“O meu tio foi a pessoa mais divertida que conheci. Pelo menos, com as crianças era assim, fazia imensas coisas para me fazer rir.” O testemunho é duplamente surpreendente: primeiro, por se referir ao poeta português Fernando Pessoa, quase sempre associado a um caráter ensimesmado e melancólico; mas também por ter sido anunciado pela única pessoa no mundo, 90 anos após a morte de Pessoa, dona do privilégio de ainda poder chamá-lo de “tio”, pessoalmente.
A lisboeta Manuela Nogueira tinha 10 anos quando o “tio Fernando” morreu. A sobrinha, que completou 100 anos em impressionante lucidez no último dia 17 de novembro, viveu a primeira parte da infância sob o mesmo teto do poeta, ao lado do pai Francisco, da mãe e irmã de Pessoa, Henriqueta, e da avó Maria Madalena.
O prédio no elegante Campo de Ourique hoje é o museu Casa Fernando Pessoa, parada obrigatória para os pessoanos, mas também um lugar peculiar e estimulante que merece ser visitado até por quem não é tão fã assim do escritor.
Quando o tio morreu, porém, Manuela já havia se mudado com os pais para a casa onde até hoje vive, no Estoril, ao norte da capital, num pacato bairro residencial cujo acesso se dá pela Rua Fernando Pessoa, uma dentre as dezenas de vias em Portugal batizadas em homenagem ao filho ilustre. Foi lá que a então pequena sobrinha soube da morte do querido tio.
Nove décadas depois, Manuela mantém viva a memória do dia da partida de Fernando Pessoa. À época, a poucos dias do aniversário da mãe, Henriqueta sofreu um acidente doméstico e quebrou a perna. A enfermidade e a data festiva eram a conjunção perfeita para a visita do tio, confirmada através de um telegrama, mas que nunca chegou a se concretizar.
“Minha mãe virou-se para o meu pai e disse: ‘ai, Chico, aconteceu alguma coisa ao Fernando, que me mandou um telegrama e nunca aparece’”, recorda-se Manuela. “Então, meu pai pegou um comboio (trem) e foi correndo para Lisboa.”
Manuela conta ainda que o pai bateu na porta do cunhado, sem resposta. Só soube do ocorrido quando as vizinhas de andar informaram que Fernando Pessoa havia passado mal na noite anterior, e foi internado no Hospital Saint-Louis, no Bairro Alto da capital, que virou verbete histórico, ao ser o local onde um dos maiores poetas da língua portuguesa morreria.
O pai de Manuela, entretanto, ainda chegou a ver o poeta vivo. “Meu pai foi ao hospital e logo percebeu que o tio Fernando não estava bem. Não estava bem, mas também não estava tão mal assim, que se pensava que ele iria morrer”, conta a sobrinha. Em seguida, Francisco voltou a Estoril para acalmar a esposa. “Disse-lhe que o irmão estava a ser tratado de umas colicazinhas”, continua Manuela. Só não contava que eram o prenúncio de uma violenta crise de pancreatite aguda que vitimaria Fernando Pessoa.
A morte trouxe a sombra à ensolarada casa em Estoril. A pequena Manuela brincava no jardim, quando soube que o tio Fernando havia morrido. “Não conseguia voltar para dentro de casa. Chamaram-me várias vezes para almoçar, mas não conseguia voltar. Só bem mais tarde percebi que era para não ter de enfrentar o profundo desgosto da minha mãe”, analisa Manuela.
A morte do tio, é claro, marcou a sobrinha. Ainda assim, Manuela prefere ressaltar as memórias de um Fernando Pessoa encarando um nada conhecido heterónimo, o de “palhaço” diante dos olhos da sobrinha. “Lembro-me de um dia estar na janela da casa em Lisboa, quando o tio Fernando chegou. Ainda na rua, acenou para mim, fez que não viu um poste à frente dele e fingiu ter batido com a cabeça”, diverte-se.
Outra imagem capturada pela lembrança de Manuela e difícil de acreditar é de um luminoso dia de praia com Fernando Pessoa. “Meu tio costumava vir a Estoril para passar apenas o dia. Ficava na areia, todo vestidinho com aquelas roupas que se veem nas fotografias, de sapatos e meia”, lembra-se Manuela, entre risos. Apesar do forte sol do verão português, o poeta dispensava uma de suas marcas registradas: “Só não usava o chapéu”.
Nas vezes em que o dia de praia de Fernando Pessoa se estendia, havia uma “caminha num quartinho” da casa de Estoril, para os eventuais pernoites do parente poeta, hoje transformado na biblioteca onde Manuela guarda, entre tantas obras, as suas próprias: a sobrinha de Fernando Pessoa, para quem não sabe, também escreve, e é autora de 23 livros, entre eles, três coletâneas de poesia.
“Acho que o tio Fernando ia gostar de ler o que escrevi”, aposta Manuela, que começou a escrever aos 20 anos, sem temer o peso de ser a sobrinha de Pessoa. “Isso é uma bobagem, ninguém é comparável a ninguém. Aquilo que eu digo, o tio Fernando não diria”, argumenta a escritora, que só não assina com o sobrenome do tio porque o sobrenome que ambos carregam em comum é justamente o Nogueira.
Culta, bem-humorada e sempre disposta, Manuela foi casada sete décadas com o catedrático Bento José Murteira, morto em 2018. Da relação, nasceram quatro filhos, oito netos e 16 bisnetos, nenhum deles, porém, chamado Fernando.
No início de 2025, foi a vez de Manuela virar tema de um livro, escrito pela cardiologista baiana Maria da Conceição, coordenadora do Grupo do Desassossego, dedicado ao poeta português, com a colaboração da também brasileira Carla Parisi, que vive no Porto e ficou responsável pela pesquisa in loco para a biografia sobre a sobrinha do poeta.
O livro é resultado da amizade entre Maria da Conceição e Manuela, que se conheceram em 2015, quando a cardiologista pegou a estrada de Salvador até Olinda para conhecer, com perdão do pleonasmo, pessoalmente, a sobrinha de Pessoa, durante uma edição da Fliporto dedicada ao poeta português, nos 80 anos de sua morte.
Em abril deste ano, foi a vez de Maria da Conceição pegar um avião para reencontrar a amiga Manuela, na apresentação da biografia, em Lisboa de uma mulher que poderia ficar conhecida “apenas” como a sobrinha de Fernando Pessoa, mas que, em cem anos de vida, também soube escrever os seus próprios poemas e a sua história.