Saraiva, Zenith, Pizarro e Sáenz

Biografia indispensável, organização de obras e exposições: continua a expandir-se o conhecimento internacional da obra de um Pessoa, de múltiplos Pessoas, poeta de poetas, que parece infinito

A complexidade do homem e do escritor Fernando Pessoa faz com que ele continue sendo alvo de interesse e estudos constantes de pesquisadores, mesmo nove décadas após sua morte. Ano após ano, livros são produzidos em torno da vida e obra do português, que, com isto, se perpetua não apenas junto à academia, mas também aos leitores.

Nesse processo, quatro estudiosos vêm publicando trabalhos importantes para manter a memória, compreender as nuances e trazer à tona segredos de Pessoa. O português Arnaldo Saraiva, o estadunidense Richard Zenith, o colombiano Jerónimo Pizarro e o espanhol Antonio Sáez Delgado.

Para entender o que esses estudiosos produziram de mais relevante, a Pernambuco resolveu ir direto à fonte. Lançar aos quatro pesquisadores uma mesma questão, onde eles próprios puderam apontar quais dos seus trabalhos em torno da obra pessoana consideram fundamentais. A pergunta colocada foi: Qual foi sua principal contribuição à obra de Fernando Pessoa?

Arnaldo Saraiva é o grande nome entre todos os estudiosos que tentaram estender pontes entre o modernismo português e brasileiro. É dele também o primeiro estudo sistemático sobre a recepção da obra de Fernando Pessoa no Brasil. Ele diz:

“Talvez não deva ser eu a falar na minha principal contribuição, ou mesmo na minha contribuição, para o estudo e para o conhecimento de Fernando Pessoa. Mas não serei falsamente modesto, e também não terei o jocoso e corajoso descaramento de dizer o que disse Jorge de Sena – que, desde muito jovem, se empenhara no estudo e divulgação do autor da Mensagem: que ele não devia mais a Pessoa do que este lhe devia a ele”.

A dedicação de Saraiva ao estudo da obra de Fernando Pessoa deu-se bem cedo. Também dos primeiros e mais atentos leitores das dezenas de milhares de manuscritos do grande poeta. Igualmente pioneira e original é a sua contribuição na divulgação de Pessoa na França em outros países. Para entendermos esse contexto, devemos recuar décadas atrás:

“Também eu comecei a dedicar-me a Pessoa quando entrei na Universidade, onde ele ainda era quase desconhecido pela generalidade dos professores e dos estudantes, e pude ir a casa de sua irmã e ver a famosa arca. Isso me permitiu descobrir cartas inéditas de Mário de Sá-Carneiro a Pessoa, que, anos mais tarde, publicaria, e apresentaria um estudo sobre mestre Caeiro no seminário parisiense de Roland Barthes, que nesse tempo pouco sabia, como quase toda a inteligência francesa, de Pessoa, só anos depois disputado por vários editores franceses e editado na Pléiade”.

No Brasil, com quem mantém uma relação tanto intelectual tanto afetiva, sua contribuição é, particularmente, rica:

“Posso olhar com comedido comprazimento para o que sobre a até então inimaginável relação de Pessoa com o Brasil, publiquei, desde 1960 (no Jornal do Brasil, desde 1969) até ao livrinho A Entrada de Fernando Pessoa no Brasil, que a Babel carioca editou em 2021. Mas mais relevante terá sido a publicação, também no Brasil, pela Nova Fronteira, do livro Fernando Pessoa, poeta-tradutor de poetas, onde não só revelei ignoradas traduções poéticas de Pessoa como estudei a sua ligação, ainda antes de se revelar como ensaísta e como poeta, ao editor ou à edição da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, que circulou no Brasil a partir de 1912, e teve decisiva importância na formação de escritores como Drummond”.

Juntamente com sua contribuição como crítico, historiador da literatura e editor há a indispensável de investigador e professor. Por isso, vale a pena referir que no âmbito acadêmico a solidez do seu trabalho já supera meio século em torno dos estudos pessoanos, quando o autor de Mensagem ainda não tinha o grau de repercussão atual. Comparando com os exemplos citados anteriormente, acrescenta o professor Saraiva:

“Nenhum desses trabalhos teve a repercussão que teve a criação que promovi em 1975 do Centro de Estudos Pessoanos, no Porto. Embora por várias razões só tenha funcionado durante cerca de uma década, esse Centro congregou vários professores e ensaístas, estimulou a leitura e a popularização de Pessoa, promoveu a produção e publicação de estudos das obras e sobre as obras pessoanas, tratou de preservar em Portugal e acessível, e coeso, o espólio pessoano, ameaçado de dispersão, organizou os primeiros congressos internacionais sobre Pessoa, e publicou 12 números da revista Persona, que pela sua importância a Casa Fernando Pessoa reeditou em 2019 em fac-símile”.

Sobre o mesmo tema da contribuição aos estudos em torno de Fernando Pessoa, responde Richard Zenith:

“O meu trabalho em prol da obra de Fernando Pessoa abrange três vertentes. Na área de edição, descobri e publiquei muitos inéditos do escritor, incluindo poemas e alguns trechos do Livro do Desassossego, e organizei numerosas edições de poesia e prosa que procuram reunir rigor e legibilidade, de modo que possam ser aproveitadas tanto por estudiosos como pelo público leitor em geral”.

Enquanto tradutor, Zenith lembra que foi o responsável pela mais completa edição do Livro do Desassossego disponível em língua inglesa, como também por vários volumes de poesia e outras obras em prosa. “A terceira área do meu trabalho, o ensaísmo, é conhecida, sobretudo, pelo livro Pessoa: uma biografia, que fala não apenas do homem, mas também da sua obra, que, aliás, é indestrinçável da sua vida.”

Richard Zenith ainda observa: “Vale a pena lembrar que o trabalho de um pessoano não é estático, tem de ser dinâmico, uma vez que o grande modernista português, com uma obra notoriamente fragmentária e uma caligrafia por vezes difícil de decifrar, vai se descobrindo e redescobrindo, graças ao trabalho de todos os pessoanos. Assim, as minhas edições, traduções e a própria biografia vão sofrendo revisões, num processo contínuo de melhoramento”.

Desde que chegou a Lisboa, nos anos 1980, Zenith mergulhou nos mais de 25 mil manuscritos deixados por Pessoa, muitos deles fragmentários, escritos em papéis soltos e em várias línguas. Ele ajudou a dar forma a esse labirinto textual, organizando, editando e comentando livros que hoje são considerados essenciais — entre eles, edições do Livro do Desassossego, Mensagem e Poesias de Álvaro de Campos. Zenith compreendeu, como poucos, que editar Pessoa é lidar com um universo em expansão, onde cada texto pode conter múltiplas vozes e versões.

“Pessoa é um escritor que parece infinito. Cada vez que pensamos tê-lo compreendido, ele se desdobra em outra coisa”, afirmou Zenith em uma entrevista ao jornal Público.

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