Uma das maiores vozes da literatura contemporânea em língua portuguesa silenciou-se. Aos 81 anos, o escritor português António Lobo Antunes continua vivo, mas o dono de uma vasta, reconhecida e premiada obra iniciada em 1979, com o livro Memória de elefante, ironicamente teve a carreira encerrada após os sintomas provocados pelo diagnóstico de demência, que nos últimos anos apagaram-lhe a memória e as palavras escritas à mão que um dia preencheram em milhares de folhas de papel quatro dezenas de títulos, entre romances e coletâneas das crônicas semanais publicadas por duas décadas na revista portuguesa Visão.
“Parou de escrever e parou até o cigarro, que para ele era como respirar”, atesta o escritor e jornalista João Céu e Silva, autor de Uma longa viagem com António Lobo Antunes e que nos últimos 15 anos foi uma espécie de confessor do mais polêmico escritor português do século XX, amado por milhares de leitores em Portugal e nas dezenas de países onde foi traduzido, mas ignorado e até odiado pelos seus pares, bem como pelos repórteres que um dia tiveram frente a frente com ele numa entrevista. Principalmente, pelas jornalistas, incomodadas pelo que costumavam ouvir nas entrevistas.
Um perfil confirmado na narrativa que João Céu e Silva faz do primeiro contato com o autor, em 2007, na primeira das 70 entrevistas travadas com ele, quando Lobo Antunes barrou-o à entrada, dizendo: “Não o conheço. Quem costuma vir entrevistar-me são umas colegas suas”. O impasse só foi resolvido quando o experiente jornalista revidou: “Não costumo entrevistar escritores portugueses, só estrangeiros e dos bons”.
Extremamente vaidoso e com fama de sedutor, portanto, António Lobo Antunes é um homem de outro tempo, pré-cancelamentos e wokismos. Como Hemingway, protagonizou o papel do escritor-alfa que não se escusava de frequentar as trincheiras das batalhas amorosas nem as bélicas. Ainda antes de estrear como escritor, esteve no front, durante a Guerra Colonial, a serviço em Angola, uma experiência que serviu de matéria-prima para vários de seus livros, o mais famoso deles Os cus de Judas (1979), o seu segundo trabalho e que o catapultaria em definitivo ao panteão da literatura portuguesa.
O título do livro é uma referência a um longínquo rincão do mapa angolano, uma espécie de apêndice em forma retangular que se estende em direção aos limites do Congo e da Zâmbia, o que talvez explique o uso nos dois lados do Atlântico dos cus de Judas para definir um ermo destino. É nessa metafórica latitude que um médico português passa 27 meses a serviço do exército português, as memórias de um conflito que estilhaçou corpos e almas narradas no balcão de um bar de Lisboa em tom de monólogo, na companhia de uma mulher que se limita apenas a ouvir.
Um médico como o próprio Lobo Antunes, especializado em psiquiatria, cumprindo a tradição de uma família de doutores desbravadores dos meandros do cérebro humano, como o pai, o neurologista João Alfredo, e os irmãos Nuno e João, respectivamente neuropediatra e neurocirurgião portugueses. Uma linhagem que não livrou o escritor de começar a se perder no labirinto da própria memória, os primeiros sintomas confundidos com o agudizar de uma personalidade conhecida pelo mau feitio e os arroubos de estrelismo e arrogância.
Um desses últimos episódios foi protagonizado em 2019, quando Lobo Antunes unilateralmente rompeu com a revista Visão, após 19 anos de colaboração, após ter sua imagem utilizada numa campanha promocional estampada numa tote bag (sacola). O escritor ameaçou iniciar uma batalha judicial, enquanto a publicação defendia-se argumentando que o uso da imagem havia sido autorizado pelo autor. Em comunicado sobre o ruidoso distrato, a revista lembrou que até “mesmo os gênios” têm o direito a tropeçar e que o “cansaço e a acidez” de Lobo Antunes tornaram-se indisfarçável nas suas crônicas, “que o próprio apelidava de medíocres”, confessando nas mesmas que só escrevia “por dinheiro”, o que acabou por se fazer notar aos leitores.
A mágoa em relação à revista que o publicara semanalmente em boa parte da carreira não se compara, porém, com a nutrida contra outro gigante da literatura portuguesa, José Saramago, a quem Lobo Antunes não perdoa lhe ter “roubado” o primeiro e até agora único Prêmio Nobel de Literatura concedido a um escritor português. Um embate travado em silêncio pelo lado vencedor, já que Saramago se incluía no rol de desafetos do escritor que preferia ignorar a ira do oponente.
Apesar da mágoa indisfarçável para o círculo mais íntimo, Lobo Antunes manteve um certo recato público, quebrado apenas em 2018, numa das dezenas de entrevistas que deu a João Céu e Silva que estão transcritas na íntegra em Uma longa viagem com António Lobo Antunes. Nessa, publicada no Diário de Notícias, em um determinado momento o escritor dispara “o Nobel que se foda!”, segundo o jornalista, com direito a uma ênfase e insistência para que o verbo assim fosse mantido na versão publicada.
Na mesma entrevista, no que talvez fosse um dos primeiros sintomas da demência que se acentuaria a seguir, Lobo Antunes disparou um “Saramago é uma merda”, para em seguida ressaltar: “Se me quiserem comparar com alguém, ponham lá o Antero (de Quental) e o (Alexandre) Herculano…”, para em seguida apontar a metralhadora a outro ícone da literatura portuguesa, nada mais que Eça de Queiroz. “Não partilho esse amor por Eça de Queiroz, de quem gostei muito até aos 17 anos, depois comecei a escrever mais a sério e a minha admiração foi diminuindo”, disse.
A para lá de polêmica entrevista não estava na primeira versão de Uma longa viagem com António Lobo Antunes, publicada originalmente em 2009. Essa e outras dezenas que se sucederam após a publicação do livro, realizadas como parte da rotina de dois velhos amigos que se reuniam semanalmente numa úmida garagem no térreo do prédio onde Lobo Antunes vive em Lisboa, adaptado para ser o escritório no qual o autor escreveu a maior parte dos seus textos, sob o frio provocado pelas frestas do velho portão. “Ele não se queixava, pelo contrário, preferia sofrer enquanto escrevia, uma espécie de tortura criativa”, conta João Céu e Silva.
Os encontros aconteciam às sextas-feiras, entre às 15h e às 17h. “Na primeira meia-hora aquecemos e depois ligava o gravador, que ficava perto dele, sobre o tampo de vidro da mesa”, revela João Céu e Silva. O ritual seguia após a entrevista, quando ambos atravessavam a rua para um café para uma informal conversa “de gajo”, sobre futebol e mulheres. O conteúdo desses colóquios de potencial bombástico nunca foi revelado pelo escritor.
O que começou como a coleta de informação para a primeira edição de Uma longa viagem com António Lobo Antunes terminou como uma forma de grande amizade. Tanto que Lobo Antunes costumava exigir à editora que João Céu e Silva acompanhasse-o nas viagens internacionais onde falaria ao público e seria premiado, como aconteceu nas idas à Bélgica, aos Estados Unidos e ao México.
Os laços de confiança e partilha estreitaram-se de tal forma, que o jornalista se sentiu confiante para revelar um tema mantido em segredo nos primeiros encontros e que poderia ter sido crucial na negativa de Lobo Antunes em embarcar na longa viagem proposta. “No início dos trabalhos com ele, estava em paralelo a finalizar um projeto editorial semelhante com o Saramago. Mas isso, obviamente, só foi revelado um tempo depois.”
O que poderia ser um entrave, acabou por abrir a porta para que Lobo Antunes comentasse a respeito do desafeto, culminando com a citada entrevista em 2018. Uma longa viagem com José Saramago foi publicada no mesmo ano, meses antes, e obviamente não mereceu atenção de Lobo Antunes. Além dos dois cânones da literatura contemporânea portuguesa, também embarcaram com João Céu e Silva os escritores Miguel Torga, Manuel Alegre e Vasco Pulido Valente e, de forma póstuma, o icônico líder do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal, autor de romances e novelas sob o pseudónimo Manuel Tiago.
Nada que se compare, porém, o longo tempo de voo com Lobo Antunes, com mais de uma centena e meia de horas de gravação. Para se estabelecer uma comparação, a viagem com Saramago teve um pouco mais de duas dezenas de escalas, entre elas dois anos de constantes idas à ilha espanhola de Lanzarote, onde o autor exilou-se após a polêmica envolvendo O Evangelho segundo Jesus Cristo e o governo português, que o retirou de uma lista de candidatos a um prêmio literário europeu por considerá-lo ofensivo “à moral cristã”.
Os dois velhos companheiros de viagem embarcaram pela última vez em 2021, numa última conversa, realizada não mais na úmida e fria garagem lisboeta, mas por telefone, devido às limitações impostas pela pandemia. “Confirmei a degradação do seu estado de saúde mental quando telefonei”, revela João Céu e Silva, que durante meia-hora sentiu-se numa “montanha-russa de um não diálogo” tantos foram os percalços. “Dessa vez o escritor estava como os personagens de muitos dos seus romances, que repetem ao longo do livro um mesmo pensamento, como se absortos da vida continuassem a viver.”
Neste ano, a Porto Editora desafiou João Céu e Silva a escrever uma nova versão da longa viagem com Lobo Antunes. “Não é uma segunda edição, mas um livro novo com quase uma centena de páginas com novas conversas que mantive com ele após a publicação do primeiro livro”, ressalta o jornalista.
Ainda inédito no Brasil, o livro foi lançado em setembro, sob ataques dos poucos mas fiéis escritores amigos de Lobo Antunes, num embate que envolve o luto em vida da família e os interesses da editora que publica o autor em Portugal, o grupo Leya, principal rival da Porto Editora no país. Uma longa viagem com António Lobo Antunes, entretanto, não merece estar no meio desse fogo-cruzado, até porque João Céu e Silva em nenhum momento faz uso do débil estado de saúde do autor como artifício promocional, pelo contrário, trata do tema com a discrição e delicadeza dedicada aos velhos amigos, entregando uma obra que é ao mesmo tempo um retrato e uma homenagem a um enorme escritor.
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