Choque de ousadia, liberdade e vanguarda em Apollinaire

Poeta francês Guillaume Apollinaire ganha antologia bilíngue organizada, traduzida e anotada por Rodrigo Garcia Lopes

Se Baudelaire foi o poeta que identificou nas experiências de choque da metrópole a marca da sensibilidade moderna, coube a Apollinaire elevar essa percepção à categoria de programa estético – como se reitera na antologia bilíngue Zona e outros poemas, organizada e traduzida por Rodrigo Garcia Lopes.

Nascido em Roma, em 1880, descendente de poloneses (seu nome de batismo era Guglielmo Alberto Wladimiro Alessandro Apollinare de Kostrowitzky), Guillaume Apollinaire participou dos principais movimentos de vanguarda que surgiram no começo de século XX em Paris, onde passou a viver em 1899 após passar a infância e a juventude no sul da França com a mãe, sem nunca ter conhecido o pai.

Em 1913, ano de edição de Álcoois (que traz o poema que dá título à antologia brasileira), lançou A antitradição futurista – Manifesto-síntese e o ensaio Os pintores cubistas: Meditações estéticas, com reproduções de obras de Picasso, Braque, Gris e Picabia, entre outros artistas. Teve seu poema “Árvore” publicado na revista dadaísta Cabaret Voltaire em 1916 e atribui-se a Apollinaire, ainda, a criação do termo Surrealismo.

Ou seja, excetuando-se o Expressionismo (cujo epicentro estava na Alemanha) e o Cubo-futurismo (na Rússia), Apollinaire esteve ligado, com graus diferentes de adesão, a tendências renovadoras que ele preferia enfeixar sob a ideia expressa já no título da conferência “O espírito novo e os poetas”, proferida em 1917, ano anterior a sua morte, aos 38 anos, vítima da epidemia de gripe espanhola.

Tais informações estão presentes na alentada introdução do tradutor Rodrigo Garcia Lopes e na minuciosa cronologia que o poeta paranaense elaborou ao final do volume. Nesses aparatos críticos, temos uma visão detalhada tanto dos vetores estéticos que guiaram a produção de Apollinaire quanto de sua curta e acidentada biografia incluindo o rocambolesco episódio da acusação de coautoria no roubo da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, em 1911.

Embora lateral, vale relembrar o caso: o belga Géry Pieret, ex-secretário de Apollinaire, havia surrupiado do Museu do Louvre estatuetas que acabaram nas mãos de Picasso e do próprio poeta. Pieret não foi o verdadeiro autor do célebre rapto da Gioconda e, sim, o italiano Vincenzo Peruggia. Mas isso não impediu que, ante a repercussão do desaparecimento da Mona Lisa, Apollinaire e Picasso entrassem em pânico e acabassem desastradamente revelando a gatunagem “menor” (o envolvimento como receptadores das estatuetas). Com isso, tornaram-se ainda mais suspeitos e Apollinaire chegou a passar alguns dias de prisão – o crime só seria esclarecido dois anos depois, quando a Mona Lisa foi restituída ao Louvre.

A trama abalou temporariamente a relação pessoal entre Apollinaire e Picasso: temendo ser deportado, o pintor espanhol negou à polícia conhecer seu amigo mais íntimo. Mas, a essa altura, o escritor já se tornara um nome de ampla circulação entre as diferentes vanguardas, incorporando procedimentos cubistas (incluindo a colagem) e futuristas (simultaneidade) aos poemas que iriam formar Álcoois.

Contendo 50 poemas, dos quais Garcia Lopes selecionou e traduziu 26, o livro foi escrito entre 1898 e o ano de sua publicação, mas os textos não foram ordenados por Apollinaire segundo a cronologia da composição. Assim, “Zona”, que abre a coletânea, foi o último a ser feito (ao lado do telegráfico “Cantor”) como explica o tradutor na seção “Comentários” – que, aliás, é outro trunfo da edição, pois constitui uma interpretação contextualizada dos principais versos e das referências que cada poema contém.

Longo e caleidoscópico, “Zona” pode ser considerado um poema-manifesto que ilumina toda a produção de Apollinaire, introduzindo a ideia de síntese e equilíbrio entre “Ordem e Aventura” contida na conferência “O espírito novo e os poetas”. E, embora seja tido como a mais ambiciosa realização poética das vanguardas europeias, “Zona” desnorteia o leitor já em seus três célebres versos iniciais: “No fim você está farto deste mundo antigo / Pastora ó torre Eiffel seu tropel de pontes esta manhã balindo / Você está cheio de viver na antiguidade greco-romana”. 

Sem pontuação (abolida por Apollinaire em todos os seus poemas) e quase sempre em versos livres, o poema combina ímpeto revolucionário e retórica convulsiva, descreve um percurso por Paris atravessado por menções a elementos da era técnico-industrial, mas logo incorpora – sem jamais perder seu tom exortativo, que projeta o porvir da arte – referências mitológicas e do imaginário cristão.

Ou seja, “Zona” expressa de início um estado de saturação com tudo o que é antigo para então – na contramão da retórica bélica do futurismo, que o próprio Apollinaire consagrara no par “destruição/construção” do manifesto Antitradição futurista – passar a um modo de ler a tradição a contrapelo, recolhendo aquilo que pode ser atualizado numa sensibilidade moderna, incluindo desde formas clássicas e simbolistas até uma espiritualidade difusa, órfica, contraposta à iconoclastia vanguardista predominante.

É nesse sentido que “Zona” atordoa. Os primeiros acordes combinam o dissonante e o selvagem, o revolucionário e o anticlerical (como na irônica menção ao Papa Pio X que aparece nas estrofes iniciais) com uma atmosfera evocativa, na qual o turbilhão da cidade engendra simultaneidades que acabam por criar um sistema de vasos comunicantes com jardins amenos de outras metrópoles europeias e com plácidas orlas mediterrâneas.

A imagem da Torre Eiffel como uma pastora que apascenta o tropel da manada humana, numa manhã que bale como rês, se conecta, mais à frente, com a cena em que “Agora você anda por Paris na multidão sozinho / rebanhos de ônibus mugem cruzam seu caminho” – sequência que permite a Garcia Lopes definir “Zona” como “poema-passeio”, dentro da tradição do flâneur baudelairiano (por sua vez tributário do “homem na multidão” de Poe), mas também como “pastoral urbana”: “Paradoxalmente, o poeta nos joga no torvelinho do mundo moderno e urbano (a fervilhante Paris da belle époque) usando imagens do campo (...), além de alusões arcaicas, exóticas e mitológicas”.

Nesse sentido, não seria difícil estabelecer um paralelo entre o poema “Zona” e a música do balé A sagração da primavera, de Stravinsky, que teve sua estreia no mesmo ano da publicação de Álcoois e alterna paganismo violento com passagens de idílico bucolismo – justaposição que reverbera, num registro de atavismos ancestrais, a sinfonia de sons e ruídos colidentes da metrópole moderna.

Num poema extenso como “Zona”, entram também memórias de infância, referências cifradas a amizades, amores e episódios biográficos do poeta, que os comentários do organizador ajudam a compreender. E a alternância de versos livres e brancos com alexandrinos e rimas ora consoantes, ora toantes, cria obstáculos consideráveis para o tradutor.

Em boa parte do poema, inversões na ordem das palavras permitem que Garcia Lopes recrie o esquema rímico de Apollinaire sem se afastar do original: “Et tu bois cet alcool brûlant comme ta vie/ Ta vie que tu bois comme une eau-de-vie”, dístico ébrio traduzido por “Você bebe o álcool que é sua vida ardente / Vida bebida como uma aguardente”.

Em alguns casos, porém, ele é obrigado a soluções mais engenhosas, como na sequência “Le phénix ce bûcher qui soi-même s’engendre / Un instant voile tout de son ardente cendre”, vertida como “Fênix pira funérea a nascer de si / Por um instante se cobre com suas cinzas”. No primeiro verso, “a nascer de si” recria a aliteração de “soi-même s’engendre” (magistral circularidade sonora e imagética para representar a ave mítica que se engendra das próprias cinzas), com uma perda da rima perfeita com o verso seguinte do original que, todavia, é reposta pela assonância de “si” e da sílaba tônica de “cinzas”.

Desafios ainda maiores aparecem ao longo da antologia, uma vez que, após a eclosão anárquica de “Zona”, Álcoois traz vários poemas metrificados e rimados segundo regras clássicas ou na esteira da melodia simbolista. E aqui, mais que questões tradutórias, entra sobretudo a variedade de formas empregadas por Apollinaire num livro que expressa aquela convergência entre Ordem e Aventura por ele proposta na conferência de 1917.

Em Zona e outros poemas, temos tanto longos fluxos poéticos – como “A casa dos mortos” (um macabro festim no cemitério de Munique) e “O viajante”, ambos no registro da errância cosmopolita como expressão da experiência moderna –, quanto versos de circunstância (“Poema lido no casamento de André Salmon”) e poemas em octossílabos (que Garcia Lopes optou verter em decassílabos) como em “Saltimbancos”, que inevitavelmente remete à tela de Picasso e aos desgarrados na alienação da sociedade massificada – tema que também aparece em “1909”, que evoca as “mulheres atrozes dos bairros imensos”, trituradas pelas mesmas máquinas industriais que produzem os tecidos que recobrirão seus corpos, numa grotesca aproximação entre a operária e a mulher lasciva descrita no início do poema.

E, em meio a essa variedade, surge “Cantor”, um monóstico, poema de apenas um verso – que nesse caso mimetiza em sua linha contínua a tromba (ou trompa) marinha, antigo instrumento musical de uma única corda. Garcia Lopes assinala que esse poema, um dos últimos de Álcoois a serem escritos, pode ser definido como um “caligrama minimalista”. Ou seja, já anuncia o outro grande conjunto que compõe Zona e outros poemas: a série dos Caligramas, em que Apollinaire dota os versos e as palavras de plasticidade visual, desenhando “caligraficamente” os objetos nomeados pelos signos verbais.

Exemplos dessa técnica experimental são “Chove” (cujos versos em linhas verticais reproduzem a precipitação) ou “Coração coroa e espelho” (em que as palavras que figuram essas morfologias ao mesmo tempo ironizam as diferentes chamas nas quais ardem os corações de reis e poetas).

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

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