Há exatos cem anos, para marcar a passagem de seu primeiro século de existência, o jornal Diario de Pernambuco decidiu publicar um livro comemorativo. O escolhido para organizar o volume foi Gilberto Freyre, recém-chegado de seu doutorado nos Estados Unidos. Freyre, então com 25 anos, colaborava com o jornal desde 1918, enviando do Texas e de Nova York, onde havia estudado, uma coluna semanal intitulada Da outra América. De volta ao Recife, já se destacava na vida da província. Passeava de bicicleta de manhã, observando os casarões que considerava ameaçados, conversava com amigos e escrevia intensamente. Escandalizava os intelectuais locais com sua nostalgia pelo passado, seu interesse pela cultura afro-brasileira e por temas considerados sem relevância, como os hábitos alimentares e o vestuário feminino.
A encomenda do jornal centenário para que organizasse uma publicação comemorativa resultou no chamado Livro do Nordeste, um volume quase em tamanho de um jornal tabloide, onde o sociólogo escreveu três artigos e incorporou mais 26 outros textos escritos por convidados importantes, feitos especialmente para a publicação. O livro, excêntrico em sua própria época, é ainda hoje uma obra pouco conhecida. Publicado três vezes com problemas de impressão, circulou pouco e acabou sendo considerado pelo próprio Freyre como um livro “quase mítico, quase lendário, quase alma-de-outro-mundo”
Os temas abordados nas 192 páginas iam da pecuária à arquitetura tradicional já ameaçada, da culinária à arte das rendeiras, da viação férrea à música do século 19. Tinha uma concepção visual avançada para a época, com belas ilustrações em bico-de-pena e dois cadernos de publicidade, cada um com 32 páginas.
Entre os colaboradores estava o poeta Manuel Bandeira, que escreveu, por encomenda, no Rio de Janeiro, onde morava, um poema ainda inédito intitulado “Evocação do Recife” (cinco anos antes de sair no livro Libertinagem), que contém alguns de seus versos mais conhecidos.
Apesar de badalado na época do lançamento, o Livro do Nordeste ficaria conhecido como um calhamaço difícil de ler. O papel de baixa qualidade e a impressão deficiente tornaram impossível a leitura completa da maioria dos artigos. Das 192 páginas, pelo menos 52 tinham trechos ilegíveis por estarem apagados ou borrados. O próprio Freyre – conhecido pela vaidade – achou tão ruim o resultado que escondeu o livro de amigos importantes que tinha no exterior, como o polemista norte-americano H.L. Mencken e o antropólogo alemão Franz Boas. A diagramação em quatro colunas com tipologia pequena, o peso (um quilo e meio) e o tamanho de um tabloide grande (27 por 40 centímetros) dificultaram a circulação.
Mesmo em Pernambuco, o livro é praticamente desconhecido fora do pequeno círculo de especialistas na obra de Freyre. Somente 54 anos depois, em 1979, quando o organizador, então já consagrado, preparava-se para completar oitenta anos de idade, o livro foi reeditado. Mas a opção do Arquivo Público do Estado foi fazer uma edição fac-similar, reproduzindo o conteúdo no mesmo formato da primeira publicação. Os erros de impressão, portanto, foram mantidos. O livro continuou parcialmente ilegível.
Em 2005, quando o Diário de Pernambuco completou 180 anos. houve uma nova tentativa de relançar o livro, também de forma fac-similar, com trechos novamente borrados e apagados. A circulação foi ainda mais inexpressiva. “Na verdade, o livro nunca foi lido completamente por ninguém, a não ser pelo próprio Gilberto, que viu os manuscritos”, afirma o jornalista e historiador Mário Hélio Gomes de Lima, autor de quatro livros sobre Freyre e superintendente de periódicos e projetos especiais da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).
A despeito da pouca circulação, o Livro do Nordeste fez história por antecipar, na sua abordagem, em alguns meses, o que veio a ser conhecido como o “Movimento regionalista, tradicionalista e a seu modo modernista”, lançado por Freyre, em 1926, e que teve grande repercussão na literatura, nas artes plásticas e nos estudos sociológicos no Nordeste. Os três artigos do sociólogo incluídos na obra – que representam sua primeira publicação em livro no Brasil - são considerados também como um esboço de Casa-grande & senzala, seu trabalho mais conhecido, que seria lançado em 1933.
No ano de 2015, por ocasião dos 90 anos de lançamento do Livro do Nordeste, surgiu uma iniciativa para a reedição da obra, desta vez de forma caprichada. Este repórter caiu em campo naquele ano para tentar descobrir o que tinha acontecido com as três primeiras edições de um livro que, para os especialistas, continha vários mistérios. Para a maioria dos leitores, era simplesmente desconhecido.
OS ORIGINAIS
Cercado pela vegetação que é resquício da Mata Atlântica, na zona norte do Recife, a Vivenda de Santo Antônio de Apipucos, com suas paredes decoradas com charmosos azulejos portugueses, é conservada como foi deixada pela família Freyre. Com seus móveis pesados feitos de jacarandá, com objetos de arte do mundo todo, quadros pintados a óleo, conjuntos de louça e fotografias de família. E principalmente com seus livros e documentos. O acervo de Gilberto Freyre reúne sua enorme papelada, em processo de organização, onde encontram-se milhares de itens - correspondência, textos de conferências, esboços, anotações e até, especula-se, livros inéditos, tidos como perdidos. Em algum lugar, imagina-se que estejam, também, os manuscritos que são necessários para que o Livro do Nordeste possa um dia tornar-se, finalmente, legível, completo, numa eventual nova edição.
Em 2015 os documentos na casa de Freyre estavam guardados em pastas, sacos e gavetas. A tarefa de procurar os originais do Livro do Nordeste – se é que existem - poderia levar alguns dias ou alguns anos e prometia ser das mais complicadas, segundo Jamille Barbosa, então gerente editorial e de acervos da instituição. Jamille é bibliotecária por formação e trabalha na fundação desde 1998. Sentada ao lado de uma mesinha de azulejos azuis, no chamado Terraço Mourisco, espaço ligado à sala de jantar da Vivenda de Apipucos – onde Freyre costumava receber os amigos - ela fala dos desafios. “Esta casa ainda tem muito material inédito. Isso é um fato. O problema é encontrar esses textos”. A fundação contava então com uma estrutura pequena e sete funcionários permanentes. Calcula-se que existam ali cerca de 40 mil livros. Setecentos deles fazem parte da biblioteca de obras raras. Nela estão três exemplares da edição de 1925, em péssimo estado de conservação, com o papel em vias de se esfacelar, em caso de manipulação.
Segundo os planos elaborados em 2015, a primeira providência para recompor os textos para a nova edição do Livro do Nordeste seria o uso de um scanner da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), a imprensa oficial do Estado. A digitalização do texto seria feita a partir de um exemplar da edição de 1979. Numa segunda etapa, se necessário, os organizadores iriam em busca dos originais, nas estantes da casa ou no anexo Centro Cultural Gilberto Freyre, onde trabalha a equipe que cuida do acervo. “Não temos fôlego para procurar tudo no acervo da fundação. Isso pode tornar o processo muito lento e inviabilizar o projeto”, disse Jamille Barbosa. A ideia era que a nova edição fosse organizada, apresentada e anotada por Mário Hélio e reproduzisse, num formato de livro convencional, todos os textos e ilustrações publicados em 1925.
Toda a movimentação em torno da reedição surgiu quando o jornalista Evaldo Costa, então presidente do Arquivo Público do Estado e curador na primeira Feira do Livro do Nordeste (Fenelivro), realizada em setembro de 2015 no Recife, teve a ideia de incluir na programação um painel chamado O Livro do Nordeste, pedra fundamental do regionalismo nordestino. Costa é paraibano e mora no Recife desde os anos 1970. Seu interesse inicial pela obra surgiu quando pensou em fazer um mestrado sobre os jornais da década de 1920. O mestrado não se concretizou na época, mas o interesse permaneceu.
Experiente no trabalho em redações, ele não tem esperança de encontrar manuscritos que ajudem na restauração do texto original. “Esses originais, em 1925, ainda eram escritos à mão. Devem ter descido à gráfica do jornal para serem compostos, talvez até na noite anterior à circulação do livro”, diz Costa, acostumado com a improvisação da imprensa diária, ainda presente hoje em dia. “E a gente sabe, o que descia para a gráfica, não subia mais [para a redação], se perdia. Acho difícil que Freyre tenha guardado cópias dos originais que passaram pela redação”.
ONDE ESTÁ A TERCEIRA EDIÇÃO?
O jornalista Gladstone Vieira Belo (1947-2024) entrou no Diario de Pernambuco em 1967. Depois foi durante cerca de 30 anos o responsável informal pela preservação da memória do jornal e encarregado de representá-lo em solenidades. Acabou sendo promovido a condômino (o que, na linguagem dos Diarios Associados, significa ser um dos sócios-proprietários). Depois que o jornal mudou de dono duas vezes em 2015, ele ocupou durante alguns meses o cargo de membro do Conselho Editorial. Ainda como conselheiro, Belo mostrou ao repórter, com entusiasmo, uma galeria de quadros pintados a óleo – afixados numa sala no andar reservado à diretoria na sede do jornal. A galeria expõe retratos dos dirigentes do jornal desde Antonino José de Miranda Falcão, que fundou o matutino em 1825, até os mais recentes, passando por Gilberto Freyre, que foi diretor de redação por um breve período na década de 1930.
Gladstone era um poeta da chamada Geração 65. Em 2015, tinha apenas um livro publicado, com o título de A face despida. Continuava escrevendo poemas, mas atribuía às suas tarefas administrativas o fato de não publicar seus trabalhos mais recentes. De temperamento afável e quieto, considerava-se um grande admirador de Freyre – de quem foi assessor de comunicação na Fundação Joaquim Nabuco, nos anos 70. Mantinha na parede de sua ampla sala de trabalho no Diario um quadro pintado pelo sociólogo – que assinava apenas como Gil - mostrando uma paisagem rural da zona da mata do Nordeste.
Mas Gladstone dizia nada saber sobre como aconteceram as três edições do livro, apesar do Diario ter estado diretamente envolvido na primeira edição, em 1925, e parcialmente na terceira, de 2005, quando ele mesmo escreveu um prefácio para o livro. O próprio Diario não tem guardado sequer um exemplar de nenhuma das três edições. Belo disse que, em 2005, a tarefa de distribuição coube à Companhia Editora de Pernambuco.
Na Cepe há três exemplares na biblioteca, todos da edição de 2005. O presidente da editora na época da edição, o advogado e ex-membro do Tribunal de Contas do Estado, Marcelo Maciel, lembrava-se do livro. Contou que foram feitas 500 cópias e que o Diario distribuiu a maioria. Gladstone não confirmou e disse não se lembrar.
O livro é também difícil de encontrar nas principais bibliotecas da cidade. Na centenária Faculdade de Direito do Recife (onde ocorreram as reuniões do Congresso Regionalista de 1926, organizado pelo próprio Freyre), não havia nenhum exemplar. No tradicional Gabinete Português de Leitura, havia três exemplares da edição de 1979. Na biblioteca da Assembleia Legislativa de Pernambuco, nenhum exemplar. Na própria Fundação Joaquim Nabuco, que até a criação da Fundação Gilberto Freyre, em 1987, centralizava as atividades do sociólogo, há seis exemplares na Biblioteca Blanche Knopf, todos também da edição de 1979. No comércio de livros usados da cidade, apenas o Sebo Brandão, na rua da Matriz, tinha um exemplar.
O Arquivo Público do Estado tinha um exemplar de 1925. Apesar de ter sido responsável pela segunda edição, de 1979, não conservava registros do fato, a não ser um único exemplar da publicação. Em todas as instituições envolvidas, não há informações sobre as tiragens das duas primeiras edições nem ficaram registros sobre como foram distribuídas. Excetuando-se a primeira edição de 1925, a mais recente (2005) é a mais difícil de encontrar: nos acervos consultados, somente foi encontrada na principal Biblioteca Pública do Estado, ao lado do Parque Treze de Maio. Baseada na sua experiência como responsável pelo gerenciamento de edições da Fundação Gilberto Freyre, Jamille Barbosa achava tudo muito estranho. “Não me surpreenderia se essa terceira edição estiver guardada em algum lugar”.
“PAPEL ORDINARÉRRIMO”
A saga do Livro do Nordeste começou em 1925 quando Freyre ficou muito decepcionado com o papel usado na impressão. No seu livro Tempo morto e outros tempos, escrito em 1975 a partir de anotações de seus diários de juventude, ele relembra o episódio do livro comemorativo, quando viu o resultado. “Deu-me vontade de chorar. Quase chorei”. Acusou a Carlos Lyra Filho, diretor do jornal, de ser “rico mas sumítico” (avarento). “A desgraça gráfica. O livro impresso em papel ordinaríssimo. Mal impresso em papel ordinarérrimo. Um desastre”, escreveu no diário pessoal. Em seguida, expressou o receio de que os seus críticos iriam comemorar o fracasso. “Agora pode essa multidão de cretinos rejubilar-se e dizer triunfante: ‘Nós bem dizíamos que esse sujeito não passa de um bluff”’. Freyre admite nas anotações: “O livro está na verdade um bluff”. Mais adiante, acrescenta: “Tudo por causa de uns poucos contos de reis a mais, nada para os Lyra”. Ressalta também que, para compensar, numa das festas comemorativas pelo centenário do jornal, os donos tentaram redimir-se da mesquinharia servindo “muito peru, presunto, doces e vinho”. Freyre escreveu ainda: “Entrei forte no champagne. Tinha direito”.
Diferente do que acontece em publicações comemorativas, apenas um dos 29 artigos do livro é laudatório e narra a trajetória do dono do jornal, o coronel e usineiro Carlos Lyra, que havia morrido meses antes. Mário Hélio acha que o próprio Gilberto Freyre pode – sem assinar - ter escrito o artigo que abre o livro e fala do jornal. Seja lá quem for o autor, o texto foi profético ao afirmar que aquele era um livro “até certo ponto destinado antes ao futuro que ao presente”.
Os outros são artigos densos, escritos num estilo que hoje se aproximaria do acadêmico. Fazem uma retrospectiva da vida no Nordeste nos cem primeiros anos de existência do jornal, entre 1825 e 1925. Mas alguns mostram um interesse mais amplo. O diplomata Manoel Oliveira Lima, por exemplo, escreve de Washington sobre “Um século de relações internacionais”. O professor norte-americano Francis Butler Simkins aborda “Um século de relações inter-americanas”. O professor português Fidelino de Figueiredo escreve sobre as relações luso-brasileiras.
O jovem poeta Joaquim Cardozo (que depois ficaria famoso como dramaturgo e engenheiro calculista na construção de Brasília) faz um perfil do ainda pouco conhecido Manuel Bandeira. Antes de cada artigo, Freyre faz uma breve apresentação do autor. O próprio poeta Manuel Bandeira – a quem ainda não conhecia pessoalmente e que já morava no Rio de Janeiro - é descrito pelo organizador, ao apresentar seu poema, como “o mais íntimo de nossos lyricos”.
O poema “Evocação do Recife”, publicado no livro em primeira mão, lamenta as mudanças impostas pelo tempo na paisagem humana e física da cidade onde nasceu em 1886. Bandeira expressa com perfeição as lamentações nostálgicas do próprio sociólogo sobre as mudanças que viu na cidade ao voltar dos Estados Unidos e da Europa, em 1923, após sete anos fora. No texto do Manifesto Regionalista, publicado somente em 1952, mas baseado nos discursos do Congresso Regionalista de 1926, que se reuniu três meses após a publicação do livro, Freyre reclama enfaticamente dos engenheiros que derrubam casarões para alargar avenidas e construir prédios, do que via como decadência dos costumes tracionais, das mudanças na culinária, nas vestimentas, nas brincadeiras das crianças.
EMBRIÃO DE CASA-GRANDE
No próprio livro comemorativo, Gilberto Freyre escreve três artigos. Um se chama A pintura no Nordeste. Os outros dois são considerados como uma antecipação do que viria a ser ampliado em Casa-grande & senzala: o texto A vida social no Nordeste – Aspectos de um século de transição tem 16 páginas; e o texto intitulado A cultura da canna no Nordeste – Aspectos de seu desenvolvimento histórico tem cinco páginas. Neste artigo, por exemplo, somente uma página pode ser lida inteiramente. Considerando as outras quatro páginas, encontram-se 16 falhas consideráveis de impressão (20 na edição de 2005) - uma espécie de barra branca torna ilegível a parte inferior das páginas. Curiosamente, dois desses três artigos nunca foram republicados posteriormente em nenhum dos 73 livros publicados por Freyre em vida, alguns dos quais reúnem justamente textos dispersos.
Mário Hélio acha estranho que durante seu longo envolvimento com o Instituto de Pesquisas Sociais Joaquim Nabuco, criado por Freyre em 1948 e comandado pela família até 2003 - quando seu filho Fernando de Mello Freyre saiu da presidência -, a própria Massangana, editora da instituição, nunca tenha reeditado o livro. “Essa mácula editorial sempre foi evitada, tanto na história do Diario de Pernambuco quanto na história intelectual de Gilberto.”
O livro é um item de colecionador. Além do conteúdo, interessa pelo seu tamanho e pelas gravuras que ilustram as páginas, feitas pelo cartunista Manoel Bandeira, homônimo do poeta. Bandeira trabalhou a partir de fotografias tiradas por Ulysses Freyre, irmão do sociólogo. Depois que Gilberto voltou dos Estados Unidos em 1923, adquiriu o hábito de sair pela capital, de bicicleta, fotografando com o irmão o patrimônio ameaçado.
A tarefa de resgatar o livro em 2015 entusiasmou Mário Hélio. Ele conta que, ao voltar ao Recife, em 1923, o jovem Freyre exibia maneiras um tanto afetadas. “Ele foi muito ridicularizado nos meios de comunicação locais e teve alguma dificuldade de se adaptar porque escrevia sobre coisas como a defesa do patrimônio e a culinária”. Nessa época, os interesses do sociólogo já eram realmente vastos. Opinava sobre assuntos que iam da obra literária de James Joyce aos novos estilos de corte de cabelos das moças, da atracação de navios no porto à alteração de nomes nas ruas, do ensino de caligrafia nas escolas aos problemas da liberdade e da tirania. Há até um artigo seu intitulado “Pirão, glória do Brasil”, sugerindo que os artistas valorizassem o prato.
“A organização do Livro do Nordeste foi uma tentativa de readaptação ao Recife, de colocação profissional e de estabelecer uma conexão intelectual com os principais nomes do modernismo brasileiro. Enfim, uma tentativa de criar para si um nome e um reconhecimento”, avalia Mário Hélio.
O jornalista destaca também a criação de uma “ideologia do Nordeste”, que até então não existia, sendo o Brasil dividido apenas entre as regiões Sul e Norte. E ressalta que o Nordeste do livro não incluía ainda estados como Bahia, Sergipe e Maranhão. “A ideologia nordestina começava a aparecer e foi sendo consolidada ao longo do tempo. O Nordeste não é uma Catalunha, por exemplo. É uma invenção geopolítica que foi se alterando ao longo do tempo. Para Gilberto, passa a ser um domínio territorial e ideológico”.
Nos anos 1990, a antropóloga Fátima Quintas, que trabalhava então na Fundação Joaquim Nabuco, tentou reeditar o Livro do Nordeste. Uma das principais especialista na obra de Gilberto Freyre, ela chegou a pegar numa lupa para tentar resgatar os textos, mas desistiu diante do volume de trabalho que isso ia acarretar. Acabou organizando um livro de artigos sobre o Manifesto Regionalista de 1926, no qual resgata dois dos artigos de Freyre presentes no livro comemorativo.
Na época de apuração desta reportagem, ela era presidente da Academia Pernambucana de Letras, instituição situada num casarão do século 19 no bairro da Jaqueira. No salão nobre da academia, decorado com candelabros franceses e móveis de época, Fátima contou que conviveu com Freyre desde os seis anos de idade. Seu pai, o historiador Amaro Quintas, era amigo do sociólogo e companheiro de trabalho no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco.
Fátima Quintas é parte de um círculo cultural pernambucano que orbita em torno da obra de Freyre. No seu caso, mais ainda por ter convivido com a família desde pequena, quando frequentava a Vivenda de Apipucos para brincar com Fernando e Sônia, filhos do escritor. Só quando decidiu estudar sociologia tomou consciência da importância do amigo do pai. “Sem saber, eu já convivia com um monstro”, diz ao lembrar das idas a Apipucos na infância. Já adulta, por influência de Freyre, foi fazer doutorado em antropologia em Portugal. Trabalhou na Fundação Joaquim Nabuco de 1965 até 2003. Tem mais de uma dezena de livros escritos ou organizados sobre a obra do sociólogo.
Sobre a possibilidade se encontrar os originais do Livro do Nordeste, ela é otimista porque Freyre era conhecido por guardar tudo. Todos os especialistas na sua obra ressaltam essa característica. “Ele tinha a perfeita noção da posteridade e do tempo. Guardava tudo. Era um proustiano”, diz Fátima Quintas.
Para ela, o Livro do Nordeste também é um mistério. Contou que chegou a perguntar a Fernando Freyre, na época responsável pela edição da obra do pai, e a Edson Nery da Fonseca, considerado então o maior conhecedor da trajetória bibliográfica de Freyre, se eles sabiam algo sobre a circulação das três edições do livro. “Eles me disseram que nada sabiam”. A Academia Pernambucana de Letras, que elegeu o sociólogo por aclamação em 1986 (Freyre sempre recusou a honraria por se considerar “inacadêmico”) tinha, em 2015, 36 mil volumes na sua biblioteca. De autoria de Freyre eram 28 títulos diferentes. Entre eles não estava o Livro do Nordeste.
Depois das tratativas iniciadas em 2015 entre a Fundação Gilberto Freyre, o Diario de Pernambuco e a Cepe, não avançaram as medidas para a reedição do Livro do Nordeste, recuperando o conteúdo original. A obra, portanto, continua sendo parcialmente ilegível e tema para especulações.
Dentro do mesmo campo de estudos acerca da trajetória do jovem Gilberto Freyre, existe há décadas uma polêmica sobre a real importância do Manifesto regionalista, tradicionalista e a seu modo modernista. Fátima Quintas acha que, independentemente da polêmica com os modernistas da Semana de Arte Moderna de São Paulo, de 1922, quando olhado em retrospectiva, pode-se ver claramente que muitas expressões artísticas nordestinas posteriores estão calcadas nas ideias dos intelectuais que escreveram no Livro do Nordeste e se reuniram na Faculdade de Direito do Recife durante o Congresso Regionalista, alguns meses depois. É o caso da pintura de nomes como Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. E da literatura produzida por nomes como de José Américo de Almeida, José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto. Sobretudo, também estava nesses dois acontecimentos de novembro de 1925 (o livro) e fevereiro de 1926 (o congresso) o germe da obra de Freyre, que desabrocharia totalmente a partir de Casa-grande & senzala, publicado em 1933.
Mário Hélio Gomes da Silva vai mais além e inclui, nessa cronologia, além de Casa-grande & senzala e do congresso, a publicação do poema longo Bahia de todos os santos e de todos os pecados, de 1925, a realização do Primeiro Congresso Afro-brasileiro de 1934, e a publicação de outras obras de Freyre como o Guia prático e sentimental da cidade do Recife (1934) e de Nordeste, livro individual do sociólogo sobre a ecologia da região, publicado em 1937. Este sim, ao contrário do seu quase homônimo, está até hoje em catálogo e é considerado um dos clássicos da obra do sociólogo pernambucano. “Ele fecha um ciclo, uma história que começa nos Estados Unidos e é concluída em 1937. No meio de tudo isso há uma obra coletiva, o Livro do Nordeste".