Na contramão da admiração

Ao contrário do que muitos pensam, Fernando Pessoa não é unanimidade; ao grande coro dos admiradores soma-se o dos dissonantes

Fernando Pessoa tornou-se uma espécie de divindade maior da literatura em língua portuguesa. Um autor cuja multiplicidade de heterônimos e de vozes encantam leitores de várias nacionalidades e diversas formações. Uma quase unanimidade. Mas nem todos se ajoelharam diante dele. Há uma galeria de escritores e intelectuais que, em vez de venerar, escolheu questionar ou até desdenhar do autor português. 

Poucos são tão duros quanto o escritor português António Lobo Antunes, que chegou a afirmar que “Não sou um fã de Pessoa” , e “O livro do não sei o quê me aborrece até a morte”, referindo-se ao Livro do Desassossego, durante uma entrevista a El País, há 10 anos (24 de setembro de 2015).

Suas críticas não param aí. Tudo em Pessoa é chato ou plágio, segundo o autor de Os cus de Judas. Ele diz que a poesia do heterônimo Álvaro de Campos é uma cópia de Walt Whitman (1819-1892); e a de Ricardo Reis, um plágio de Virgílio ( 70 a.C. – a 19 a.C.). Para culminar, desce à vulgaridade mais crua: “Eu me pergunto se um homem que nunca fodeu pode ser um bom escritor”.

Outro que não poupa críticas ao poeta dos heterônimos é seu também conterrâneo, Márcio Lopes. Há alguns anos, afirmou: “Não gosto de Pessoa. Poesia nunca pode ser fingir. Topa-se logo”. Para explicar sua posição, ele enfatiza a importância da honestidade na escrita, afirmando que a metáfora deve ser uma “tensão emocional instantânea”, permitindo ao leitor sentir uma transformação ao ler o poema. 

Pessoa com seus heterônimos muitas vezes é visto como difícil ou elitista. Lopes se opõe exatamente a isso, valorizando a poesia que não “exige decifração acadêmica” e que comunica emoções e experiências humanas de forma mais imediata.

Para Márcio Lopes, os grandes poetas portugueses são António Ramos Rosa, Herberto Helder e Eugénio de Andrade. “O poeta tem de ser honesto. E a honestidade sente-se logo à primeira leitura do poema. A metáfora deve ter uma tensão emocional instantânea. Ler um verso, um poema, e sentirmos que algo se transformou. Que nos permitiu um novo olhar sobre as coisas, a vida e nós próprios.”

Ele também elogia o brasileiro Carlos Drummond de Andrade. “Porque foi completo. Romântico, modernista, surrealista. Por vezes, concreto. E escreveu o melhor livro de poesia de todos os tempos, A Rosa do Povo. Retratando a vida precária do Homem no pós-Segunda Guerra Mundial.”

Contemporâneo de Fernando Pessoa, o escritor Teixeira de Pascoaes (1877-1952)  também fez críticas pesadas ao poeta lisboeta, de quem discordava do estilo e dos textos. “Veja a ‘Tabacaria’: não passa de uma brincadeira. Que poesia há ali? Não há nenhuma, como não há nada…nem sequer cigarros!”, afirmou durante em uma entrevista de 1950, quando Pessoa já estava morto havia 15 anos. 

Ele se opunha, principalmente, ao fato de acreditar que Pessoa estava a “intelectualizar a poesia” , algo que via como a própria morte da poesia. Acusava-o de um tipo de frieza ou excesso de pensamentos, que entrava em conflito com o que entendia por poesia verdadeira: algo mais ligado ao espontâneo, ao sentimento profundo, ao irracional. Ele opinou que a poesia de Pessoa, especialmente poemas como a “Tabacaria”, intelectualizam demais, tornam-se muito herméticos ou distanciados do que Pascoaes considerava o pulso vital da poesia.

Sua opinião sobre Pessoa chegava ao extremo de afirmar que o lisboeta seria a antítese do poeta. “Digo que não foi poeta, isto é, nem bom nem mau poeta. E, se foi poeta, foi-o com exclusão de todos os outros, desde Homero até nossos dias...”

O interessante é que, na década de 1910, Fernando Pessoa teve, em certo momento, uma relação de admiração com Pascoaes. sobretudo no que dizia respeito ao saudosismo, ao ideal místico e à salvaguarda de elementos da cultura portuguesa. 

Apesar disso, Pessoa também se distanciava de Pascoaes, em vários aspectos. Ele via o escritor como um autor importante, mas reclamava daquilo que considerava uma posição formal ou ideológica que poderia limitar a poesia ou a modernidade literária. Ele criticava o saudosismo, quando o via como provinciano ou restritivo.

No Brasil

Anco Márcio Tenório Vieira é professor de pós-graduação do Curso de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É o único brasileiro contemporâneo que conhecemos, até agora, a admitir que, apesar de gostar de “alguns dos seus livros e poemas”, vê uma falha no conjunto da obra de Fernando Pessoa. Em depoimento escrito à Pernambuco, ele afirma:

“Eu aprecio os poetas que escrevem poemas que tenham unidade, organicidade, que não sejam excessivamente discursivos. Isto é, que o dizer não se sobreponha à organicidade formal do como dizer, ou vice-versa. E é aqui que entra o meu problema com Pessoa e com um número significativo dos seus poemas. Por exemplo: quando lemos o seu livro Mensagem, vemos que não são somente os poemas que o compõem que vão dando organicidade à obra, como se cada poema fosse se urdindo ao outro poema — seja ao poema que o antecedeu, seja ao que lhe segue —, formando um grande épico moderno. Não. Cada poema de Mensagem, individualmente, forma um todo discursivamente coerente. De modo que eu posso ler esse livro de duas maneiras: ora como um grande épico moderno, ora como um livro em que cada poema, individualmente, declina um tema  – ou uma “mensagem” se quisermos relacionar cada poema ao próprio título do livro – , e os versos que o compõem formam um todo orgânico e coerente”.

Mas Mensagem, para Anco Márcio, é uma exceção. “O problema é que a grande maioria dos poemas de Pessoa não segue essa organicidade que encontramos em Mensagem. Você vai lendo o poema – geralmente são poemas longuíssimos – e a impressão que se vai tendo a cada frase, a cada pausa semântica, é de um conjunto de frases e de ideias que foram pensadas em tempos distintos, com propósitos distintos, e sobre assuntos distintos, e que o poeta, em determinado dia, resolveu juntar tudo em um só poema, em que a única coisa que lhe dá unidade é a sintaxe e é o ritmo.”

Ele pondera, ainda, que como os poemas têm frases lindas, versos bem-construídos, imagens inusitadas, conseguem embalar quem os está degustando.

 “Nesse embalo, não percebemos que estamos diante de uma colcha de retalhos, que não tem coerência discursiva nenhuma. E como uma boa colcha de retalhos, poderíamos desmembrar aqueles versos em vários poemas, um distinto do outro. É esse “poema colcha de retalhos” que não consegue nem encher os meus olhos, nem promover em mim um prazer cognitivo e estético. Nesse ponto, João Cabral de Melo Neto, Alberto da Cunha Melo, Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Cardozo e um Jonatas Onofre, para ficarmos em alguns poucos exemplos, são os poetas que enchem os meus olhos e conseguem promover em mim um prazer cognitivo e estético.”, explica. 

O contato de Anco Márcio com a obra de Fernando Pessoa se deu ainda no Ensino Médio. Mas ele afirma que parou, realmente, para ler o lisboeta, quando se deparou com o poema “Tabacaria”, considerado uma das obras-primas do poeta.  

“Não desgostei, mas alguma coisa ali parecia que estava fora da ordem, e não era apenas a extensão do poema!. O fato é que eu já era leitor de Drummond e de Cabral. Ou seja, inconscientemente, eu senti que faltava alguma coisa naquela sucessão de frases e de versos que parecia nunca chegar ao fim. Hoje, eu sei onde estava a estranheza: o que faltava era a organicidade que eu encontrava em Cabral e em Drummond. A única coisa que eu consegui decorar do longo poema são os seus versos iniciais: ‘Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada/ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo’. São versos que penetraram profundamente em mim. Por mim, o poema acabava aí. Todo o resto parecia excessivo, não conseguia reproduzir o impacto e a força semânticas dos primeiros versos”.

Ele confessa que até tentou nadar contra a corrente, buscando reler e gostar da obra de Pessoa. “Sim, tentei gostar, mas eu termino gostando sempre dos mesmos poemas. Principalmente dos versos que compõem Mensagem e ‘O guardador de rebanhos’, do heterônimo Alberto Caeiro. Quando trabalho Pessoa em sala de aula, o livro Mensagem e o poema ‘O guardador de rebanhos’ são os textos dele que apresento aos alunos.”

Dos demais poemas de Pessoa, Anco gosta de passagens. “Mas não gosto da totalidade do poema. Tudo parece-me disperso, uma grande colcha de retalhos. Porém, no meio dessa colcha de retalhos, há muitas preciosidades. Pena que essas preciosidades não formem, no meu entender e para o meu gosto, um todo coerente dentro do poema.”