Perguntado numa entrevista sobre o Prêmio Jabuti que ganhou em 2012 pela coletânea de contos O destino das metáforas, o escritor cearense Sidney Rocha preferiu mudar de assunto: “Eu poderia te dizer sobre a alegria de uma mulher que não sabia ler e que aprendeu para ler um romance meu chamado Sofia (1994). Isso foi para mim o maior prêmio”.
Aos 59 anos, o autor, editor e educador nunca se deslumbrou pela espuma das premiações e festas literárias. Com Sofia, por sinal, já havia levado o Prêmio Osman Lins em 1985 – o que tampouco abalou a solidez de seu compromisso com a literatura e uma pedagogia política expressas em seu sobrenome.
Em outra entrevista, ao jornal Rascunho, em janeiro deste ano, ele defenderia que um bom leitor é aquele que saísse da escola pública interpretando a sociedade e a comunidade em que vive de forma diferente: “O principal da escola não é formar leitores literários, mas leitores para o mundo”.
Desde Matriuska (2009), passando por Fernanflor (2015), Guerra de ninguém (2016), A estética da indiferença (2018), Flashes (2020), As aventuras de Ícaro (2022) e O inferno das repetições (2023), sua extensa obra vem renovando essa convicção.
A clausura de um não lugar
Com O melhor dos mundos, novo romance que acaba de sair também pela Iluminuras, o autor radicaliza essa opção ao abraçar a árida temática da morte e da eutanásia. Na ficcional Cromane, um país bruto e multifacetado, roído por grandes empresas mineradoras e homens farsantes, o protagonista Rhian tenta sustentar sua complexa família com a decadente luteria herdada do pai.
Logo nas primeiras páginas, encontramos o personagem numa busca obstinada por uma mulher enclausurada numa misteriosa abadia. É uma espécie de não lugar – entre o monastério, a comunidade terapêutica e o presídio –, onde Ágata permanece em exílio voluntário.
Lá, conta o narrador, “tratam a todos sem distinção: judeus, ciganos, anarquistas, comunistas, gays diletantes, assexuados militantes e abortistas”.
Não sabemos o que se passou com Ágata, nem com o casal, que emana por vezes carinho e desejo um pelo outro, mas também raiva e ressentimento. Nas divagações desta mulher perdida insinuam-se as armadilhas do fazer literário e do próprio Brasil contemporâneo: “Tentava dizer a palavra certa na hora certa com a temperatura morna. Antes da boca, a mente media a emoção como fazem as rainhas, como a palavra pudesse alterar o universo. Era preciso extinguir as palavras cáusticas. Elas impulsionavam os assassinatos e por essa razão o país andava como andava, fraturado pelo radicalismo, pelo ódio”.
Em contraponto, Rhian, em sua contenção que beira o mutismo, é aquele que busca a melhor expressão possível para emoções impronunciáveis. Em clima de roadmovie, ele percorre todos os meses 600 quilômetros de estradas poeirentas apenas para vê-la. “A cada viagem à abadia, penso ou temo não encontrar outra vez Ágata, senão a lembrança fúnebre impressa, seu rosto de porcelana na pedra”, resume, a certa altura. “Metade da viagem é de remordimentos.”
Palavra bruta e certeira
Na narrativa em primeira pessoa, com frases curtas e de uma originalidade desconcertante, Sidney Rocha vai lapidando da pedra o diamante – sem deixar que a palavra perca sua qualidade mineral. Nada parece artifício em sua literatura. E somos conduzidos por uma autêntica estrada vicinal, tão áspera quanto concreta, real. Fazendo jus ao ensinamento de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), o autor cearense jamais perfuma a flor ou poetiza o poema.
É por isso que, em sua melancólica jornada, o personagem Rhian jamais escorrega para a depressão – antes ele revela uma visão de mundo paradoxalmente vital: “A vida hoje se prolonga, talvez demais, a medicina, os cosméticos e não o cosmo, os energéticos e não a energia, tantos abdominais e flexões, pouca reflexão, e mesmo assim as academias e as festas fedem à morte” ou “vou passando por cima dessa gente que adora morrer-se”.
Somos então introduzidos à tragédia particular dessa família, que alude às contradições mais amplas da condição humana, o sofrimento e a inevitabilidade da morte. Com elegância, o narrador introduz a virada que estava oculta: “Essa história poderia ter se passado entre mim e Ágata. Há tempos extávamos, digo, estávamos perdidos nisso de um salvar o outro”.
Entra em cena Jade, a única filha do casal que, mal-entrada na adolescência, desenvolve uma grave doença degenerativa (“Uma síndrome neurológica. Talvez infecciosa”, sugere). E, então, o cético personagem de um país de místicos devotos do dinheiro e do poder, revela sua única fé. “Por muito tempo, nem o deus dos teólogos nem filósofos: só acreditei no deus da minha menina e me converti a ele agridocemente.”
A estrada da morte
À deterioração física da menina se segue à do relacionamento de Rhian e Ágata, assim como a da saúde mental da mãe. E o autor questiona até que ponto o indivíduo pode ser autônomo em relação aos laços emocionais que o engendram e definem. Diante disso, fica evidente o pouco espaço que resta para a rebeldia ou a resistência diante do adoecimento coletivo. Pouco, mas não nenhum.
O caminho de volta à vida diante da devastação da morte é lento e doloroso. Nesse sentido, a busca pela “morte pacífica”, diante dos pavores ancestrais e do julgamento social e hipócrita em torno do tema, termina sendo a única forma de reconciliação possível com a vida.
Novamente, as palavras do protagonista de O melhor dos mundos se confundem com as do autor do livro, na entrevista ao Rascunho: “A literatura é como se fosse um coração invisível que pulsa. E esse coração invisível busca pragmatismo o tempo todo. Não se pode falar em literatura sem certo pragmatismo da vida cotidiana”.
Sintomaticamente, ao comentar uma notícia que leu, Rhian traz a discussão sobre a eutanásia para o registro aparentemente novo de um mundo hipertecnológico, ainda afundado em crenças e concepções retrógradas arraigadas. “Uma ciborgue, isso foi dia desses, reivindicou e ganhou na justiça todos os direitos civis, porque se entendia viva. Uma pessoa, quando não se considera mais igual a mim ou a você, o que pode reivindicar?”, provoca.
E, ao presenciar o sofrimento da filha, ele se dá conta: “Nunca foi sobre a morte. Pelo contrário. Nem sobre a filosofia. Era sobre a vida. Sobre a liberdade de ir e vir ou somente de ir. De não voltar”. E, então, abruptamente e na contramão de qualquer discussão transcendental sobre o tema, Sidney Rocha nos traz de volta ao rés do chão, às necessidades incontornáveis da vida prática.
Metáfora do outro mundo
“O melhor remédio para a insônia é o dinheiro”, dispara Rhian. “Somente ele pode garantir autonomia. Ele é o Pai de todos os direitos. Ele inaugura a liberdade. Ele é a verdadeira religião.” E, logo adiante: “Não havia mais grana e a esperança foi embora no mesmo trem.”
Paradoxalmente, porém, sobre a terra arrasada da tragédia, um breve encontro numa lanchonete de beira de estrada sugere uma mudança de ânimo do protagonista. E este romance, que à primeira vista exala um ar místico e esotérico, revela-se carregado de consistência e paixão. É o entendimento de que a alegria pode nascer da tristeza, e a beleza, da feiura.
É então que a ambiguidade do título do romance de Sidney Rocha se mostra com maior clareza. E a ideia de que “partir desta para uma melhor”, como reza o dito popular, pode ser melhor vivenciada como metáfora. Entendimento expresso num dos muitos neologismos criados pelo autor desse livro memorável: o frescor e a abertura de visão que um “horrorizonte” pode trazer.