Um livro que abre os braços – ou melhor, as orelhas – para dar aquele abraço em todas as mulheres e nos dizer que precisamos ter coragem. “Coragem de olhar para dentro e investigar tudo o que carregamos”, escreve a jornalista pernambucana radicada em São Paulo Daniela Arrais, 41 anos. Em Para todas as mulheres que não têm coragem (BestSeller, 2024), a autora dá o exemplo e cria coragem para pular, sem rede de segurança, no precipício da escrita fora dos muros virtuais da Internet. Neste campo ela já é bastante conhecida e bem-sucedida como uma das criadoras da empresa e página do Instagram @contente.vc, um veículo de comunicação digital que promove conversas sobre temas contemporâneos em comunidade. São mais de 700 mil seguidores e mais de 30 milhões de acessos por mês.
Daniela queria mais. Queria se expressar em primeira pessoa, publicar um livro físico e dividir, conversar, contar para outras mulheres sobre o quanto o fenômeno da impostora – sobre o qual vem pesquisando há uns bons anos – está tão impregnado no ser feminino que não conseguimos enxergar sua atuação sabotadora, fruto da sociedade machista e patriarcal na qual todas somos criadas. Queria falar da dor de perder um irmão, um mês antes do nascimento do seu filho; da maternidade compartilhada; do preconceito por ter “saído do armário”. A escrita, essa arma poderosa, apareceu como tábua de salvação para o momento difícil que atravessou. “A escrita estava sendo minha boia naquele mar revolto. Escrevi para me salvar”.
Não foi fácil. “Nas redes eu sempre julgava demais o que os outros escreviam sobre si mesmos. Então parei para pensar: se estou julgando tanto a vida alheia, deve haver algo errado comigo”. Foi quando se deparou com o livro A coragem de ser imperfeito, da pesquisadora norte-americana Brené Brown. A leitura levantou um pensamento que Daniela tomou como lição: o de aceitar críticas apenas daqueles que estão expostos na arena da Internet. “Mergulhei nesse livro e pensei: que bom que há um nome – fenômeno da impostora – para o nosso pensamento autossabotador. O tempo inteiro eu acho que não estou pronta”, comenta.
Na crise da pandemia de Covid-19, quando não havia mais para onde correr senão para dentro de si, começou a se libertar da ideia errônea de que o conhecimento só é legítimo de ser transmitido se houver o aval da academia. “Postava entrevistas de 15 minutos, tempo gigantesco para uma rede social. Entrevistei mulheres como a (pernambucana e comunicadora digital) Dandara Pagu e ela fala que, se pensasse na ausência de formação acadêmica para escrever, não teria seguido adiante. Em muitos momentos, não ficamos do tamanho que nós realmente temos por causa da sociedade patriarcal. Avançamos muito, mas ainda estamos disputando cada espaço. Que saco! Temos que pensar no quanto estamos sendo elitistas ao dar importância somente ao saber acadêmico”, desabafa a autora.
Daniela conta que é escritora desde que se entende por gente. “Mas eu não colocava minha cara. Tudo se passava em terceira pessoa, como no jornalismo”. Não que Daniela não se sinta mais jornalista. Tanto é que assim ela é definida no começo desse texto. Só não queria o tipo de jornalismo que fazia em veículos como Folha de S.Paulo, ou mesmo no blog Don’t touch my moleskine, da qual foi fundadora e onde atuava como curadora de conteúdo, seja de comportamento, arte, música, decoração… “Sempre me apresento como jornalista, mas fui entendendo que nesse jornalismo cabiam muitos formatos. Quando a empresa começou, em 2010, já não era mais uma jornalista tradicional, com exceção da ética. Tenho uma pluralidade que me abraça”.
Pluralidade que sempre encontrou na Internet, essa eterna terra estranha e perigosa para muita gente. “Estamos marcando presença muito forte no reality show da própria vida. Vender ostentação é perigoso. Mas há muita Internet dentro da Internet. Há muita gente voltando para esse lugar autoral com newsletters e comunidades sobre os mais variados assuntos, de onde tem saído muitos livros, principalmente de mulheres”, analisa.
Na Internet, Daniela sempre preferiu o papel de protagonista. Jamais em um monólogo, sempre em comunidade, e com o palco lotado. Acolher sempre foi o verbo mais assertivo a conjugar do que aceitar ou ser aceita. Foi acolhida nos feedbacks imediatos que a Internet lhe dá diariamente, há 15 anos, tanto na página pessoal do Instagram, quanto na profissional. “É preciso parar de tratar a Internet por esses números exponenciais absurdos. Quando penso, por exemplo, em mil seguidores, são mil pessoas. Cabem na minha casa? Não. Então não é um número a ser ignorado. Queria que saíssemos da lógica dos influenciadores que falam do estilo de vida e pensar no que estamos criando com nossas conversas. Quanto mais atuamos na Internet, mais chances teremos de fazer com que essa experiência seja mais criativa e sirva a outras pessoas”.
Como a própria escritora. Novata no mundo editorial, ela não esperava a acolhida que veio a galope após o livro publicado. Na mesma medida da coragem, o medo acompanhou Daniela durante todo o processo da escrita, que durou dois anos: “Será que o que eu estava escrevendo tinha alguma relevância?”. O retorno das leitoras deu a resposta. “Tem sido muito diferente de entender o tempo do livro. Em um país onde perdemos sete milhões de leitores, quando vejo alguém que tem diante de si tantos títulos para ler, mas escolhe comprar meu livro, tirar tempo para lê-lo e ainda me mandar mensagem dizendo o quanto o livro a fez pensar, é uma alegria muito grande”, confessa.
O caráter de conversa do livro aparece principalmente nas perguntas feitas às leitoras, com direito a espaço em branco para que sejam respondidas. Um recurso interativo que Daniela quis levar para as páginas impressas. “Ele também tem uma cara de virada de ano, de parar e refletir. Para mim foi uma sofrência tão grande escrever que não parei para pensar na parte boa, a do retorno das leitoras”.
O retorno vem também no modo presencial, nos lançamentos pelos cantos do Brasil que Daniela sempre transforma em conversas. “Quero ver o outro. E acho que existe uma força nisso. Não é à toa que atingimos tantas pessoas. Juntos criamos saídas para entender o mundo e fazer as mudanças necessárias. Não quero um conhecimento encastelado, do mundo masculino do pódio”.
E logo lembra da inédita conquista brasileira do prêmio Globo de Ouro pela atriz Fernanda Torres com o filme Ainda estou aqui. “Foi muito legal ver todo mundo vibrando com Fernanda. Foi muito bom ouvir também a fala da (atriz norte-americana) Demi Moore sobre nunca sermos suficientemente magras, bonitas e bem-sucedidas”. A atriz, vencedora do prêmio equivalente de melhor atriz, mas na categoria Comédia/Musical, disse que ouviu de uma amiga: “Nunca seremos suficientes, mas você só pode enxergar seu valor se parar de se medir com essa régua”.
“Devemos festejar também as conquistas das pessoas ao nosso redor. Muita gente precisa estar nas redes vendendo o próprio peixe para sobreviver. Vivemos em um lugar de precarização, de conquistar o seu espaço. Quanto mais pessoas chegarem lá, será bom para todo mundo. Sem essa de farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Como todo mundo, Daniela não está imune aos efeitos nocivos do feed infinito do Instagram. Segundo o Dicionário Oxford, a expressão mais usada em 2024 foi brain rot, que significa cérebro apodrecido, referindo-se à deterioração do intelecto decorrente do consumo excessivo de conteúdo na Internet. “Não há um dia em que a Internet não me dê algo maravilhoso. Mas também sofro com o tempo gasto diante da tela”. Descobriu-se ansiosa, fez terapia, tomou remédio. Quando concedeu entrevista para essa matéria, Daniela estava de férias na Bahia, relaxando da loucura. O que anda fazendo? Lendo loucamente. Já estou no quinto livro. É o que me tira da ansiedade das redes sociais. Também faço parte da turma do cérebro derretido. E tem que ser livro físico porque amo os projetos gráficos. Gosto de grifar, dobrar…”
Esse é o primeiro de muitos livros. Qual será o próximo? “Um livro sobre a Contente. Já temos contrato assinado. Queremos fazer uma imersão na influência digital em nossas vidas”, revela.