O músico sonha, a obra nasce

André Luiz Oliveira remonta à realização do projeto Mensagem, com os poemas musicados do livro homônimo de Fernando Pessoa

André Luiz Oliveira tinha 20 anos quando escutou pela primeira vez "É proibido proibir". Vários aspectos o fascinavam nessa composição de seu conterrâneo Caetano Veloso: a letra, a música, o arranjo, o discurso. Mas um ponto, em especial, fisgou seu interesse, aquele em que o cantor, numa espécie de transe psicodélico, faz a declamação: “Caí no areal na hora adversa/ Que Deus concede aos seus/ Para o intervalo em que esteja a alma imersa/ Em sonhos que são Deus/ Que importa o areal e a morte e a desventura/ Se com Deus me guardei?/ É O que me sonhei que eterno dura/É Esse que regressarei”.

André ficou encantado e veio a descobrir que se tratava de um trecho do poema “D. Sebastião”, terceira parte de Mensagem, “O Encoberto”, de Fernando Pessoa. Começava, então, sua paixão pelo poeta português. “Havia a vontade de me integrar na biografia dele, como se fosse um parente próximo, muito próximo, que eu passei a admirar, amar a figura, o jeito que ele sempre teve, uma radicalidade absurda, e, ao mesmo tempo, uma pluralidade cheia de personagens”, conta, em entrevista, à Pernambuco.

Já o despertar para a música de André Luiz Oliveira veio através da família. Sua memória musical mais marcante foi quando ouviu no rádio, pela primeira vez, outro conterrâneo, João Gilberto, cantando “Chega de saudade”. O mundo do adolescente, assim como o de outras pessoas, mudou a partir daquele momento. André tinha 10 ou 11 anos de idade. E essa foi sua primeira epifania antes de Fernando Pessoa – ambas fizeram ruir sua visão anterior de mundo.

“A semente foi ali”, afirmou, sobre o conhecer o artista do desassossego. “Ali, comecei a entender que era uma pessoa diferenciada, o próprio Pessoa, e que eu participava daquela forma de pensar, daquela forma de viver, da forma daquilo. Ali me dizia muito. Depois, vi várias pessoas falando coisas muito próximas disso que eu sentia, que são os pessoanos mais próximos, como Cida Moreira, por exemplo, Caetano… Enfim, muitas pessoas que tinham com ele essa intimidade", conta.

Com esses dois interesses artísticos fortes, a música e o cinema, André Luiz enveredou pelo caminho desta última arte e se tornou cineasta. Realizou filmes como o seu primeiro longa-metragem, o premiado Meteorango Kid – O Herói Intergaláctico, em 1969. Em 1971, fez o curta-metragem A fonte, documentário sobre o escultor baiano Mário Cravo. Nas décadas seguintes, realizaria vários curtas, mais um longa-metragem de ficção (o premiado Louco por Cinema, de 1994), roteiros e documentários, como Meu amigo Lorenzo (2024).

Mesmo tendo o cinema como sua linguagem principal, curiosamente, André Luiz nunca pensou em fazer um filme sobre Fernando Pessoa e aproveitou o tempo em que tirava longas férias das telas para voltar os olhos para a música. “Como eu tinha me afastado (do cinema), eu queria mudar de paradigma, partir para a música mesmo. Mas, enfim, aí a continuação foi um absurdo, porque fiquei anos esperando, fazendo músicas, dos 44 poemas (de Mensagem). Era um guia para eu continuar tocando violão e fazendo músicas, até que eu fiz umas 30 e poucas”, lembra.

A ideia de musicar os poemas do livro Mensagem (1934) – único de Fernando Pessoa publicado em vida –, aconteceu em meados dos anos 1980, próximo à efeméride dos 50 anos da morte do autor português. Na época, a música popular brasileira já tinha testemunhado a bem-sucedida transformação de poemas em canções, como “Funeral de um lavrador” (João Cabral), por Chico Buarque, "Fanatismo” (Florbela Espanca), “Traduzir-se” (Ferreira Gullar) e “Canteiros” (Cecília Meireles), por Fagner.

No entanto, esses artistas lançaram discos por gravadoras. E André, não. Mas o acaso, ou a “providência divina”, trataria de resolver esse detalhe. “Em 1985, de repente, um amigo me apresentou ao presidente da Gradiente, que era uma empresa de toca-discos, Eugênio Staub. Ele se encantou com o projeto e aí o aprovou”, lembra o compositor que, na época, morava em São Paulo.

As músicas já estavam sendo compostas e com uma fluidez que surpreendeu o próprio compositor. Para ele, a sonoridade dos poemas contribuía para isso, assim como imaginar cada uma das novas composições nas vozes de seus futuros intérpretes. “Eu ia fazer a música, e quando eu via que ela estava se formando, aparecia o personagem, o intérprete. Por isso, não houve recusa, foi uma coisa bem orgânica", avalia. André não quis quaisquer vozes, mas algumas das principais do país. E arregimentou uma a uma. “Fiz 12 músicas iniciais dos poemas, sem a ordem do livro mesmo, e aí a coisa tomou forma. Em 1986, saiu o LP.”

André Luiz promoveu considerável reunião de cantores: Gilberto Gil, Cida Moreira, Gal Costa, Elizeth Cardoso, Moraes Moreira, Glória de Lourdes (fadista), Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Belchior, Zé Ramalho e Caetano Veloso, que havia sido o estopim da coisa toda, em 1968. As composições ainda tiveram arranjos de Francis Hime. E o saldo é que Mensagem vendeu mais de 30 mil cópias, uma façanha para um LP que fugiu ao protocolo natural de gravação dos anos 1980.

Após lançar o disco, André Luiz fez uma série de apresentações em torno desse trabalho. E em Portugal, onde morou por um ano, no final dos anos 1970, ganhou uma comenda do governo federal e uma carta elogiosa da irmã de Fernando Pessoa. “Eu e minha família ficamos maravilhados com a beleza deste trabalho; a música é belíssima e atrai a Mensagem para todas as possibilidades; os poemas do Fernando ganharam com tão belo espetáculo”, escreveu Henriqueta Madalena Aguiar Rosa Dias.

”Sempre me identifiquei com esse poeta, e é uma alegria imensa, parece uma coisa prosaica, mas é real, é de fazer parte da biografia dele. E agora mesmo fui convidado, para, em 30 de novembro, participar de um seminário em Portugal, online. Eu vejo nas biografias dele a menção à música do Mensagem. Isso me dá uma alegria muito grande, não pelo reconhecimento externo, mas pelo reconhecimento da obra que, às vezes, nem parece que fui eu que fiz, às vezes parece uma coisa psicomusicada. Ela tem uma dimensão, para mim, muito maior”, observa o compositor que, desde 1991, mora em Brasília.

“Uma vez, Cida Moreira (a cantora paulistana e Gil participaram dos três discos de Mensagem) falou para mim, em um documentário que minha filha fez junto comigo sobre o trabalho todo, que durou 30 anos, chamado Mito e Música, a Mensagem de Fernando Pessoa. Cida diz, ‘assim como nós somos muito menores do que o poeta, a música que você faz é muito maior do que você’. Eu achei fantástico", complementa André Luiz.

Mesmo assim, ele considera que o álbum teve uma recepção de poucas proporções naquele país, seja por divulgação insuficiente ou por ciúme dos portugueses. “É um disco quase de nicho mesmo, de aficionados”. Então, na sequência, o artista voltou ao trabalho como cineasta. Depois, “surgiu novamente a oportunidade de encontrar o dono da Gradiente, no elevador do Ministério da Cultura”.

Após uma breve conversa, o executivo disse “Vamos continuar". E, em 2005, veio o Mensagem 2, desta vez em CD, com a participação de Milton Nascimento, Mônica Salmaso, Cida Moreira, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Paula Rasec, Glória de Lurdes, Edson Cordeiro, Ná Ozzetti, Daniela Mercury, Zeca Baleiro e Mário Lúcio. E, em 2015, foi lançado o terceiro volume, com Fagner, Dulce Pontes, Raquel Tavares, António Zambujo, Carlos do Carmo, Cláudia Leitte, Caetano, Gil, Zélia Duncan e Zizi Possi. Foi realizada, também, uma edição luxuosa com os três discos em uma caixa de madeira, acrescida de um livro e um ensaio fotográfico. “Mas aconteceu uma ‘tragédia’, entre aspas, coisas de Fernando Pessoa”: o novo projeto chegou no contexto em que os CD-players deixavam de ser fabricados no Brasil e, os CDs, de serem comprados.

Agora, nos 90 anos da morte de Fernando Pessoa, André Luiz Oliveira está com um novo projeto. Um caixa com songbook, com todas as canções em cinco LPs – quatro LPs contemplam os 44 poemas e um traz os shows gravados. “Pode ser até que saia neste mês. E eu estou falando aqui sem saber o que está acontecendo lá por cima ou por baixo. O projeto é lindo. Vai ter uma bela repercussão, porque têm pessoas incríveis cantando ali. A ideia é incrível. O Brasil precisa ouvir essa mística luso-brasileira, porque ali têm impregnados os poemas de uma interpretação da brasilidade de outra maneira”, analisa o artista, otimista com o acaso ou a “providência divina”, tal qual Pessoa em Mensagem: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.