina, foi advogada de mais de 500 deles, em plenos anos de chumbo. Não baixava a cabeça para a truculência do Estado. Ao mesmo tempo em que era amante confessa dos frevos de bloco pernambucanos, e há registros dela no Pátio de São Pedro, centro do Recife, cantando a plenos pulmões os versos de Capiba: “nós somos madeira de lei que cupim não rói”.
Mércia é a principal personagem do monólogo Lady Tempestade, interpretado por Andréa Beltrão e dirigido por Yara Novaes, pela segunda vez em cartaz no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro após três indicações ao Prêmio Shell, e seis indicações ao Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A peça seguirá em turnê por Recife, Natal, Fortaleza e Campina Grande até julho deste ano.
No teatro, vemos Andréa Beltrão, vestida com uma camiseta branca, calça preta e cabelos esvoaçantes. Ela olha no fundo dos olhos do espectador e confessa: “Como é bom esquecer! O esquecimento é uma dádiva, um tesão, um boy lixo cheio de dedos entrando, comendo, mastigando, fodendo (...) Mas não é estranho que as coisas que eu mais desejei esquecer sejam as coisas que jamais consegui esquecer? (...) Eu não queria ter recebido aquele diário, mas agora que eu recebi não dá mais pra fingir que não li o que eu li, ou que eu esqueci”.
O diário a que ela se referia era de Mércia, que deixou valiosos relatos dos seus dias durante o que talvez tenham sido os anos mais difíceis da história política do Brasil, 1973 e 1974. Os cadernos foram entregues por seu marido a Roberto Monte, do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular do Rio Grande do Norte e descobertos por Yara de Novais em vias de serem publicados pela editora Potiguarana no livro Diários de 1973-1974. Nos escritos, Mércia conta em detalhes as lutas que precisou travar contra o Estado para defender centenas de presos, e principalmente narra a angústia de acolher mães de filhos desaparecidos no apartamento 52 do Edifício Ouro, centro do Recife, onde morava.
“Jamais vou me esquecer do olhar de Dona Rosália. No dia 8 de janeiro de 1973, o filho dela será preso no trabalho (...) Doutora por favor ache meu filho antes que seja morto, ela dirá, e depois de implorar vai desmaiar várias vezes (...) Eu prometo, Rosália, encontrarei seu rapaz”.
Alagoana, radicada no Recife, Mércia cavucou documentos proibidos, denunciou torturadores, salvou centenas de vidas e, por isso, foi presa 12 vezes, numa delas chegou a passar quatro horas com os olhos vendados numa viatura, com um revólver na cabeça.
Em outra ocasião, recebeu a visita dos militares, a quem ela chamava de “gafanhotos”, que foram buscá-la em casa numa madrugada para prestar depoimento no quartel. Mércia tinha um filho recém-nascido e precisou deixá-lo às pressas aos cuidados da vizinha, sem saber se iria voltar. Os relatos são fortíssimos, e muitas páginas estão rasuradas, não se sabe exatamente o por quê ou por quem.
Em Lady Tempestade, a dramaturgia de Silvia Gomez passeia pela história cravando as datas dos absurdos, revelando dados, e expondo nomes reais das pessoas que cruzaram com Mércia naquele tempo. Ao mesmo tempo que é fiel às datas, lugares e relatos, como um teatro documental, Silvia também abre margem para as camadas de imaginação que aquela história traz. Nesse sentido, a sua narrativa também parece beber do “romance-em-cena”, gênero dramatúrgico criado por Aderbal Freire-Filho, em que o texto extrapola a palavra e provoca liberdade cênica e poética ilimitada do palco. O texto de Silvia sugere sons, ecos, imagens invisíveis, que se tornam reais para o espectador.
O texto não é uma biografia de Mércia, mas uma ficcionalização daquelas memórias existentes nos diários, bem como de outras fontes que Silvia encontrou no meio de sua pesquisa, como teses de mestrado, doutorado, algumas poucas notícias em jornais e duas fitas gravadas em entrevista ao jornalista Samarone Lima, jornalista e autor do livro Zé - José Carlos Novais Da Mata Machado. Uma Reportagem. A narrativa é costurada entre o passado, o presente e o futuro. Neles se encontram a personagem de Mércia e A., uma atriz que, sem querer, tem acesso àqueles diários.
Apesar da ficção, essa parte também é verdade. Andréa Beltrão teve acesso aos diários de Mércia sem querer, por insistência da diretora Yara, que durante as gravações de um filme ouviu falar sobre a história de Mércia, até então desconhecida do grande público. Andréa relutou o quanto pode sobre fazer algo com aqueles relatos, afinal, vinha de uma temporada longa interpretando Antígona, que, na mitologia, também enfrenta a tirania de um rei, e cuja atuação lhe rendeu um prêmio APCA.
Só que, uma vez tendo esbarrado com a história da advogada, num momento em que boa parte do Brasil - encabeçada pela extrema direita - flerta novamente com o obscurantismo da ditadura, esquecer não era uma opção. “O silêncio só interessa aos que deveriam ter sido julgados, mas não foram. Fazer teatro, para mim, é levantar o tapete e deixar o que está escondido aparecer, receber luz. Porque, enquanto a gente se lembrar, existe a esperança de mudar o rumo da história”, afirma a atriz.
E aqui abre-se um espaço para reconhecer a jornada artística de Andréa Beltrão, atenta ao seu tempo, e que há tantos anos usa do seu talento para também extrair o melhor do seu público. É curioso imaginar que ela e a amiga Fernanda Torres – aclamada por sua atuação como a viúva Eunice Paiva em Ainda estou aqui, a qual rendeu uma indicação de Melhor Atriz ao Oscar – arrancaram tantos sorrisos sinceros na teledramaturgia com Sueli e Fátima (Tapas & beijos) estão, nesse exato momento de suas carreiras, resgatando em nós brasileiros sentimentos de urgência por justiça, liberdade de expressão, união pela democracia e pelos direitos humanos, e usando suas vozes contra qualquer tipo de vilania e opressão. Andréa e Fernanda são baluartes da arte brasileira. “O dever de um artista é refletir o seu tempo”, dizia a cantora Nina Simone, e elas escutaram.
Indignação e raiva
Era 2 de abril de 1964, Mércia caminhava pela Avenida 17 de Agosto, próximo à Praça de Casa Forte, bairro da Zona Norte do Recife, em pleno sol do meio-dia, e assistiu à cena de um homem sendo arrastado por um jipe do exército com uma corda no pescoço, só de calção. Seus pés sangravam muito e uma multidão olhava a cena em silêncio. Mércia reconheceu aquele homem. Era Gregório Bezerra, ex-líder camponês, que estaria sendo levado de volta para o quartel, onde sofreria inúmeras outras torturas.
“Ela voltou pra casa chorando. Estava com 29 anos e iniciara sua vida de advogada um ano antes. Chorava de indignação e raiva. Não só pela cena medonha, mas pela letargia das pessoas (...) A inércia da população recifense foi como um espelho. Ela também não disse uma palavra. Mas ao chegar em casa avisou ao marido: “Vou defender Gregório Bezerra, e quem mais precisar de mim”, narra um trecho de Lady Tempestade, que de peça virou obra literária escrita por Silvia Gomez, publicada pela editora Cobogó. Além do texto integral da peça, a edição inclui uma apresentação da autora, e textos de Yara de Novaes, que assina a direção, Andrea Beltrão – e do próprio Samarone. O nome Lady Tempestade, aliás, vem de um trecho dos seus escritos em que Mércia se compara à mãe: “minha mãe é bonança, eu não, sou tempestade”.
O diário, que virou monólogo no teatro e depois livro, vai ganhar também, em breve, uma versão para o cinema. Com direção de Maurício Farias, o filme já está em fase de captação. Mais uma obra que contribui com a difícil missão de fazer o brasileiro não esquecer o inesquecível.
Serviço:
Lady Tempestade
Autora: Silvia Gomes
Editora: Cobogó
Páginas: 96
Preço: 46,80