Jane Austen: 250 anos da porta para dentro

A romancista nasceu no ano de 1775 e durante a vida publicou obras que relatavam com precisão a vida e costumes da classe média inglesa

Durante os doze meses do ano a pequena vila de Chawton, no sudoeste da Inglaterra, recebe viajantes de todo o mundo que desejam, essencialmente, visitar uma antiga casa de estilo gregoriano. É certeza que muitas casas como aquela estão espalhadas pelo país, mas o que atrai o público àquela locação em específico diz respeito a uma longínqua moradora. Ninguém menos que Jane Austen. 

Nascida a 250 anos – no dia 16 de dezembro de 1775 – na cidade de Winchester, Jane foi a penúltima de oito irmãos. Seu pai, George Austen, estudou na prestigiosa St. John’s College, em Oxford, e veio a se tornar reverendo na cidade de Steventon, onde a família Austen viveu até o patriarca se aposentar. A mãe de Jane, Cassandra Leigh, vinha de uma família de boa condição financeira. Foi descrita como uma mulher esperta, que já escrevia versinhos aos seis anos de idade. Da união de George e Cassandra, nasceram James, George, Edward, Henry, Cassandra, Francis, Jane e Charles. 

Únicas meninas entre os tantos filhos homens, Jane e Cassandra criaram, ainda na infância, uma ligação que duraria a vida toda. Juntas, estudaram em um internato só para garotas, tiveram aulas de piano e de desenho e, ao longo da vida, trocaram uma quantidade substancial de cartas. Nenhuma delas se casou. Quando Jane faleceu, aos 41 anos, em 1817, as irmãs morava juntas, exatamente na casa de Chawton. 

A “Casa de Jane Austen”, como foi batizada, funciona atualmente como um museu da vida da romancista. Repleto de edições iniciais de suas obras, joias, obras de arte e móveis (incluindo a pequena mesinha, na  qual Jane escreveu seus romances, afirmam os biógrafos), remonta o estilo de vida inglês e, é claro, de Jane. O lugar onde ela viveu seus últimos anos, junto a mãe, a irmã e uma amiga da família, é porta de entrada para entender sua realidade e suas obras. 

Os romances de Austen

A família Austen muito valorizava o conhecimento. Como consequência disso, Jane Austen teve contato com os livros desde cedo. Ainda que não seja possível determinar quando começou a escrever, sabe-se que ela criava histórias desde jovem e, na vida adulta, se dedicou efetivamente à escrita e publicação de romances. 

No ano de 1811, Henry Austen passou a auxiliar a irmã quase como um agente literário e conseguiu um acordo para que a obra Razão e sensibilidade fosse publicada pelo editor Thomas Egerton. Sob o pseudônimo de “A Lady”, ou “Uma senhorita”, o livro foi bem recebido, com a primeira tiragem vendendo completamente em cerca de dois anos. 

Em 1813, foi a vez de Orgulho e preconceito ser publicada pela mesma editora, assim como uma nova edição de Razão e sensibilidade. A partir desse momento, Jane consolidou-se como escritora no mercado editorial, ainda que não fosse um dos grandes nomes da literatura. 

De acordo com a doutora em Estudos Linguísticos e fundadora do Jane Austen Sociedade do Brasil, Adriana Sales, a autora de Razão e sensibilidade passou a assinar os próprios livros apenas depois de um pedido vindo direto do príncipe regente George IV. Adriana explicou à revista Pernambuco que o príncipe havia lido as obras de Austen e chegou a convidá-la para um chá, quando diretamente sugeriu que em sua próxima publicação, ela a dedicasse a si. “Os pesquisadores dizem que Jane Austen colocou a contragosto, porque não concordava com a gastança e as coisas que o príncipe fazia, mas no quarto livro ela assina com seu nome e tem certa notoriedade, ainda que não seja como a fama que tem hoje”, contou. 

A fama que Jane acumulou com o passar dos anos, inclusive, muito se dá pela forma verossímil como ela relata as relações sociais de seu tempo. De maneira geral, todos os seus livros – Razão e sensibilidade, Orgulho e preconceito, Mansfield Park, Emma, A Abadia de Northanger e Persuasão são as obras finalizadas e publicadas em vida pela autora, que também escreveu Sanditon, Lady Susan e Os Watsons – acompanham uma protagonista feminina que vive uma história de amor. Acreditar, contudo, que a literatura de Austen se resume ao romance é uma visão superficial. 

Em entrevista à revista Cult em 2017, a pesquisadora e autora do livro Jane Austen, the secret radical, Helena Kelly, afirmou: “As pessoas não estão erradas em considerá-la uma grande autora de histórias de amor – mesmo que algumas de suas tramas sejam um pouco perturbadoras para os dias atuais, como casamentos entre primos ou homens apaixonados por meninas de 13 anos. Mas acredito que os romances de Austen podem ser políticos e românticos, essas duas características não são excludentes”.

Talvez uma pessoa sem conhecimento sobre os livros de Jane Austen pegue um exemplar de Orgulho e Preconceito, por exemplo, esperando se encantar com as provocações que levam ao amor entre Elizabeth Bennet e Mrs. Darcy e, provavelmente, esse objetivo será atingido. Para além de uma boa narrativa de paixão, naquelas páginas a escritora tratou com perspicácia sobre a realidade das mulheres do século XIX, que só eram vistas como parte integral da sociedade ao se casarem. O casamento, como um todo, é uma instituição que recebe alfinetadas por meio de seus personagens em todas as suas histórias. 

A frase de abertura de Orgulho e preconceito é um exemplo da sagacidade de Austen sobre o meio em que vive: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, possuidor de uma grande fortuna, deve estar em busca de uma esposa”. 

Através de histórias que se concentram em narrar conversas entre personagens e essencialmente mostrar retratos de vida dos personagens, Jane foi capaz de criar textos em que as convenções sociais são postas em questão. Como uma mulher solteira vivendo no interior da Inglaterra do século XIX, ela se debruçou sobre o que vivia e observava ao seu redor. A vida particular foi seu objeto de pesquisa durante a carreira na literatura e foram as sutilezas desse trabalho que lhe conferiram o reconhecimento que possui hoje. 

“A Jane Austen seguia a cartilha do tempo em que viveu, então podemos chamá-la de conservadora, porém ela organizou mentalmente e transbordou em forma de escrita, um olhar muito aguçado para o comportamento humano. Ela inova e rompe as barreiras da cultura e dos costumes da sua época ao escrever sobre o cotidiano, sobre a vida das pessoas comuns, principalmente da porta para dentro de casa”, evidencia Adriana Sales. 

Em Persuasão, a narrativa de Austen acompanha Anne Elliot, que foi pedida em casamento por Frederick Wentworth, um oficial da Marinha com condição social inferior. Mesmo o amando e desejando unir-se a ele, decide recusar o convite e escutar os conselhos de seu pai. Oito anos depois, eles voltam a se encontrar e, desta vez, o pai de Anne está perdendo a fortuna, enquanto Wentworth subiu de patente e acumulou riquezas. Nessa obra, a escritora encara a hierarquia social inglesa e questiona diretamente os conselhos dos mais velhos (representado pelo pai de Anne, um homem orgulhoso e vaidoso que acredita ser o dono da razão). 

Ao criar o personagem de Frederick Wentworth, Jane mostrava estar antenada com o mundo ao seu redor, como bem descreve a tradutora e jornalista Julia Romeu no prefácio de Persuasão, parte da coleção Mulheres na Literatura da Folha de S. Paulo

“O declínio financeiro de um baronete e a ascensão social de um oficial da Marinha é um tema quase revolucionário para um livro de Jane Austen. Na época que Persuasão foi escrito, a ideia de que todos os homens são iguais surgira recentemente, e era muito difícil se movimentar pelas rígidas classes que dividiam a sociedade inglesa. [...] Mesmo de seu cantinho sossegado, Jane Austen não podia deixar de ouvir os ecos da revolução americana e da Revolução Francesa”. 

Outra obra considerada madura e importante a ser analisada é Mansfield Park. Publicada pela primeira vez em 1814, a narrativa se concentra na personagem Fanny Price, que é descrita por leitores como a protagonista mais fraca e “apagada” de Jane. Mesmo assim, esse romance traz o tema da escravidão como questão importante. 

“Notei referências muito frequentes e óbvias à escravidão em Mansfield Park. Qualquer pessoa que soubesse ler na época sabia que Lord Mansfield era presidente do Supremo Tribunal inglês, e que contribuiu imensamente para a abolição do tráfico de escravos. Seria impossível não fazer a ligação. Além disso, a Sra. Norris, vilã da história, teve o nome inspirado em Robert Norris, um infame traficante de escravos. Eu já estava convencida de que havia ligações com o tema no romance, e muitos críticos já haviam apontado isso, mas quando eu me foquei em encontrar essas referências, me pareceu clara a crítica de Austen à escravidão”, compartilhou Helena Kelly à Cult. 

Jane Austen hoje

Mesmo tendo escrito sobre a realidade de famílias da Inglaterra do século XIX, as narrativas criadas por Austen conquistaram admiradores ao redor do mundo. No Brasil não foi diferente.

Adriana Sales, por exemplo, se apaixonou pelos livros durante a graduação em Letras na UFMG, e trilhou uma carreira entrelaçada com o estudo sobre a escritora. Tanto seu doutorado quanto o pós-doutorado (que está em curso) buscam analisar aspectos da obra de Jane Austen. Adriana também participa de eventos sobre a escritora, realiza exposições e encontros com leitores pelo Brasil, já traduziu alguns de seus livros e administra desde 2008 a página “Jane Austen Brasil”. 

“Eu acredito que acontece um movimento cíclico de interesse com escritores que viveram há mais de 200 anos. Com a criação da Casa de Jane Austen, em 1940, começou a existir uma peregrinação em volta desses lugares e no meio dos anos 1990 os livros começaram a ser adaptados. Isso criou mais interesse pelas obras”, explica Sales. “Foi justamente quando eu criei o blog que as pessoas começaram a ter interesse novamente, e aí a gente já tinha internet para conectar pessoas de várias partes do mundo. O mercado editorial brasileiro começou a seguir também esse padrão, publicar novas traduções. Hoje, se eu não me engano, temos mais ou menos 20 tradutores de Orgulho e Preconceito”, acrescenta. 

Aos 24 anos, a designer Carol Duarte é uma das jovens leitoras de Jane Austen. Mesmo com mais de 200 separando ambas, ela explica que se tornou admiradora da obra justamente por se identificar com os personagens. 

“A obra de Jane Austen fala sobre sentimentos, conflitos e escolhas que ainda fazem parte da nossa vida. Além disso, o olhar crítico e irônico dela sobre a sociedade da época também se mantém bastante atual. Os personagens são humanos, imperfeitos e muito relacionáveis, o que faz com que a gente crie uma conexão com eles. É como se, em cada livro, a gente se reconhecesse um pouco”, avalia. 

Além dos livros, Carol também é fã das adaptações para o cinema de Orgulho e preconceito (2005) e Emma (2020), obras amadas por muitos e que várias vezes foram portas de entrada para a obra literária de Jane Austen. 

Estrelado pelos atores britânicos Keira Knightley e Matthew Macfadyen, Orgulho e preconceito pode ser considerada uma das adaptações de maior sucesso dos anos 2000. Recontando a história de Elizabeth e Darcy nas telonas, uma geração inteira de adolescentes e jovens adultos se encantou com o romance publicado em 1813. É prova concreta de que, ainda que escrito a tantos anos, as relações sociais entre personagens se perpetuaram e seguem, ao menos em parte, atuais. 

Entre o conservador e o progressista, está Jane Austen. Em seus escritos não pregou mudanças ou revoluções de ideias, não protestou em praça pública ou criou personagens completamente disruptivos das morais e costumes de seu tempo. O que Jane fez, e aí está seu mérito, foi revelar com bastante precisão, como a vida privada acontecia. Como se utilizasse uma lupa, escancarou as portas das casas de seus vizinhos a fim de contar histórias que fossem verossímeis e enxergou a verdadeira face das relações. 

Emma, Elizabeth, Anne, Catherine, Elinor, Marianne e Fanny são protagonistas que representam de maneira fiel o que significa ser uma mulher na Inglaterra do século XIX, fadada a respeitar os desejos do pai, esperar um pedido para dançar e lutar a fim de conquistar um marido, já que apenas assim poderia viver uma vida sem julgamentos. 

Talvez o seu ato mais revolucionário, de fato, tenha sido o de escrever. Assim como suas heroínas, Jane Austen viveu em um tempo em que a educação formal era negada às meninas e que o trabalho era algo imperdoável. Jane ter se tornado escritora não foi motivo de orgulho para a família, que mesmo possuindo uma visão mais aberta às intelectualidades, seguia os moldes da época. 

Em um trecho de Mansfield Park, Austen escreveu: “Dê a uma garota uma educação e a apresente adequadamente ao mundo, e é muito provável que ela tenha os meios para se dar bem, sem depender de mais ninguém”.