ÓBIDOS, PORTUGAL - O programa anunciava a presença de três arrasa-quarteirões da literatura, os vencedores do Prêmio Nobel de Literatura J.M. Coetzee, sul-africano (2003), Svetlana Alexievich, bielorrusa (2015) e, mais novo integrante do clube, László Krasznahorkai, húngaro, recentemente laureado. Mas o que se viu no Festival Literário de Óbidos, em Portugal, foi que nem sempre, como sugerem os memes, a expectativa corresponde à realidade. Entre cancelamentos de última hora e apresentações no limite da antipatia, quem acabou por salvar o mais charmoso e importante evento literário português foram os nomes menos badalados.
Dos três Nobel, Svetlana Alexievich foi quem cumpriu melhor o script de uma celebridade literária. Lotou a tenda principal, simpática e paciente, numa conversa que só não fluiu melhor por questão do idioma, mediada pela tradutora bielorrussa.
Nascida em 1948 num rincão que hoje pertence à Ucrânia, Svetlana viveu na atual Bielorrúsia, duas fronteiras - para não deixar escapar o tema da edição deste ano do Fólio - ambas parte da antiga União Soviética, antes de se mudar para Berlim. Svetlana lembrou da infância numa aldeia habitada apenas por mulheres, após os maridos, pais e filhos serem vitimados na Segunda Guerra Mundial. A presença feminina marcante acabou por forjar uma literatura que permeia os horrores da guerra com a nostalgia do amor na realidade daquelas mulheres.
DIÁLOGO DIFÍCIL
O bom início com os peso-pesados da literatura em Óbidos sofreu o primeiro revés na apresentação de Coetzee. Notório idiossincrático, avesso a responder perguntas, a falar dos seus livros e até mesmo a dar autógrafos, o escritor sul-africano cumpriu bem o roteiro do “todo mundo sabe que eu sou assim, me convidam por que quer”.
Talvez tenha contribuído para a apática e protocolar apresentação a longa espera pelo interlocutor na mesa, o autor e bibliófilo argentino Alberto Manguel, que deixou o Nobel plantado no palco por cerca de dez minutos. A vingança seria servida, literalmente, a frio. Conhecido por ter desempenhado o papel de leitor para o compatriota Jorge Luís Borges quando o gigante portenho já não enxergava mais, Manguel teve de se contentar em falar pouco e a ouvir muito.
De caderninho à mão, Coetzee parecia determinado a cumprir o seu roteiro particular e respondeu o que queria responder ou nem responder, sem prestar muita atenção à pergunta. A primeira das respostas consumiu quase metade do tempo previsto de uma hora para o “diálogo”, rapidamente transformado em monólogo que se estendeu por mais de 30 minutos.
Lendo sem pudor algum, Coetzee usou o tema do Fólio - Fronteiras - como gancho para falar de Gaza, genocídios, do presidente Trump e da crise da imigração, evocando as diásporas dos aborígenes africanos e australianos. Temas importantes, apaixonantes, porém tratados com a frieza do inverno rigoroso em Molteno, nas Montanhas Stormberg. A voz mansa e a cadência professoral do sul-africano, agravada pelo friozinho de 15 graus do amistoso outono português, numa sessão programada para às nove da noite, convidava os presentes a antecipar o sono, atrapalhado pelo carrilhão da bela igreja do século XVIII, vizinha à tenda, cujos sinos badalavam a cada quinze minutos.
Diálogo, mesmo, apenas no quarto de hora restante. Coetzee até respondeu à pergunta de Manguel sobre as diferenças semânticas e culturais entre países distintos envolvendo a palavra “fronteira”, mas quando o argentino trouxe novamente Trump para o palco, o sul-africano apenas ressaltou a influência do compatriota Elon Musk nos primeiros discursos do segundo mandato do norte-americano, para encerrar a questão com um “não acho que vale à pena comentar isso”.
Paciente como um monge tibetano, Alberto Manguel sacou uma antiga declaração de Coetzee de que não seria capaz de “incorporar seus antepassados” para confrontá-lo, insinuando ter justamente tentado isso em alguns de seus livros. “Não, não fiz”, respondeu o sul-africano, provando que até mereceu o Nobel de Literatura, mas talvez falhasse em levar o da paz.
A partir daí, a conversa desandou, numa tentativa de Manguel em perceber o processo criativo de Coetzee em vivenciar os dramas de seus personagens - das vítimas do Apartheid aos animais das savanas - mas sem muito ou qualquer sucesso. Num momento, o argentino insistiu: “Sim, como cientista talvez não consiga responder, mas como escritor?”. E Coetzee respondeu: “Mas qual a diferença entre um cientista e um escritor?”
Os dez minutos finais rondaram sobre a presença dos animais na obra de Coetzee, que pontuou a década de 1990 como a da viragem de sua narrativa, antes de responder a Manguel sobre se algum acontecimento específico influenciou essa alteração no objeto narrativo com um seco “não, apenas cresci”, arrancando risos da plateia.
Sem esconder um sorriso amarelo, Manguel tentou surfar no aparente bom-humor do sul-africano, questionando se o escritor conseguiria prever qual a próxima “epifania” e, como num jogo de ping-pong entre um amador e um medalhista chinês, recebeu uma cortada como resposta ao saque: “É da natureza das epifanias não serem previsíveis”.
Manguel olhou então para o relógio e anunciou a tradicional parte das perguntas da audiência, não sem antes ouvir de Coetzee de que, obrigatoriamente, deveriam estar circunscritas ao tema do festival. Uma corajosa mulher da audiência levantou o braço e tentou saber a opinião do Nobel sobre as razões do desejo de expansão de Israel de suas fronteiras e ouviu um educado “eu não quero responder a essa questão”.
A última tentativa de engatar uma conversa trouxe a primeira alfinetada do sempre fleumático Manguel, ao terminar a pergunta com um “é verdade isso ou estou novamente errado?”. Como numa luta por pontos, os sinos da secular igreja anunciaram o último round e coube ao argentino resumir o fim de uma sessão que, segundo ele, foi como pulling teeth, uma expressão em inglês que sugere a frustração de tentar, em vão, arrancar algo da boca de uma pessoa.
MAL SÚBITO
Nobel nomeado no início de outubro, László Krasznahorkai também joga no time dos autores imprevisíveis. O húngaro havia sido anunciado no programa do festival ainda sem a láurea, o que foi celebrado pelos organizadores como um Nobel “extra” para o Fólio, embora pairasse uma certa tensão de que László pudesse farrapar, como fez uma vez na renomadíssima Feira de Frankfurt, quando deixou todos à espera para jantar com um amigo.
O húngaro chegou à muralha medieval dois dias antes da apresentação, para alívio dos críticos literários, que haviam passado as duas últimas semanas numa espécie de obsessiva sessão fonoaudióloga para aprender a pronunciar o sobrenome do Nobel. A excitação durou pouco. Na véspera da sua fala, László anunciou não se sentir bem de saúde e partiu de Óbidos, esvaziando a mesa que encerrou o festival literário.
LÁGRIMAS E RISOS
Como costuma acontecer, as celebridades menores e em ascensão acabaram por compensar as controvérsias dos bambambam. A brasileira Tati Bernardi lotou as duas sessões na programação, inclusive a da tenda principal, onde dividiu o palco com outro queridinho da literatura atual, o francês Édouard Louis, com direito a lágrimas por entre os vários risos. Outra agradável e concorrida presença foi a da argentina Samanta Schweblin, tida como um dos grandes nomes da literatura portenha, apresentando a sua narrativa inquietante, agora no novo livro, O Bom Mal.
A prata-da-casa portuguesa foi representada pela dupla de humoristas Ricardo Araújo Pereira e Joana Marques, cada um deles useiro e vezeiro em lotar os espaços onde pisam. O tema da mesa mais concorrida do Fólio foi Liberdade, na verdade o desenrolar de uma polêmica que envolveu Joana Marques no último ano, ao ser processada pela duo pop Anjos, que se sentiu prejudicado após Joana troçar da bizarra interpretação do hino nacional em um evento de motovelocidade e foi parar em tribunal.
O caso ganhou repercussão nacional e levou Ricardo Araújo Pereira - conhecido dos brasileiros por assinar uma coluna na Folha de S.Paulo e pelas apresentações no palco ao lado de Gregório Duvivier - a defender publicamente Joana Marques, além de testemunhar a favor da colega de profissão diante do júri. No final, venceu a liberdade, com o arquivamento da acusação de difamação, assim como o riso acabou por vencer o mau-humor em Óbidos.