Lançado em 1964, o livro Guerra em surdina, do tradutor Boris Schnaiderman, foi reeditado em 2025, data em que se comemora os 80 anos do final do conflito. Escrito em primeira pessoa, às vezes em terceira, por um jovem que participou dos combates com os alemães, Boris aparece nesse livro não como o intelectual refinado que traduziria Dostoiévski, Tchékhov ou Tolstói, mas como o imigrante russo-judeu que chegou ao Brasil ainda criança, e que se alistou na Força Expedicionária Brasileira (FEB) com plena convicção de que o nazismo era um mal a ser combatido com a própria vida.
Nele, Boris relata a convocação dos pracinhas e constata que poucos acreditavam que valia a pena enfrentar os alemães. “Eu me alistei de forma voluntária, não poderia imaginar que combateria com homens que falavam da guerra como quem fala de uma caçada.”
A descrença dos brasileiros era tamanha, que inventaram a expressão "a cobra vai fumar", usada pela FEB durante a Segunda Guerra, como uma piada. Diziam que seria mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra. A FEB adotou essa frase e o símbolo da cobra fumando como resposta e lema de luta.
O texto de Boris tem uma densidade rara. Ele não mitifica a FEB nem a demoniza. Faz uma análise crítica tanto da ignorância, como da humanidade dos soldados comuns. Demonstra, principalmente, a falta de preparo e de condições de combate a que foram submetidos os brasileiros.
Boris conta a chegada a Nápoles, o choque diante da decadência e da miséria em que viviam os italianos, a falta de informações e de comandos claros sobre para onde iriam os soldados ou o que fariam, e o medo que imperava diante daquela massa de homens que não tinha ódio ou motivos para matar os alemães. Pelo menos até o início dos combates.
O interessante no livro é observar o tom crescente: primeiro de perplexidade, depois horror e, finalmente, de ódio contra o inimigo, a partir dos inícios das batalhas, das perdas dos companheiros, dos ataques dos alemães.
Com a caminhada para o Norte, onde aconteceriam os combates, o contato com os americanos se intensificou. E também a perplexidade. “A pressa, a improvisação parecem caracterizar todos os nossos movimentos”.
Já nas primeiras frentes de combate, o sentimento entre os pracinhas havia mudado. “Agora tudo mudou. A brutalidade, a estupidez da guerra nazista são por demais evidentes. O bombardeio contínuo das cidades, a população alucinada de pavor, as crianças famintas, as notícias de atrocidades contra os partigiani e seus parentes, a morte dos companheiros, tudo isso tem o seu reflexo mesmo no homem de gênio mais brando. Ouço um soldado da infantaria dizer: “O tenente não me deixou ficar com o prisioneiro. Foi uma pena. Eu queria era matá-lo devagarinho, devagarinho…”
No meio dos embates, Boris também relata um episódio vexaminoso, que demonstrava o despreparo de alguns pracinhas recém-chegados.
“Um pelotão foi mandado à terra de ninguém. Percorreu um trecho de terreno, as sombras movendo-se na sua frente; os homens agachavam-se …E então houve alguém que perdeu a cabeça. Dizem alguns que foi um tenente mocinho, outros afirmam que foi um sargento. O fato é que alguém gritou. ‘Vamos embora, os homens vêm aí.’ E foi o sinal para a avalanche humana, os homens vêm aí. Acabou-se a disciplina, acabou-se a noção de dever, era pânico, os olhos esgazeados, a corrida desabalada morro abaixo.”
Todos foram presos, e um batalhão veterano retornou à posição, não encontrando sinal do inimigo, mas apenas o material abandonado intacto.
O autor também recorda a tomada do Monte Belvedere pelos americanos e a véspera do ataque ao Monte Castello, que seria conquistado pelos pracinhas no dia seguinte, 21 de fevereiro. Após já estar no Brasil, Boris Schnaiderman fez um desabafo da experiência que, segundo ele, limitou-se ao medo. “O que eu te digo: o que houve de mais importante em toda a guerra foi mesmo o medo.”
Visão de inimigos e aliados
O jornalista William Waack, no livro As duas faces da glória – A FEB vista pelos seus aliados e inimigos, resgatou documentos sigilosos, trazendo avaliações dos americanos sobre os pracinhas.
Waack recorda que o nascimento da FEB foi o resultado de complexas negociações, nas quais depressa ficou claro que Washington não visava apenas fardar e armar brasileiros para lutar. Eles queriam também anular a possibilidade da neutralidade de Getúlio em relação ao Eixo, e mostrar que tinham o controle do continente, contando com o apoio do maior país da América do Sul.
Desde o início, antes dos embarques, os americanos já tinham restrições aos soldados da FEB, posição que fica clara em alguns relatórios resgatados. “Há duas classes sociais no Brasil, a alta e a baixa, com uma pequena classe média que financeiramente está mais próxima da baixa … Os brasileiros instruídos (há muitos na classe alta), são inteligentes, mentalmente rápidos e bem-informados. O grosso da população, contudo, consiste na classe baixa. Eles são, em larga extensão, analfabetos… ” O relatório contava ainda que outro grande problema do soldado brasileiro era médico. “Doenças venéreas ocorrem em alto grau. Os cuidados com os dentes foram muito negligenciados – a dieta brasileira tem muitas deficiências…”
Mas os americanos explicam porque o envio da FEB deveria ser efetuado. Em abril de 1944, o secretário de Estado em Washington, Corden Hun, mandou instruções a Londres pedindo que os diplomatas americanos comunicassem ao primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, a importância que a ida da FEB tinha para a política interna brasileira. “O presidente Getúlio Vargas colaborou totalmente no esforço de guerra, incitou toda a população brasileira a participar e transformou o envio da FEB numa espécie de pedra de toque do seu governo. Se a Divisão brasileira não for enviada, pode-se temer pela própria estabilidade do regime de Vargas.” A resposta de Churchill enviada à Itália em 1º de maio foi rápida: engaje-os.
A chegada dos brasileiros à Itália não se deu de uma só vez, mas por partes, num total de 25 mil homens durante a guerra.
Desde o início os problemas com os americanos foram de várias ordens. Os soldados deixavam os carros sem água e sem óleo. Não eram pontuais nos exercícios e à noite não tomavam os cuidados com segurança, deixando acesas fogueiras que podiam ser vistas a quilômetros.
Independentemente das queixas, a FEB entrou na guerra em outubro de 1944, quando os alemães já estavam de costas para a parede. Os alemães, por sua vez, só tiveram conhecimento dos pracinhas em 15 de outubro, quando dois deles foram feitos prisioneiros.
Em outubro de 1944 a FEB começou a chegar aos Apeninos – onde os soldados da 232ª divisão alemã já se encontravam. Apesar do empenho dos pracinhas, “Monte Castello nunca existiu para os alemães, seu nome não consta de qualquer comunicado oficial de divisões, exércitos e muito menos dos volumosos Diários de Guerra do Supremo Comando da Wehrmacht”, diz Waack no livro.
As encostas onde a FEB sofreu mais de um terço de todas as suas baixas (465 mortos e 1577 feridos), até conquistá-las em fevereiro de 1945, eram para os alemães o anônimo “101/19”, ou seja, o ponto 19 do quadrado 101 da sétima edição do mapa em escala 1:000.000, utilizado pelo comando do XIV Exército desde novembro de 1944.
Para os alemães, apesar do Monte Castello dominar a cidade de Porretta Terme, a chave do sistema não era essa elevação, mas o Belvedere, distante 4,5 km de onde a FEB consumou sua maior glória. Ele era o pivô da defesa e é dele que falam os documentos oficiais, os depoimentos de comandantes e os relatos de veteranos alemães quando se referem aos combates nos Apeninos.
Quando se iniciou a ofensiva limitada de fevereiro de 1945, o peso das forças aliadas (principalmente da 10ª de Montanha americana) foi jogado contra o Belvedere, e o Castello pôde ser tomado na penúltima etapa de uma longa manobra. Os alemães não tentaram qualquer contra-ataque de envergadura para recuperar o Castello, o que aconteceu sem exceção nos montes próximos.
O que leva a conclusão, pela narrativa alemã, segundo William Waack, “é que os brasileiros cumpriram no Monte Castello uma missão tática secundária, uma manobra de apoio ao ataque principal, a qual não mereceu sequer registro por parte dos perdedores.”
“Infelizmente, os nove oficiais (entre 17 sobreviventes) da 232ª que puderam ser localizados não se recordam nem das derrotas e nem da vitória brasileira. Grande parte deles sequer sabia que enfrentara brasileiros na Itália”, observa Waack.
Na campanha aos Apeninos, a FEB teve quatro derrotas antes de conquistar o posto. No dia 30 de novembro de 1944, contabilizou-se 80 baixas, que os alemães só descobriram ser brasileiros quando, no dia 2 de dezembro, pegaram os papéis dos mortos. Outra grande operação de assalto levada a cabo pela FEB contra Monte Castello, que aconteceu no dia 12 de dezembro, com sérias consequências para os brasileiros, ganhou apenas breves linhas nos comunicados alemães.
Os fracassos das batalhas iniciais em 1944, fizeram a FEB cair em depressão. O país entrou em comoção com os rumores sobre o número de baixas. Mas de que maneira os episódios foram registrados pelos americanos?
Em um material confidencial, nunca disponibilizado aos brasileiros, oficiais americanos fizeram apreciações sobre a capacidade de combate dos brasileiros, e com exceção do esquadrão de caça da Força Aérea, todos resultaram em conteúdo negativo.
Para o supremo comandante aliado, o marechal Alexander, “os brasileiros deixaram uma impressão particularmente ruim nas recentes lutas.” O marechal Mark Clark, por sua vez, fez críticas duras, dizendo que os aliados tinham chegado ao limite do tolerável.” Já o coronel Walter Sewell ia mais longe, dizendo que “ a Divisão Expedicionária estava causando enormes preocupações a todos”.
Em 1945, a luta pela tomada do Monte Castello continuou. E a 21 de fevereiro, com a ajuda da 10ª de montanha americana, os brasileiros derrotaram os alemães. No Brasil, o marechal Mascarenhas de Moraes comemorou a vitória. Nesse mesmo dia, recebeu o cumprimento de oficiais americanos.
Apesar disso, sigilosamente, os americanos diriam que a operação da FEB fora de pequena escala. Eles é que teriam feito anteriormente, nos flancos, a parte pesada do trabalho, e os alemães não tinham outra alternativa senão recuar.
Após Monte Castello, a FEB conquistou outras localidades importantes, como Castelnuovo, Montese, Zocca e Coléquio. E também participou da tomada de Fornovo di Taro, que marcou a derrota dos alemães na Itália. Cerca de 457 pracinhas brasileiros morreram e outros 2.700 foram feridos ou mutilados.
Apesar das críticas americanas e da indiferença alemã, os pracinhas deixaram sua marca em território italiano. Em Montese, região onde eles ficaram acampados e defenderam os civis, foi criada a Piazza Brasile (Praça Brasil), um reconhecimento pela participação da Força Expedicionária Brasileira na libertação da cidade durante a Segunda Guerra Mundial.