Aids sem o manto do preconceito

"Trilogia para a vida" reúne três textos para o teatro baseados em histórias de personagens reais que foram vítimas da epidemia de HIV/Aids nos anos 1990 e dá visibilidade à produção da cultura gay

Trinta anos separam a geração “Aids Drama” da estreia da admirável Trilogia para a vida, do paulistano Núcleo Experimental de Teatro, que bebe indiscutivelmente daquela fonte. Formado pelos espetáculos musicais Lembro todo dia de você, Brenda Lee e o Palácio das Princesas e Codinome Daniel, os textos foram lançados em livro pela editora Ercolano, após passar pelos palcos.

A Trilogia para a Vida estabelece um diálogo entre a síndrome da imunodeficiência adquirida e a história de vida real de personagens centrais. Aqueles que no passado eram índices, números e estatísticas, ganham nome, rosto e biografia nos textos dos espetáculos musicais Lembro todo dia de você, Brenda Lee e o Palácio das Princesas e Codinome Daniel. que acabam de ser lançados em livro pela editora Ercolano.

Na década de 1990, o teatro brasileiro, na esteira do fenômeno importado de outros países (sobretudo dos Estados Unidos), foi fortemente influenciado pela temática da Aids. Além de uma crise sanitária, a epidemia desencadeou no mundo inteiro tensões de ordem ética, social e política, levadas à cena por textos gringos emblemáticos como As Is (Por Quê Eu?), de William Hoffman, e Angels in America, de Tony Kushner.

Chamada de “Aids Drama”, essa geração de peças teve uma característica bem particular: não se ateve apenas a uma abordagem direta sobre a fatalidade da doença ou a uma narrativa de sua evolução. Naquela pós-explosão da epidemia, com os primeiros tratamentos sendo descobertos e uma perspectiva menos trágica sobre a doença, a dramaturgia enveredou por leituras de campos poéticos e, sobretudo, numa dura investida contra o conservadorismo preconceituoso que tentava silenciar a realidade.

No Brasil, um exemplo disso foi, em 1995, O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem, escrito por Luís Alberto de Abreu e dirigido por Antônio Araújo, com foco na fé. O espetáculo criticava o discurso religioso que associava a Aids a uma espécie de punição a homens gays. O escritor João Silvério Trevisan, autor do livro Devassos no Paraíso, define a peça como o “auge do impacto da Aids no teatro brasileiro”.

Um dos mais importantes escritores do teatro brasileiro contemporâneo, o dramaturgo Newton Moreno, cuja obra é também marcada pelas discussões sobre homossexualidade e relações homoeróticas, diz que a Aids foi transformada em “provocação para a comunidade gay, solicitando organização e posicionamento”.

Os gays, explica Moreno, “viraram mensageiros da praga, arautos do apocalipse, disseminadores da morte”, ao mesmo tempo em que, “através da dramaturgia sobre Aids, cresce a visibilidade em torno do mundo gay e sua produção cultural é alavancada”.

A epidemia de HIV/Aids é o fio que interliga as peças da Trilogia para a Vida, em períodos diferentes. A primeira peça, contemporânea, “Lembro todo dia de você”, estreou em 2017, em São Paulo, e conta os dilemas de um rapaz, Thiago, infectado pelo HIV aos 20 anos. O diagnóstico dispara nele uma tentativa de “acerto de contas” consigo mesmo e com pessoas do seu entorno – inclusive com o homem através do qual ele teve contato com o vírus.

Nessa trajetória existencial, com estofo em uma psicanálise holística, a condição envolta de estigma transforma-se no divã para o rapaz relembrar os relacionamentos, reviver dilemas familiares e discutir seus próprios preconceitos.

Thiago, na verdade, é alter ego de Rafael Miranda, autor das músicas do espetáculo. Foi a convite dele que a dramaturga Fernanda Maia escreveu a peça e as letras das canções. A obra, conta ela no prefácio, deu início a uma trajetória “de afeto e arte” entre uma “mulher heterossexual, de 50 anos, nascida e criada numa cidade do interior e um rapaz gay paulistano, vivendo com HIV, que se tornaram parceiros de criação e composição”.

A partir de Lembro todo dia de você, o Núcleo enveredou pela temática da Aids em mais duas montagens sob esse guarda-chuva, retomando um passado histórico.

A segunda – a mais desenvolvida dramaturgicamente e mais impactante das três – é a história de Brenda Lee e se passa nos anos 1990, na capital paulista. Brenda era uma travesti, dona de uma pensão, que passou a acolher mulheres transgênero doentes de Aids.

Se naquela época a discriminação já era grande com gays que viviam com a síndrome, o preconceito contra travestis e transexuais era incalculavelmente maior. Sem apoio familiar e excluídas socialmente, aquelas mulheres encontraram no Palácio das Princesas, como Brenda passou a chamar a pensão, acolhimento.

Em parceria com infectologistas do Hospital das Clínicas da USP, que visitavam as pacientes in loco, aquela se tornou a primeira casa de apoio a pessoas LGBTQIA+ no Brasil.

Fernanda Maia e Rafael Miranda repetem a parceria em Brenda Lee e o Palácio das Princesas, com destaque especialmente para o trabalho da autora e letrista. Com sensibilidade e poesia, Fernanda consegue emaranhar a biografia da personagem a um apanhado histórico do sistema de saúde pública brasileira e dos direitos das pessoas trans. Sem recorrer a clichês e rompendo com certo lugar-comum que há em Lembro todo dia de você.

O espetáculo estreou em 2022 e foi sucesso de bilheteria. O reconhecimento veio com o Prêmio Bibi Ferreira de Revelação em Musicais e o prêmio Shell de Melhor Atriz para Verónica Valenttino, no papel de Brenda.

Na terceira e última peça, a política dos anos 1970 é o grande cenário. A dramaturgia assinada por Zé Henrique de Paula conta a história do sociólogo e jornalista Herbert Eustáquio de Carvalho, conhecido como Herbert Daniel, guerrilheiro que participou da luta armada contra a ditadura militar brasileira.

Trata-se de uma colcha de retalhos de episódios da vida de Herbert, guiados por um narrador: o americano brasilianista James Green, biógrafo dele. Na história, a luta do personagem por um país mais justo se aproxima intimamente com o enfrentamento ao preconceito e pela defesa de direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids.

A peça apresenta um personagem importante, mas ainda pouco conhecido da história brasileira, que além de enfrentar a repressão militar teve que lidar com a LGBTfobia de seus próprios companheiros de guerrilha – já que para grupos de esquerda a homossexualidade era um problema pequeno-burguês. Codinome Daniel conta ainda a história de amizade de Herbert com a ex-presidente Dilma Rousseff, com quem dividia a militância.

A evolução nos tratamentos de HIV/Aids no mundo trouxe uma lufada de esperança e transformou a forma como a epidemia é retratada, principalmente na desconstrução do preconceito.

A Trilogia para a Vida, ao humanizar e personalizar histórias antes vistas apenas como estatísticas, possibilita, de alguma forma, uma reparação da história apagada e invisibilizada. Oportunamente, as obras incluem-se na historiografia do teatro brasileiro como um marco na representação da Aids, celebrando a resiliência humana e a contínua batalha contra o estigma e a discriminação.