Das trincheiras às palavras

Com genocídios, fome e perseguições, a Segunda Guerra Mundial também fez que surgisse uma produção literária registrando a dor e os sofrimentos vivenciados por jornalistas e escritores

Canadenses chegando à Inglaterra para lutar junto aos aliados.
Canadenses chegando à Inglaterra para lutar junto aos aliados.

Maior e mais devastador conflito já presenciado no Planeta, a Segunda Guerra Mundial foi finalizada há 80 anos. Entre 1º de setembro de 1939, com a invasão da Polônia, e 2 de setembro de 1945, quando o Japão se rendeu, a guerra envolveu 70 países, provocando danos profundos: batalhas em longa escala, bombardeios massivos, genocídios como o Holocausto e o uso inédito de armas nucleares no Japão. Nesse período, morreram mais de 70 milhões de pessoas, 40 milhões delas civis, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ameaça do nazifascismo e o envolvimento do Brasil nas batalhas realizadas a partir de 1944 na Itália, com a criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), não deixou ninguém imune,levando escritores, pensadores e jornalistas nacionais a participar da cobertura e dos combates realizados em solo italiano nos anos de 1944 e 1945.

Um deles foi o economista paraibano Celso Furtado, que aos 24 anos partiu rumo a Nápoles, na Itália. Sua experiência e impressões sobre o evento estão no livro Celso Furtado, o tenente: caderno de um expedicionário da Segunda Guerra Mundial, que tem lançamento previsto para este mês (outubro) pela Companhia das Letras.

A participação pouco conhecida de Celso na guerra, que se firmou como economista e pensador do desenvolvimento latino-americano nas décadas seguintes, se deu a partir dos textos produzidos por ele no período, um resgate feito pela jornalista Rosa Freire d’Aguiar. O livro reunirá pequenos contos, crônicas e cartas escritas para os familiares.

“Ele tinha 24 anos quando houve a convocação”, diz Rosa, explicando que, ao contrário de milhares de brasileiros obrigados a entrar numa guerra que sequer entendiam, a participação de Celso se deu de forma consciente e voluntária. “Ele queria lutar pela liberdade, contra o nazismo, e também contra a ditadura de Getúlio Vargas.”

Celso desembarcou em Nápoles, depois ficou alocado entre Livorna e Florença. Ao contrário de outros combatentes, fez um curso para manutenção de carros militares e acabou virando mecânico. A sua fluência em inglês o tornou um oficial de ligação entre o Brasil e os EUA. Fatos que o pouparam dos campos de batalha.

“Ele nunca chegou a ir para a frente de batalha. Ia até lá e deixava os militares. Era da infantaria, da reserva, não era o cara que ficava dando tiros. Mas teve muita participação nos preparativos, muitas missões militares durante o período.”

Celso não foi o único a se envolver com a guerra. A escritora Clarice Lispector, então casada com um diplomata brasileiro na Itália, atuou como voluntária. Ela não se envolveu diretamente na política, mas atuou no cuidado aos feridos. As cartas do período revelam suas impressões. A correspondência está no Livro de cartas. Algumas passagens chamam atenção. Numa delas descreve sua atuação. “Estou trabalhando no hospital americano, com os brasileiros.

“Visito diariamente todos os doentes, dou o que eles precisam, converso, discuto com a administração pedindo coisas, enfim sou formidável. Vou lá todas as manhãs e quando sou obrigada a faltar fico aborrecida, tanto os doentes já me esperam, tanto eu mesma tenho saudade deles.”

Outra carta enviada por Clarice, em 9 de maio, anunciando o final da guerra à sua irmã (na verdade, a rendição dos alemães), mostra uma certa perplexidade. “Uma das coisas de que estou surpreendida e vocês certamente também, é que no bilhete de hoje de manhã não falei do fim da guerra. Eu pensava que quando ela acabasse eu ficaria alguns dias zonza. O fato é que o ambiente influencia muito nisso. Aposto que no Brasil a alegria foi maior. Aqui não houve comemorações senão feriado ontem, é que veio tão lentamente esse fim, o povo está tão cansado (sem falar que a Itália de algum modo foi vencida, que ninguém se emocionou demais).”

Correspondentes

O papel dos correspondentes de guerra brasileiros foi crucial. Alguns, como Rubem Braga, que trabalhava para o Diário Carioca , ajudaram a traçar um perfil do conflito combinando lirismo, humor e humanidade. Na crônica “A menina Silvana” ele esbanja sensibilidade.

“A menina estava quase inteiramente nua, porque cinco ou seis estilhaços de uma granada alemã a haviam atingido em várias partes do corpo. A explosão estúpida poupara aquela pequena cabeça castanha, aquele perfil suave e firme que Da Vinci amaria desenhar. Lábios cerrados, sem uma palavra ou um gemido, ela apenas tremia um pouco…Nos seus olhos eu não vi essa expressão de cachorro batido dos estropiados, nem essa luz de dor e raiva de homens colhidos no calor do combate, nem essa impaciência dolorosa de tantos feridos, ou o desespero dos que acham que vão morrer…”

É possível encontrar essa e outras crônicas do autor no livro Rubem Braga, 200 crônicas escolhidas (Global). Durante as batalhas, o cronista criou, ainda, uma frase que se tornaria uma das pérolas escritas durante a cobertura dos combates. “A guerra é uma coisa tão feia, que mesmo os heróis têm vergonha dela.”

Responsável por uma das melhores cobertura dos pracinhas na Itália, o joranlista Joel Silveira foi enviado pelos Diários Associados. Ao voltar da guerra, declarou: “Fui para lá com 27 anos e, apesar de ter ficado 11 meses, voltei com 40”.

Joel esteve sempre bem próximo das linhas de combate, viu vários homens morrerem. Em uma de suas reportagens descreve a morte de um militar.

“Vi perfeitamente quando a rajada de metralhadora rasgou o peito do Sargento Max Wolf Júnior. Instintivamente, ele juntou as mãos sobre o ventre e caiu de bruços. Não se mexeu mais. O tenente que estava ao meu lado no posto de observação apertou os dentes com força, mas não disse uma palavra…Menos de uma hora antes eu estava conversando com o sargento. Creio que foi a mim que ele fez suas últimas confidências. Falou-me de sua filha, uma menina de 10 anos de idade. Disse-me que era viúvo e deu-me a notícia de que sua promoção a segundo-tenente, por ato de bravura, não tardaria a chegar…Estão comigo as poucas linhas que sua letra delicada e certa escreveu no meu caderno de notas: “Aos parentes e amigos. Estou bem. À minha querida filhinha – Papai vai bem e voltará breve”.

David Nasser, repórter especial da revista O Cruzeiro, foi outro grande nome associado à Segunda Guerra Mundial. Ele não foi um correspondente permanente no front. Viajou à Itália em momentos pontuais, produziu reportagens no terreno, e depois complementou sua cobertura com textos feitos a partir do Brasil.

Na volta dos feridos escreveu: “Chegam os heróis mutilados. A multidão os recebe com flores, mas os olhos deles não veem o colorido: ainda estão fixos no Monte Castelo; A guerra não acaba no campo de batalha. Ela volta com eles, dentro deles, para sempre”.

Estrangeiros

Os brasileiros não foram os únicos a ter que encarar os fronts de batalha. O soldado da 12ª Divisão de Infantaria do Exército Americano, J.D. Salinger participou do Dia D (Normandia), da Batalha das Ardenas e da libertação de campos de concentração. Na guerra começou a esboçar O apanhador no campo de centeio (1951).

O escritor Ernest Hemingway foi outro que esteve na Segunda Guerra. A participação dele foi como correspondente para a Collier ‘s Magazine.Hemingway acompanhou o desembarque na Normandia, libertações de cidades francesas e o front italiano. Sua escrita seca e heroica captou a brutalidade e a solidão dos combatentes.

Apesar de não ter escrito livros específicos sobre as batalhas, Hemingway escreveu textos importantes, um deles questionando o uso da bomba atômica sobre os japoneses. “Por enquanto, somos a potência mais forte do mundo. É importante que não nos tornemos a mais odiada… nenhuma arma jamais resolveu um problema moral.”

O Prêmio Nobel John Steinbeck também esteve na guerra como correspondente do New York Herald Tribune. O escritor optou por não relatar batalhas heróicas, mas a vida cotidiana dos soldados anônimos, motoristas de caminhão, mecânicos, cozinheiros e camponeses. Essa escrita influenciou várias obras suas no pós-guerra.

Somente em 1958, escreveria Era uma vez uma guerra, onde construiu uma narrativa memorialista, que transforma episódios da Segunda Guerra em pequenas histórias humanas. No livro, cada capítulo é autônomo, como se fosse uma crônica curta.

“A guerra não é feita apenas de heróis. É feita de faxinas, longas esperas e do medo de não voltar.”

Outro trabalho vital, foi a série de reportagens do correspondente do The New Yorker, John Hesher, escritas um ano após o ataque nuclear, e hoje reunidas no livro Hiroshima.

O jornalista descreveu o episódio que devastou a cidade japonesa em 6 de agosto de 1946 de forma original: optou por contar a história do bombardeio através dos olhos de seis sobreviventes civis, que têm suas vidas transformadas para sempre às 8h15 da manhã do dia da explosão.

“Uma luz branca, como se mil sóis tivessem explodido ao mesmo tempo, encheu a cidade. Tudo se dissolveu em claridade e silêncio. Depois, veio o estrondo”, diz um dos trechos do livro.

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

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