Em 2024, o governo federal distribuiu 194.607.371 exemplares de materiais didáticos para 31.132.847 alunos da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, em cerca de 120 mil escolas de todo o Brasil.
Os livros chegam às escolas graças a programas do Ministério da Educação (MEC) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Esses órgãos executam o Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), o maior programa de distribuição de livros didáticos do país e um dos maiores do mundo.
O PNLD existe desde 1937, e, a despeito das normas muito rígidas, atrai as editoras de pequeno, médio e grande porte, por causa da quantidade dos livros que o governo federal adquire.
Segundo informa Anita Stefani, diretora de Apoio à Gestão Educacional da Secretaria de Educação Básica do MEC, o programa visa garantir o acesso a materiais didáticos, alinhados às diretrizes pedagógicas do país. “O PNLD ajuda a promover a igualdade de oportunidades na educação, oferecendo livros que apoiem o aprendizado de forma eficiente e acessível para todos”, ela disse, em entrevista por e-mail à Pernambuco.
Para que isso aconteça, há um longo e burocrático processo que se inicia com a publicação de um edital específico para cada bloco de ensino. É esse edital que traz prazos e definições técnicas e pedagógicas do material a ser distribuído, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Em seguida, os livros passam por oito etapas: inscrição, avaliação pedagógica, habilitação, escolha, negociação, aquisição, distribuição, monitoramento e avaliação.
Os requisitos são tão complicados, que o MEC oferece até curso para entender o programa: a plataforma pnld-formacao.mec.gov.br, voltada especialmente para os profissionais envolvidos na avaliação pedagógica dos materiais didáticos. Essa formação ajuda os avaliadores a compreender os critérios técnicos e pedagógicos exigidos para aprovação de um material no âmbito do PNLD - de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
“A própria complexidade do processo de avaliação, que envolve diversas etapas e critérios rigorosos, atua como uma barreira de qualidade, impedindo que livros com erros conceituais, inadequações pedagógicas ou desrespeito às diretrizes curriculares sejam aprovados”, justifica Stefani.
Como se não bastasse todo o esforço para alcançar os resultados exigidos, a logística é um desafio ainda maior. “O processo é coordenado pelo FNDE em parceria com os Correios e redes estaduais e municipais de ensino. Após a escolha dos materiais pelas escolas, os livros são impressos e entregues diretamente nas unidades escolares, respeitando o cronograma previsto nos editais”, detalha Stefani.
A atualização de conteúdos, a formação de professores, a inserção de novas tecnologias e a garantia de inclusão também são exigências.
Sem ignorar a diversidade regional, o programa lançou recentemente um edital voltado aos anos iniciais do Ensino Fundamental, o PNLD 27, que prevê a produção de livros regionalizados de História e Geografia. “Esses materiais serão elaborados por editoras com base em diretrizes específicas, de forma a refletir as realidades locais e ampliar o senso de pertencimento dos estudantes”, afirma a gestora Stefani. “Essa obra regional pode melhorar a relação de proximidade com professores e alunos”, completa Xavier.
Para defender a laicidade do Estado e ficar livre de tendências políticas ou religiosas, como está previsto na Constituição Federal, o ensino deve ser baseado no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, respeitando a diversidade cultural, étnica, regional, de gênero e religiosa da sociedade brasileira. A imparcialidade e independência do processo, segundo Stefani, são garantidas pelos avaliadores especialistas selecionados em edital do MEC. “Durante essa etapa, materiais que apresentem conteúdo ideológico, doutrinário ou que desrespeitem direitos humanos e princípios constitucionais são desclassificados.”
Editoras
Desde 2018, o PNLD passou a incluir também os livros literários, a serem trabalhados em sala de aula. “Antes disso, havia compras esporádicas que faziam parte do Programa Nacional de Biblioteca Escolar (PNBE) do Ministério da Cultura”, recorda Ângelo Xavier, presidente da Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros).
Quando do início da preparação desta reportagem, estava em processo de escolha pelas escolas o PNLD 23 de obras literárias.
“É um programa que está, inclusive, atrasado no calendário do MEC e tem mais de 400 editoras com obras aprovadas. São cerca de mil obras que estão sendo escolhidas por 80 mil escolas de Ensino Fundamental de todo o Brasil”, afirma Ângelo. Ele diz que os livros didáticos e literários precisam se adaptar ao formato estipulado pelo PNLD para dimensões, capa, miolo e encadernação. Outra exigência é a inserção de um manual de orientação aos professores para trabalhos em sala de aula.
Para as editoras pequenas e iniciantes, entrar nesse filão de livros didáticos é garantia de sobrevivência, mas também de dor de cabeça burocrática. “Muitas dessas editoras são independentes, com produção pequena. Quando ela vai para um PNLD, é preciso apresentar contratos de direitos autorais e licenciar todas as imagens ou ilustrações que há dentro das obras”, explica Xavier, que é diretor da Editora Moderna, uma das maiores e mais constantes na produção de livros didáticos no Brasil. O PNLD representa entre 50% e 70% do faturamento de uma editora nessa especialização.
Para a diretora do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Cristiane de Mutüs Rocha, o mercado de aquisição de obras para o PNLD vive o que ela chama de “um momento delicado e preocupante”. O Snel atua efetivamente na análise e propostas de soluções para as questões que atingem o mercado e seus associados, com destaque para as que envolvem legislação e novas tecnologias.
Editoras maiores sempre têm mais recursos para correr o Brasil fazendo visitas corpo a corpo nas escolas. Mas a instituição educacional pública também pode escolher as obras que mais se adequam ao seu projeto, através do Guia Digital do PNLD. “O guia apresenta a obra, o material do professor e está acessível a todas as escolas e professores, permitindo uma equidade na apresentação oficial dos materiais a serem escolhidos”, informa a diretora do Snel.
Há atrasos na execução de alguns programas e risco orçamentário. “No âmbito do PNLD literário, a execução do PNLD 2022 (Educação Infantil) ocorreu somente no início de 2025. Temos atrasos no PNLD 2023 e 2024. Isto significa que os alunos do Ensino Fundamental não recebem livros novos dessa especificidade nas bibliotecas escolares desde 2020/2021. A reposição dos didáticos e a aquisição dos programas Educação de Jovens e Adultos (EJA) 26 e Ensino Médio 26 também estão atrasados, não tanto como literário, mas há atrasos”, aponta Cristiane, para quem as falhas não afetam a qualidade do programa.
Prova disso é o lançamento do edital do PNLD Literário Equidade, com proposta de adquirir obras literárias que promovam a diversidade cultural. O edital prevê sete temáticas: indígena, quilombola, de relações étnico-raciais, direitos humanos, populações do campo, das águas e das florestas, educação especial e educação bilíngue de surdos.
Produzir um livro didático requer investimento alto. É preciso ainda contar com o risco igualmente elevado de o livro ser reprovado pelo PNLD. Um alívio para as editoras é que o MEC passou a exigir apenas um extrato do livro.
“O último programa que nós estamos executando, que é o do Ensino Médio, o material promocional pode ter no máximo 10% do número de páginas para que as escolas recebam uma amostra geral do que é o conteúdo. A partir do ano que vem, pela regra existente hoje, esse material de promoção só poderá ser digital. O MEC entende que isso dá uma equilibrada na promoção dos títulos de qualquer editora, grande ou pequena”, diz Xavier.
Os últimos editais do MEC, desde 2022, incluem também a produção de livros digitais, mais um custo para as editoras, mas uma ferramenta importante para o ensino. “Esse livro digital é uma versão do livro impresso enriquecido com objetos educacionais digitais”, explica Xavier. Esse material digital, porém, ainda não tem sido distribuído em larga escala.
“O primeiro desafio que o MEC tinha era de construir uma plataforma digital que chegasse a todas as escolas. Este é um ponto ainda crítico do Brasil, pois sabemos das diferenças estruturais das escolas. Há regiões com estruturas de Internet ainda bastante precárias. Mas há casos positivos, como, o estado de Pernambuco, que tem uma estrutura na rede pública muito boa. As escolas de tempo integral de Pernambuco são um exemplo”, diz o diretor da Abrelivros.
Outra dificuldade apontada pelo diretor diz respeito ao cadastro de cada aluno dentro de uma plataforma de recurso digital. Com o advento da Lei Geral de Proteção de Dados, não se pode simplesmente inserir o aluno dentro de uma plataforma digital, pois trata-se de crianças menores de idade e adolescentes.
“Entendemos que o melhor para o aluno, em qualquer nível educacional, em qualquer tipo de escola, é que ele tenha condição de combinar recursos didáticos impressos com recursos didáticos digitais para um aprendizado mais impactante”, defende o diretor.
Além da Moderna, editoras como a FTD, Record e Companhia das Letras também são grandes produtoras de livros didáticos brasileiros. A Companhia das Letras já aprovou cerca de 120 títulos, desde que começou a participar do PNLD, em 2018, com obras literárias e informativas.
Para a executiva de vendas educacionais da editora, Sandra Bensadon, a diversidade de editoras enriquece o programa governamental. “Quando as escolas vão escolher os seus acervos bibliográficos, eles têm acesso a obras de editoras de todo o país, que contemplam diversos temas distintos.”
Bensadon ressalta que, desde que o PNLD literário foi implantado, muito mais editoras puderam entrar nos editais, o que causou aumento exponencial no trabalho de avaliação dessas obras por parte do governo. “Esses desafios operacionais causam atraso na distribuição. O que não ocorre no universo exclusivamente didático, pois já estabelecido e restrito a um número menor de editoras especializadas.”
Bensadon fala também que, no fim do processo de escrita do livro, até chegar à venda, lá se vão três anos. Nesse tempo, o aluno fica sem o livro e a editora e o autor, sem o pagamento. “Temos poucos fornecedores de papel, algumas gráficas no Brasil, quer dizer, é preciso fazer um planejamento também para que esse processo seja saudável para a cadeia como um todo.”
Editora de pequeno porte da Paraíba, a MVC tem investido em títulos para aprovação no PNLD literário. Com o advento dos livros regionalizados, a editora encontrou seu filão de mercado. De acordo com a diretora da editora, Luciana Neiva, a MVC produz livros mais voltados para a educação básica, ou seja, para os Ensinos Fundamental I e II. “É um programa muito criterioso na análise. Ter um livro aprovado, seja didático ou literário, é como uma validação de qualidade”, afirma Neiva. A vantagem de ser pequena e de investir em temáticas nordestinas é a proximidade com o cliente, ou seja, a escola.
Apesar de considerar a escolha dos livros bastante democrática, visto que, quando divulgados os títulos, sequer aparecem os nomes das editoras, o fato de haver a possibilidade de promoção dos livros pelas editoras diretamente com as escolas e professores pode favorecer as editoras maiores quanto à escolha dos títulos. “É preciso bancar uma estrutura de divulgação muito custosa para estar em todo o Brasil. Ainda bem que existe agora o marketing digital”, pontua Neiva. A editora paraibana busca aumentar o leque de alcance com o início da produção de livros didáticos. “Acabamos de aprovar um título de Inglês voltado para o Ensino Médio.”
Em 20 anos, a MVC conseguiu aprovar 17 títulos. Um deles é bem recente: Me chamo Ariano, um livro sob a forma de HQ. Neiva acredita que o fato de se tratar de obra sobre Ariano Suassuna pesou na escolha. E que grandes autores conhecidos no cenário literário têm mais chances de levar os títulos para a lista de aprovação.
Há 24 anos no mercado, a editora cearense Imeph também busca valorizar a cultura nordestina em suas publicações. Em mais de duas décadas, porém, a editora teve apenas sete títulos aprovados pelo PNLD. A diretora, Lucinda Azevedo, lamenta o número baixo. “O Nordeste concentra 29% da população brasileira, mas nossas editoras não alcançam nem 1% de participação no programa.” Isso quer dizer que os estudantes das escolas nordestinas têm mais acesso a livros produzidos em outras regiões, muitas vezes distantes de sua realidade sociocultural. “Os números não refletem a qualidade da produção do Nordeste, mas, sim, entraves burocráticos e critérios avaliativos que ainda não valorizam, de forma justa, a autenticidade cultural e a diversidade regional”, critica Lucinda.
Essa realidade deve mudar em breve com a regionalização dos conteúdos didáticos. A inclusão de obras regionais, segundo ela, visa o desenvolvimento cultural nordestino. “Acreditamos na potência do Nordeste e sabemos que um Brasil leitor só se constrói com a participação ativa de todos os seus territórios.”
A editora cearense também deverá se beneficiar do PNLD Literário Equidade, pois conta com a Coleção Brasil Indígena e Afro-brasileiro, que vai do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental. “Mais do que cumprir a legislação, buscamos contribuir para a construção de identidades afirmativas. Nossos livros didáticos e literários abordam essas temáticas com sensibilidade, poesia e profundidade, permitindo que os estudantes reconheçam sua história e valorizem suas origens.”
Desafios da leitura
Como representante das editoras, o Snel também atua nos processos de elaboração e aprimoramento das políticas públicas relacionadas ao livro e à leitura, participando, por exemplo, das audiências do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), criado para democratizar a leitura através de políticas públicas. Entre os desafios para que sejamos um país de mais leitores, existe a dificuldade de acesso ao livro por algumas camadas da sociedade. “Temos poucas bibliotecas e falta de diversidade em seus acervos.”
Outra queixa diz respeito ao preço do livro. Nesse ponto, Cristiane faz uma ressalva: “a população de um modo geral acha o livro caro, mas se compararmos o custo do livro a outras atividades de lazer como cinema, shows e teatro, percebemos esta falta de valorização ao livro”.
Cristiane defende que os livros deveriam ser entregues aos alunos, e não às bibliotecas das escolas, como acontece atualmente. Se o aluno fosse o destinatário dos livros e pudesse levá-los para casa, a formação de leitores não estaria tão comprometida, como apontam as pesquisas. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura, 53% da população brasileira não leem nenhum livro por ano e não gostam de ler. “A leitura compartilhada na família é relevante nos anos iniciais da infância. Sem ter uma obra que possa levar para casa e explorar com a família, o contato com a literatura não é incorporado na rotina da criança.”
O papel do professor como mediador de leitura também é crucial. “O trabalho com as obras em sala de aula precisa proporcionar boas experiências aos alunos, para que o ato da leitura seja prazeroso e não se caracterize como obrigação escolar”, destaca Cristiane.
Cabe aos professores a escolha dos livros didáticos e literários, e há uma dinâmica das editoras de visita às escolas, como explica Cristiane. Para que o processo seja democrático e não tendencioso, na inscrição das obras didáticas não aparece o logotipo das editoras.
Para Ângelo Xavier, o desafio maior do PNLD é orçamentário. Anteriormente regido por decreto presidencial, agora o orçamento destinado ao programa estará previsto em lei. Mas isso não garante que o montante será suficiente. “Além disso, o governo tem que fazer determinado volume de compras em um ano, para chegar à sala de aula no seguinte. Os recursos disponíveis no orçamento não dão conta”, explica Xavier.
É para o FNDE que vão os recursos destinados à merenda e transporte escolar, e compra de livros didáticos. O orçamento, portanto, é gigante. Porém, segundo Xavier, o livro é o menor pedaço dessa pizza. “O orçamento destinado ao livro, em 2025, é de dois bilhões de reais. Mas precisaria ser de 3,5 bilhões para atender a todos”. Isso porque o volume de compras a ser feito em 2025 é muito maior do que no ano anterior, devido à reforma do Ensino Médio, o que resultou em novas obras didáticas a serem preparadas pelas editoras.
“O passo seguinte é ver se a gente consegue que os deputados, os legisladores, transformem o orçamento do governo federal em um orçamento obrigatório para o nível didático, como é obrigatório para alimentação, como é obrigatório para transporte escolar. Que o governo também coloque o alimento da cabeça, digamos assim, como obrigatório no orçamento”, opina Xavier.
O governo de Pernambuco recebeu 8.667.133 exemplares de livros didáticos, em 2024. A secretária-executiva de gestão de rede da secretaria de Educação do governo de Pernambuco, Cassiana Lima, não nega os benefícios do PNLD, principalmente a liberdade de escolha dos títulos por parte dos professores. Mas ressalta que a defasagem entre o momento em que os livros didáticos são distribuídos e a publicação do censo escolar causa disparidades. “A distribuição dos didáticos é feita com base nos dados do censo escolar de dois anos anteriores e o quantitativo real de estudantes pode aumentar nesse período.”
Para driblar essa dificuldade, Cassiana conta que é feito um remanejamento entre as escolas da rede estadual ou recorre-se ao que ela chama de reserva técnica, correspondente a um percentual de 10% dos livros necessários para suprir a rede.
Autores
Para os autores, ter um livro aprovado pelo PNLD pode ser garantia de muitas vendas e divulgação em massa. É o caso de Ana Maria Machado, 83 anos, nome dos mais lembrados quando se pensa em literatura infantojuvenil, com mais de uma centena de livros publicados. Primeira autora desse gênero literário a fazer parte da Academia Brasileira de Letras, ela figura na seleta lista dos brasileiros que já venceram o Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infanto-juvenil.
“A importância do PNLD para um autor é fazer com que seus livros cheguem a novos leitores que não frequentam livrarias nem bibliotecas e não têm acesso a livros. E assim lhes mostrando o que pode existir num livro e eles nem desconfiavam. Para a maioria das crianças brasileiras ter contato com livros de literatura gratuitos na escola é a grande oportunidade de saber que existem leituras tão divertidas e de qualidade, tão atraentes, tão abridores de portas”, declara a autora, em entrevista à Pernambuco.
A barreira apontada por Machado diz respeito ao educador.
“Há professores que não leem literatura e não sabem o que fazer para construir uma ponte entre seus alunos e esse objeto - o livro de ficção ou o poema, com sua linguagem que não existe para ser portadora de mensagens, mas para carregar mais de um significado, fazer pensar, despertar nos alunos a possibilidade de situações diferentes, de interpretações e opiniões diversas.”
Ana Maria Machado credita a falta de intimidade do professor com a literatura à formação leitora, aquela que começa em casa e tem na escola seu complemento. Sem intimidade com os livros, como apresentá-los de maneira atraente aos alunos? “A isso se acrescenta a falta de bibliotecas públicas no país, que fiquem abertas aos fins de semana também e possíveis de serem alternativas de lazer para as famílias”, completa a escritora.
“É um programa que consegue distribuir livros com uma diversidade imensa, com autores de boa qualidade”, elogia o escritor carioca Jefferson Tenório. Segundo ele, a maneira como o livro é escolhido pelos professores - através de amostra do exemplar em formato digital - é também interessante. O autor, que também já foi professor de escola pública, revela que, nessa época, enfrentou vários problemas com os pais por causa de algum título escolhido para ser trabalhado em sala de aula. “Alguns pais se diziam preocupados com o que os filhos estavam lendo. Mas muitas vezes se tratava somente de um desconhecimento sobre o conteúdo do livro.” Ele teve o seu livro O avesso da pele, vencedor do Jabuti 2021, censurado em algumas escolas.
Jefferson analisa que há também, por parte dos pais, uma ideia de que o aluno sofrerá uma espécie de mimese do que está lendo, ou seja, que imitará aquilo que lê. Outro ponto que motiva a crítica a determinados títulos por parte dos pais, segundo o escritor, é geracional. “Uma geração que teve um determinado tipo de ensino pode não entender o método atual.” O distanciamento entre família e escola é mais um motivo. “Não há integração para a família entender o que está acontecendo nas escolas.”
Para esse escritor, a tentativa de retirar das escolas o seu livro não se tratou de censura, mas de espetacularização da censura, causada pela repercussão da publicação de um vídeo de uma diretora de uma escola do Rio Grande do Sul nas redes sociais acusando o livro de usar palavras “de baixo calão”. O fato ocorreu em 2024. O livro, porém, não foi retirado das escolas, porque passou por todos os requisitos exigidos pelo PNLD.
“No início, quando não entendia muito bem o que estava acontecendo, fiquei bastante preocupado, porque já sou um autor perseguido há algum tempo, em função das temáticas sobre as quais escrevo. Já recebi até ameaças de morte. Depois, eu fui compreendendo que, na verdade, era mais um jogo político e fruto do nosso tempo conservador.”
Nem títulos clássicos escapam dos protestos de pais e professores em escolas pontuais de algumas regiões do país, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Capitães da areia, de Jorge Amado, e O menino marrom, de Ziraldo. “Censura oficial para livros, de cima para baixo, não existe hoje, oficialmente, no Brasil. Quanto à censura não oficial, estamos todos sujeitos a ela, sejamos autores ou não. Vindas de todos os lados pela Internet, ou de um diretor de escola inseguro, de um pai de aluno equivocado ou cidadão mais ‘invocadinho’ que ache que sua leitura ou interpretação esquisita de algum escrito é a única possível e cisme de ver ameaças naquilo que não entende”, analisa Ana Maria Machado.