As frases nunca escritas por Fernando Pessoa

Poeta dos heterônimos virou um dos mais populares nas redes sociais, com uma profusão de frases divulgadas e replicadas que, simplesmente, jamais foram escritas por ele

Poucos escritores alcançaram a popularidade de Fernando Pessoa, um dos autores mais citados em língua portuguesa. Ultrapassando as fronteiras do século XX, e o além-mar, o poeta dos heterônimos virou, na atualidade, tatuagem, meme, legenda do Instagram e celebridade das redes digitais brasileiras. Nesse processo, também tornou-se vítima de um fenômeno curioso: comprovadamente, é um dos autores mais “malcitados” da literatura. Muitas frases atribuídas ao autor não existem em seus livros, poemas ou cartas. São de outros escritores ou de anônimos. 

Parte dessa confusão vem da imagem de Pessoa como um autor enigmático, filosófico e profundo.  Qualquer frase curta e de tom reflexivo ganha credibilidade, quando assinada com o nome dele, assim como acontece com Clarice Lispector (1920-1977) e Caio Fernando Abreu (1948-1996), outros dois “fenômenos” de citações que não lhes pertencem. 

Um dos “clássicos” que traz erroneamente o carimbo do português é a frase do blogueiro brasileiro Nemo Nox, que, há mais de uma década, circula como sendo uma citação de Pessoa. 

“Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo.” Com licença do trocadilho, atire a primeira pedra quem já não recebeu, leu ou repassou essa frase como sendo legítima criação do poeta. Ela é uma das mais divulgadas e admiradas pelos que pressupõem estar lendo Pessoa. Difícil navegar nas redes sociais e não topar com ela.  

Um fator que alimenta a confusão sobre  o autor é o exército de vozes inventadas por ele mesmo. A grande profusão de heterônimos e suas falas próprias — Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares — confundem o leitor não familiarizado com a poesia de Fernando Pessoa e seus outros eus. Isso causa confusão até entre os leitores atentos, e dá margem a um terreno fértil para equívocos. 

Uma frase apócrifa que soe estoica pode ser atribuída a Ricardo Reis. Uma frase mais bucólica pode colar em Caeiro. Uma melancólica pode ser atribuída a Bernardo Soares. É como se Pessoa tivesse uma “fábrica de estilos”, e qualquer texto pudesse se encaixar em um heterônimo adotivo. 

Quem lê, portanto, uma frase de tom poético muitas vezes pensa: “deve ser de algum heterônimo”. E, assim, frases sem dono — e de dúbia qualidade — acabam sendo adicionadas a essa exótica galeria pessoana.

Consumo rápido

O curioso dessas citações é o ecletismo das frases propostas que englobam várias vertentes existenciais. Muitas têm relação com o tema tempo, que, obviamente, refere-se não só a Pessoa, mas com uma quantidade incalculável de poetas. “Você pode vender seu tempo, mas não pode comprá-lo de volta”, diz a citação de Paulo Coelho, no livro Monte Cinco, que é atribuída erroneamente ao poeta português. 

Outra frase semelhante, que também alude à rapidez da vida, à oportunidade de vivê-la plenamente, sem desperdiçar as oportunidades, é a de um autor desconhecido. “Cada minuto que passa, é um milagre que não se repete.”

Normalmente, as frases atribuídas a Pessoa são curtas, telegráficas; mas também existem textos longos. “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia; e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.” 

O autor do texto, Fernando Teixeira de Andrade (1946-2008), foi um professor de literatura que talvez não tenha tido ideia da repercussão que sua escrita provocaria entre os internautas da atualidade. Mas, pelo menos esse parágrafo seu já foi “eternizado”. Mesmo que, quase nunca, se faça referência ao seu nome. 

Nessa seara, entretanto, as frases mais “conhecidas e divulgadas” são curtas. As redes sociais transformaram Pessoa em um produto de consumo rápido. Sites de frases motivacionais raramente verificam fontes. Com isso, o poeta virou uma espécie de marca registrada de tudo que “parece” profundo. 

Axé

O escritor Paulo Coelho é um dos que têm mais frases atribuídas a Fernando Pessoa. O que é, no mínimo, curioso. Pessoa jamais escreveu no registro “delicado-doce” e com o tom motivacional presente em muitas das frases de Coelho, a exemplo de: “Deus costuma usar a solidão para nos ensinar sobre a convivência. Às vezes, usa a raiva, para que possamos compreender o infinito valor da paz”. Conhecedores do português sabem que o seu estilo passa a léguas dessa citação. 

A autora de Amor, essência e seus encontros, a paulista Sil Guidorizzi, escritora de textos motivacionais e de autoajuda, é outra que “incorpora” muitas citações do poeta e cujo estilo é o avesso dele. “Na alma ninguém manda… Ela simplesmente fica onde se encanta.” Ou “tudo que chega, chega sempre por uma razão”.

Até mesmo a filósofos gregos clássicos, como Eurípedes, são atribuídos pensamentos de Pessoa. “Existe no silêncio tão profunda sabedoria, que, às vezes, ele se transforma na mais perfeita resposta”, é uma das frases supostamente escritas pelo poeta português. Mas aí a existência de fake news é dupla: ela nem foi idealizada por Pessoa, nem tem esse formato que foi adaptado. A frase original do filósofo é a seguinte: “O silêncio é a verdadeira sabedoria e a melhor resposta.”

Entre tantas citações atribuídas ao poeta, uma chama atenção pela peculiaridade. Muitos acreditam que a frase “não importa que seja eterna ou provisória, mas que seja linda e louca nossa história”, que faz parte da letra da música “Foi na praia”, da Banda Axé Rapazolla, seja de autoria do lisboeta. Fernando Pessoa, quem diria, acabou no carnaval da Bahia.

Essa apropriação cria um efeito que se pode chamar de positivo, e outro, definitivamente, negativo. O lado “bom” é que, por meio dessas frases soltas, não pertencentes ao português, novos leitores às vezes chegam aos poemas verdadeiros, motivados pela curiosidade. Mas, por outro lado, essa sucessão de lugares-comuns banaliza sua obra, reduzindo-a a frases de efeito que nem sempre representam a densidade do seu pensamento. 

Recomenda-se para os que não querem comprar gato por lebre que sempre chequem a autenticidade das frases publicadas na internet antes de sair distribuindo-as aos amigos. Ou pior: republicando-as em redes sociais. Uma boa sugestão é consultar o Arquivo Pessoa, acervo digital da Universidade de Lisboa, disponível online.