Conquista que veio para ficar

A literatura escrita por mulheres se consolida no mercado editorial com livros que são o espelho da luta por espaços de expressão e empoderamento

O romance Tudo é rio, de Carla Madeira, foi um dos dez livros mais vendidos pela Amazon, no Brasil, em 2024. A narrativa acompanha o casal enlutado Dalva e Venâncio e a prostituta Lucy que, em meio à violência e à depravação, tem a sua vida entrelaçada a deles. Tudo é rio também esteve na lista do ano anterior e foi o único livro brasileiro de ficção presente ali tanto em 2023 quanto em 2024.

Originalmente publicado pela editora Quixote+Do, a obra ganhou uma reedição em 2021 pela Record e, desde então, a escritora mineira se tornou um nome de destaque no mercado editorial brasileiro. As demais obras de Carla Madeira, Véspera e A natureza da mordida também foram sucesso de vendas, e até mesmo uma minissérie baseada na história de Véspera está sendo produzida pela Boutique Filmes.

Os livros de Carla Madeira atraem o leitor do início ao fim. Talvez a pancada forte de um realismo muitas vezes cruel seja uma das razões pelas quais Tudo é rio, Véspera e A natureza da mordida são obras tão bem-sucedidas. O ser humano se deleita com o horror, o medo, os conflitos. O crescente consumo de mídias sobre true crime pode servir de exemplo. O fascínio e a curiosidade mórbida são explorados pela autora em todas as obras que publicou até agora. 

Em Tudo é rio, uma atitude de extremo ciúme e violência de Venâncio para com Dalva e seu filho é a porta de entrada da narrativa e suas personagens. Em Véspera, a história começa com o abandono de uma criança por sua mãe e, em A natureza da mordida, subentende-se, desde o primeiro momento, que as protagonistas sofrem com traumas profundos, a serem revelados no decorrer da leitura. 

Esses romances carregam revelações ferozes sobre as dores de cada um dos seus personagens. Com sagacidade, a escritora encaixa os acontecimentos como um quebra-cabeça, sempre deixando a peça mais importante para o final. A escritora consegue construir sequências tão belas quanto sórdidas.  São narrativas que retratam a bestialidade dos seres humanos e, assim, seduzem o leitor, incluindo aqui e acolá algum lirismo e toques sutis de esperança.

Não apenas Carla Madeira, mas diversos outros nomes femininos da literatura contemporânea despontaram no mercado editorial brasileiro e mundial nos últimos anos. Entre os cinco últimos vencedores do Prêmio Nobel de Literatura, três foram mulheres. Adélia Prado ganhou o Prêmio Camões de 2024, e o livro Caminhando com os mortos, de Micheliny Verunschk, foi a obra vitoriosa na categoria prosa da última edição do Prêmio Oceanos. Esses são apenas alguns exemplos de escritoras cujos trabalhos vêm sendo reconhecidos, premiados e, acima de tudo, conquistando leitores.

“Quando fui finalista do antigo prêmio Portugal Telecom, com o meu primeiro livro, Geografia íntima do deserto, em 2004, fui a única mulher em uma lista de dez. Recentemente o prêmio Jabuti, em duas edições, teve apenas finalistas mulheres nas categorias Poesia e Romance Literário”, conta à revista Pernambuco, Micheliny Verunschk.

Eliana Alves Cruz, autora de Água de barrela e Solitária, apresenta uma opinião convergente: “A literatura está dentro de todas as questões que nos perpassam. O machismo a atravessa também. É tudo uma grande bola de neve que vai sendo replicada no ambiente literário, mas, felizmente, estamos num novo tempo, correndo atrás de reverter esse quadro”.

De acordo com a 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró Livro (IPL), a estimativa de mulheres leitoras corresponde a 50,4 milhões de habitantes, um número superior aos estimados 40,2 milhões de homens. Apesar de os dados não serem positivos de maneira geral devido à baixa adesão ao hábito de leitura, constata-se que, no Brasil, são as mulheres quem mais lê.

Com experiência de mais de duas décadas no mercado editorial, Karla Melo explica o seu processo de diálogo com as autoras contemporâneas. “Como editora da Confraria do Vento, a única coisa que eu peço para as autoras é que elas escrevam sem necessidade de competição. Não é para escrever como um homem, pensar como um homem, é para ter as oportunidades iguais. Eu me lembro de um trecho de Adélia Prado em Solte os cachorros, ‘Tou cheia de aguentar o papa, o presidente da República, o ministro, o prefeito, o magnifico reitor, o açougueiro, o padeiro, o padre, o meu pai, o meu avô, o meu irmão, o meu filho, o pai do meu filho, o anjo Gabriel, Satanás, tudo homem’. É a mulher falar o que quiser, como quiser. Não tem mais só aquela história de diário e como o mundo é bonito e sensível”, explica a editora.

Andréa del Fuego afirma que a leitura de mulheres passa a crescer em conjunto com a difusão das ideias de festas literárias, bate-papos em livrarias e demais eventos nos quais a presença do escritor se torna quase um produto de consumo, junto com o livro. Dessa maneira, as narrativas e experiências de mundo de cada autora passam a importar para os leitores. “O modo estético e singular do mundo em que vivemos passou a interessar”, diz Andréa.

“Uma língua portuguesa falada no Brasil, continental, recebendo os impactos dos repertórios de cada estado e cidade, cada violência, cada fluxo estético de consciência e de escrita. É isso que a gente celebra coletivamente nesse momento: a literatura dando conta de vozes nunca ouvidas, mas que estavam sempre falando. A questão é ser ouvida, ser lida”, completa a autora de Os Malaquias.

Vencedora do Prêmio Jabuti 2024 na categoria Crônica e Livro do ano, pela obra Sempre Paris: crônica de uma cidade, seus escritores e artistas, Rosa Freire D’Aguiar mostra sua empolgação pelo número de mulheres publicando suas narrativas. “Na época da pandemia da Covid-19, eu passei quatro anos fora do Brasil e quando voltei, fui à Livraria da Travessa, que é uma das grandes do Rio de Janeiro, e lá, na bancada de novidades, fiquei impressionada com a quantidade de livros esritos por mulheres. É uma maravilha, tem mais é que escrever mesmo”, entusiasma-se a jornalista.

O aumento do interesse do público leitor por obras literárias escritas por mulheres é um termômetro para aferir que seus conteúdos se tornam importantes. Isso ocorre porque cada vez mais as mulheres estão em posições de conhecimento e desenvolvimento intelectual, em contato com as artes e a cultura, fatores que contribuem para o projeto de se tornarem escritoras, com um repertório mais amplo e contemporâneo.

Esse momento foi construído historicamente pelas centenas de mulheres que vieram antes, que lutaram por direitos e para que suas vozes fossem ouvidas.

Breve panorama histórico

A mulher trava uma luta desigual por um espaço no mundo literário no Brasil desde o período colonial. Considerado um dos primeiros romances escritos por uma mulher a ser publicado no país, e o primeiro romance abolicionista, Úrsula foi assinado sob pseudônimo de “Uma Maranhense”, em 1859. Sua autora, a mulher negra Maria Firmina dos Reis. É incerto medir seu alcance, mas a obra teve sua segunda edição apenas na década de 1970.

O nome de Maria Firmina dos Reis se tornou muito falado nos anos recentes, sendo realizadas reedições Úrsula. Neste romance há a história de amor entre Tancredo e a personagem-título, pano de fundo para ela fazer um retrato das mazelas de uma sociedade patriarcal. A obra é tema de debates, pesquisas e homenagens. Se antes sua história não carregava importância aos olhos da sociedade, hoje alguns leitores percebem como Úrsula é um livro revolucionário para a época.

Virginia Woolf, no artigo “Mulheres e ficção”, publicado na edição de março de 1929 da revista Forum, afirmou que “de nossos pais sempre sabemos alguma coisa, um fato, uma distinção. Eles foram soldados ou foram marinheiros; ocuparam tal cargo ou fizeram tal lei. Mas de nossas mães, de nossas avós, de nossas bisavós, o que resta? Nada além de uma tradição. Uma era linda; outra era ruiva; uma terceira foi beijada pela rainha. Nada sabemos sobre elas, a não ser seus nomes, as datas de seus casamentos e o número de filhos que tiveram”.

Seguindo pela análise histórica, Woolf cita a poesia de Safo e o grupo de mulheres poetas em uma ilha da Grécia no período antes de Cristo. Nos anos 1000, a dama da corte japonesa Shikibu Murasaki, escreveu o que hoje os estudiosos consideram o primeiro romance do mundo: O conto de Genji. No artigo, a autora retrata também os longos períodos de silêncio feminino entre os nomes lembrados através dos tempos.

Esses silêncios não aconteceram de maneira natural. As mulheres sempre viveram, experiementaram sentimentos e contaram histórias, porém suas vidas, suas emoções e suas histórias não possuíam o mesmo valor do que as vidas, emoções e histórias dos homens. Em meio ao patriarcalismo de uma sociedade em que, muitas vezes, a mulher sequer estudava, não escolhia o marido e muito menos o seu destino, quais condições ela teria de aproximar-se da arte de escrever?

“As leis e os costumes, é claro, foram em grande parte responsáveis por essas estranhas intermitências de silêncio e fala. Quando a mulher era passível, como foi no século XV, de levar uma surra e ser jogada no quarto se não se casasse com o homem escolhido pelos pais, a atmosfera espiritual não era favorável à produção de obras de arte. Quando ela se casava sem seu próprio consentimento com um homem que desde então se tornava seu senhor e dono, ‘ao menos tal como as leis e os costumes o podiam fazer’, situação em que a mulher esteve na época dos Stuart, é bem provável que ela tivesse pouco tempo para escrever, e ainda menos incentivo”, ironiza Virginia Woolf, no artigo.

Em seus textos, a autora de Orlando analisava o cenário literário da Inglaterra, porém os escritos da autora, falecida em março de 1941, são esclarecedores também para a realidade do Brasil durante o mesmo período e por décadas seguintes.

Escrever é transgredir

Nísia Floresta, Júlia Lopes de Almeida, Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Bandeira de Melo), Maria Benedita Bormann, Narcisa Amália, Francisca Julia da Silva, Auta de Souza. Mulheres que, mesmo diante de um Brasil reservado aos homens de letras, foram capazes de escrever. Ainda que não tivessem a intenção, foram transgressoras, ousaram brincar com as palavras e criar narrativas a partir de suas visões únicas do mundo.

Essas e muitas outras escritoras têm algo em comum: o esquecimento geral.

“Quando as mulheres morrem, elas morrem para sempre, submetidas ao duplo fim da carne e do esquecimento”, afirma a escritora e jornalista espanhola Rosa Montero, no livro Nós, mulheres: grandes vidas femininas.

Nomes do pós-modernismo como Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Adélia Prado, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Cora Coralina e Cecília Meireles: cada uma, com excelência própria, tornou-se marco dentro da cultura. Suas obras e vozes reverberam.

Não é coincidência que cada vez mais mulheres escrevam livros. É simplesmente porque, com o passar do tempo e com as conquistas feministas, as mulheres se tornam cada vez mais livres para se expressar.

Quando perguntadas se, por serem mulheres no meio literário, já haviam sofrido com algum tipo de preconceito, julgamento ou desmerecimento, a jornalista e cronista Rosa D’Aguiar, a escritora Andrea del Fuego e a editora Karla Melo, afirmaram nunca terem sentido discriminação.

Eliana Alves Cruz, escritora negra, diz: “As pessoas têm um pouco de vergonha, principalmente no meio intelectual, de externar determinadas coisas, mas é bem cruel porque é feito de forma muito sutil, muito subjetiva e sofisticada, embalada em um bombom.”

De acordo com o estudo Ausências e estereótipos no romance brasileiro das últimas décadas: Alterações e continuidades, realizado pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, sob o comando da professora e pesquisadora, Regina Dalcastagnè, apenas 2,5% dos livros publicados entre 2005 e 2014 pelas editoras Rocco, Companhia das Letras e Record eram de autores negros.

Ao analisar os personagens das narrativas publicadas nesse mesmo período, a pesquisa aponta que apenas 7,1% dos personagens são negros e destes, 4,4% são protagonistas. Entre todos os livros publicados de 2005 a 2014, apenas seis protagonistas correspondem a mulheres negras.

Publicado na revista acadêmica Letras de Hoje, o estudo aponta que “há 73 vezes mais chance do protagonista de um desses romances ser um homem branco do que uma mulher negra”.

Apesar dos números que evidenciam o machismo e o racismo constante na literatura brasileira, nomes como o de Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo brilham.  

Conceição Evaristo, 78 anos, nasceu “rodeada de palavras” em Belo Horizonte e começou a ler quando sua tia passou a trabalhar em uma biblioteca. Ela publicou seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, em 2003, e cresce cada vez mais na literatura brasileira e internacional ao adotar seu método de “escrevivências” para contar histórias.

“É a minha forma de estar no mundo, de elaborar a vida. A escrita é parte de mim, eu seria muito triste se não pudesse escrever e acho que durante muito tempo eu fui muito triste. Tinha um sentimento de solidão que nada aplacava. Quando comecei a escrever, entendi o que era esse sentimento: era uma grande desconexão comigo mesma. Eu me permiti acessar esse lugar da escrita, da literatura e hoje sou uma pessoa muito mais feliz e encontrada comigo mesma”, conta Eliana Alves Cruz.

Feminina

Do começo da literatura para a atualidade, é claro que o cenário está completamente diferente. Se antes as mulheres não eram consideradas capazes de escrever excelentes obras, hoje elas já provaram suas capacidades centenas de vezes.

“No futuro, desde que haja tempo e livros e um pequeno espaço para a mulher na casa, a literatura se tornará para elas, como para os homens, uma arte a ser estudada”. escreveu Virginia Woolf. Ansiando uma mudança que ainda não é regra para as mulheres brasileiras, muitas dificuldades estão na estrada de quem deseja tornar-se escritora.

A literatura sempre foi uma arte de expressão, dialoga com o tempo, com o meio e intimamente com a pessoa que escreve. Por vezes, a literatura produzida por mulheres é descrita como “literatura feminina” a fim de generalizar as autoras e seus conteúdos narrativos em uma arte condensada cujo gêneros literários e diversidade de temas tornam-se descartáveis. Independentemente do que está escrito ali, utilizar o guarda-chuva generalista basta.

Não basta. Obras produzidas por homens, maioria no mercado editorial desde o surgimento da arte literária, jamais foram categorizadas em livrarias ou pelos leitores como “literatura masculina”.

De acordo com Brenda Carlos de Andrade, professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFRPE, a sociedade se acostumou com a normativa da produção masculina.

“O mundo masculino é o mundo padrão, a heteronormatividade é o padrão. Se você pensa que a literatura é basicamente produzida por homens, então o que é tido como padrão é uma espécie de neutro. Mas ele não é neutro, ele é masculino. E no caso das mulheres, é sim uma literatura que tem o ponto de vista feminino e normalmente isso é usado como forma de diminuição, falam ‘isso aqui é literatura para mulheres’”, explica. 

Livros escritos por mulheres são tão livros como os escritos por homens. Podem ser muito bons assim como podem ser ruins, à medida que cada leitor encara a narrativa apresentada. A singularidade das vozes narrativas de cada obra literária é uma das grandes belezas da leitura, seja ela proveniente de um homem, mulher ou outra identidade de gênero.

Sobre essa arte, a escritora italiana Elena Ferrante escreveu no livro As margens e o ditado: sobre os prazeres de ler e escrever, publicado no Brasil em 2023: “Escrever é apoderar-se de tudo o que já foi escrito e aprender aos poucos a gastar aquela enorme fortuna. Não devemos nos deixar lisonjear por quem diz: ela tem um tom próprio. Na escrita, tudo tem uma longa história atrás de si”.

Apesar de perspectivas positivas de crescimento da presença feminina na literatura, ainda assim é necessário manter o olhar atento.

“No mercado editorial eu vejo mudanças. Às vezes as pessoas acham que é uma mudança positiva e eu tenho sido resistente, não porque eu ache ruim que tenha essa presença feminina, mas porque eu acho que as mudanças que estamos vendo tem muito mais a ver com a resposta do capitalismo a nichos. Eu não chamo isso de cânone porque quando eu passo para a academia, ainda vejo um local masculino, ou seja, a maioria dos membros são homens, e ainda exige uma estética padrão do que foi considerado alta literatura. Às vezes a gente se ilude, achamos que conquistamos um espaço que efetivamente não conquistou”, adverte a professora Brenda Carlos.

Talvez, o melhor diagnóstico e desejo para a literatura feminina ainda seja aquele escrito por Virgínia Woolf em “Mulheres e ficção”, de 1929: “por certo olhamos bem à frente, para aquela era de ouro e talvez fabulosa em que as mulheres terão o que por tanto tempo lhes foi negado — tempo livre e dinheiro e um quarto só para si”.