Que a paz perdure sempre

Escritores Luís de Camões e Eça de Queiroz tiveram a vida eterna perturbada quando foram obrigados a mudar de morada em Lisboa

Mais de um século após a sua morte, um dos ícones da literatura portuguesa tem visto nos últimos anos a paz do seu sono eterno quebrada por uma questão para lá de mundana. Em 2021, o Governo de Portugal decidiu transladar os restos mortais de Eça de Queiroz, autor de Os Maias, do pequeno vilarejo de Santa Cruz do Douro, no município de Baião, no norte do país, para o Panteão Nacional, em Lisboa, onde teria a companhia de outras figuras ilustres da história lusa, como a fadista Amália e o jogador Eusébio.

A decisão, porém, não agradou parte dos herdeiros do escritor nem o prefeito de Baião e a “mudança de endereço”, aparentemente uma decisão pacífica, arrastou-se na justiça até junho deste ano, quando o Supremo Tribunal Administrativo de Lisboa, em última instância, considerou improcedente a quarta ação impetrada por seis dos bisnetos do autor e bateu o martelo favorável à trasladação dos restos mortais para o Panteão ainda em 2024, devolvendo a paz ao sono eterno de Eça de Queiroz.

A querela judicial-familiar com toques literários é um bom exemplo da importância para um cemitério, um monumento e até para uma cidade em ter como “hóspede” um nome famoso. Ao lado de políticos, heróis de guerra e estrelas pop, os escritores têm literalmente uma palavra a dar sobre o assunto, atraindo um tipo bem peculiar de visitante, adeptos do dark tourism, ou turismo cemiterial, em bom português.

Aos leitores adeptos da modalidade que une lazer, cultura e uma certa dose de morbidade, Lisboa reserva uma “biblioteca” de respeito, espalhada por entre mausoléus, jazigos, monumentos, igrejas e até a sombra de uma árvore, onde é possível prestar homenagem ao escritor favorito mesmo longe de uma biblioteca ou livraria.

A começar pela futura “casa” de Eça de Queiroz, o Panteão Nacional, um monumento que por si só vale a visita pela sua beleza arquitetônica, onde se destaca a imponente abóbada que corta o skyline da capital e pode ser avistada praticamente todos os miradouros lisboetas e até da outra margem do Tejo.

Dedicado a perpetuar a memória dos grandes nomes portugueses, o Panteão ocupa as dependências da Igreja de Santa Engrácia, na freguesia de São Vicente. A construção do belo prédio carrega uma história curiosa: a primeira pedra foi posta em 1682, mas daí até a inauguração transcorreram longos 284 anos, o que viria ocorrer em 1966.

A demora obrigou os portugueses a escolherem outras igrejas para panteonizar os seus grandes nomes, entre elas o Mosteiro dos Jerônimos, que mesmo após a aguardada inauguração do panteão oficial acabou por manter o status.

No Panteão Nacional estão alguns nomes facilmente reconhecidos pelos brasileiros, seja nos livros ou nas placas que ostentam os nomes das ruas de Lisboa, entre eles o de Almeida Garrett, que batiza a principal via que liga a Baixa Pombalina ao Chiado, onde encontra-se a livraria mais antiga em atividade no mundo, a Bertrand, com as portas abertas desde 1732, resistindo a guerras, invasões napoleônicas e até ao grande terremoto de 1755.

Considerado o fundador do romantismo português, Almeida Garrett foi um dos maiores defensores de um panteão português, nos moldes do existente em Paris. Morto em 1854, porém, só viria ser celebrado pela invenção que defendera em 1966, sendo um dos primeiros a ocupar o recém-inaugurado espaço. À espera de Eça de Queiroz também estão Aquilino Ribeiro e Guerra Junqueira, além de Sophia de Mello Breyner, considerada um dos maiores nomes da poesia portuguesa no século XX.

Mas nem só conhecidos nomes da literatura portuguesa passaram por lá. Em 2003, o Panteão Nacional abriu as portas para… Harry Potter, no lançamento do quinto livro da série do famoso mago, Harry Potter e a Ordem da Fênix. O Panteão também recebeu jantares de gala e eventos de negócio, até um decreto de 2017 decidir por um ponto-final na história de pessoas a comerem ou passearem sobre os túmulos dos grandes nomes da história portuguesa.

Não muito longe do Panteão, é possível pegar o icônico elétrico 28, para nós brasileiros, o inconfundível bonde amarelo lisboeta, que serpenteia pelas ruas dos bairros históricos e tem como terminal o Cemitério dos Prazeres, na aristocrática freguesia de Campo de Ourique, conhecida como refúgio dos milhares de imigrantes franceses em Lisboa, apelidada assim pelos lisboetas de Champs de Ourique.

Os Prazeres, como é intimamente chamado o cemitério por quem vive em Lisboa, assim como o Panteão, é um ponto turístico da cidade, mesmo para quem não se autodenomina um turista cemiterial. Os 12 hectares de áreas revelam pontos da história de Lisboa, desde a epidemia de cólera no início do século XIX que precipitou a construção da necrópole em 1833, às várias fases da arquitetura da cidade, reproduzida um pouco lá e acolá nos cerca de sete mil jazigos.

Jazigos que acolhem uma safra de respeito dos escritores portugueses, como os poetas Cesário Verde, considerado um dos precursores do que viria a ser a poesia modernista em Portugal, e Mário Cesariny, principal nome da poética surrealista no país, além dos romancistas contemporâneos Fernando Namora e o ítalo-lusitano Antônio Tabucchi. A lista é tão longa que levou a prefeitura de Lisboa a organizar visitas guiadas literárias regulares no cemitério.

Um dos pesos-pesados da literatura portuguesa, porém, já lá não está. Sepultado no jazigo da família, o poeta Fernando Pessoa descansou sob os ciprestes desde a sua morte, em 1935, até 1985, quando decidiram levar o corpo de um dos maiores da literatura de Portugal para o Mosteiro dos Jerônimos.

A mudança separou Pessoa do seu único amor, Ophélia Queiroz. Uma relação que parecia ter finalmente descansado em paz nos Prazeres, após as idas e vindas provocadas pela personalidade instável e misantropa do poeta, ao ponto de Ophélia manter trocas de cartas não com Pessoa, mas com um dos heterônimos dele, Álvaro de Campos, que a advertia dos riscos de seguir com o namoro.

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