Em ‘O Ninho’, Newton Moreno revela ecos do nazismo em nossos canaviais

Peça "O ninho, um recado da raiz" investiga a transmissão do trauma e os abismos entre memória e identidade, com uma dramaturgia impregnada de ecos e silêncios

Em 2009, enquanto pesquisava para a Cia. Os Fofos Encenam (SP) sobre o patriarcado feudalista da cana-de-açúcar, o dramaturgo Newton Moreno se deparou com histórias de exílios e reencontros que ecoavam tanto na memória nordestina quanto na herança de conflitos europeus. Desse cruzamento de tempos e geografias nasceu O ninho, um recado da raiz, peça que investiga a transmissão do trauma e os abismos entre memória e identidade.

Com uma dramaturgia impregnada de ecos e silêncios, a obra desfia camadas de pertencimento e reconciliação, ancorada no canavial como metáfora da história e da cicatriz. No centro da trama, um jovem busca descobrir a verdade dolorosa sobre sua família, movendo-se entre o Nordeste brasileiro e a Alemanha, entre exílios íntimos e históricos, entre o trauma pessoal e os escombros coletivos da guerra. Sua genealogia não se dá apenas no sangue, mas no entrechoque entre o que se herda e o que se recusa.

Moreno, autor de obras como Agreste e As centenárias, reafirma sua assinatura: um lirismo de lâmina afiada, o trânsito entre tradição e ruptura, a exploração de mitologias nordestinas como vetores de resistência e dor.

O tecido dramatúrgico de O Ninho é povoado por personagens que condensam símbolos e emoções. O Rapaz, atravessado pela incerteza de sua linhagem, desenha sua identidade na interrogação. A Senhora, mãe adotiva, encarna o afeto que escapa ao biológico. O Avô, memória viva de perseguições e ressentimentos, assombra o presente. O Rapaz Alemão e a Mãe Alemã expandem o diálogo sobre exílio e sobrevivência, enquanto a Moça lampeja como possibilidade de reconstrução. O Senhor da Fábrica opera como engrenagem do poder, lembrando que, na história, há sempre um sistema que suga e recicla vidas.

Para escrever a peça, Newton Moreno partiu do estudo sobre a formação de células nazistas em Pernambuco, na década de 1940. A investigação o levou ao Arquivo Público do Estado e ao trabalho da professora Marília Gama da Silva e da pesquisadora Adriana Dias. Além desse levantamento documental, Moreno também se debruçou sobre a obra da historiadora Susan Lill, que examina a questão dos judeus e do antissemitismo, apontando a presença de nazistas na cidade de Paulista, no Grande Recife.

Neste mergulho, o dramaturgo encontrou registros de propagandistas, espiões e documentos variados, que indicavam uma relação mais complexa entre Pernambuco e o nazismo do que se imaginava.

A poética do texto reside no jogo entre a dureza dos cortes e a fluidez dos diálogos. O ovo suspenso no centro da narrativa, signo do ciclo da vida e da ruptura, encarna o equilíbrio instável entre nascimento e destruição – conectando-se à simbologia do filme O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman, que retrata os anos que antecederam o surgimento do nazismo na Alemanha.

A fragmentação estrutural não é um mero recurso formal, mas espelha a descontinuidade da memória e a sobreposição de tempos que reverberam sem se fechar.

Em um dos momentos mais pungentes, o Rapaz confronta sua mãe adotiva: "Quem é minha mãe? Sempre devotei este altar à senhora. Em seu nome, as minhas preces a cada degrau que me conduzia ao sono toda noite."

O perdão, tema central da peça, nunca é um gesto pacificado. O embate entre o Avô e o Rapaz Alemão encena o peso da história e a impossibilidade de absolvição: "Eu o perdoo. Deus está muito distante para te dar este perdão, mas ele está em mim quando te absolvo."

Ao trazer a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo, O Ninho se aprofunda na culpa histórica e na transmissão do trauma. O Avô vê no Rapaz Alemão um vestígio de um regime de extermínio, e a tensão entre os personagens cristaliza o embate entre memória e responsabilidade. A peça não apenas narra um drama familiar, mas questiona a permanência do autoritarismo e a ilusão de que a história se encerra.

Essa inquietação ecoa no monólogo do Rapaz Alemão: "Enquanto nós o deslembramos, ele poliniza o vírus, quieto e violento. Enquanto isso, ele ramifica, subterrâneo, estudando os planos de extermínio."

Em fevereiro, O Ninho cumpriu temporada no Itaú Cultural, em São Paulo, com Badu Moraes, Jorge de Paula, Kátia Daher, Paulo de Pontes, Rebeca Jamir e Tay Lopez no elenco, direção de Newton Moreno e direção musical de André Badurê e Zeca Baleiro. As apresentações vieram a calhar num momento em que o mundo assiste atônito às ameaças extremistas do presidente norte-americano Donald Trump, acompanha o caos da guerra entre Israel e Palestina e vê ressurgir o fantasma do antissemitismo.

Mais do que um relato de um passado distante, a peça se revela um alerta sobre os fantasmas que, em diferentes formas, continuam a assombrar a sociedade brasileira. A urgência dessa fala ressoa no presente, lembrando que a repetição da história não se dá pelo destino, mas pela omissão. Moreno constrói, assim, um texto que é ao mesmo tempo um chamado e um alerta: olhar para o passado é disputar o futuro.

“O Ninho”, ainda sem previsão de ser publicado em livro, pulsa como um teatro que não acomoda, mas convoca. Um rito de passagem, uma travessia entre ruínas e renascimentos. Ao espectador, resta aceitar o convite ao mergulho, sabendo que a memória, como o canavial, tem raízes fundas – e algumas, inevitavelmente, cortantes.

Mateus Silva é jornalista, mestre em teatro