“Eu sempre digo que, nas quatro paredes do cárcere, a poesia foi minha quinta parede. Era a forma de sair daquele real cotidiano e participar do imaginário para elaboração das minhas próprias indagações existenciais. Com ela, eu reelaborava a vida saindo daquela coisa mesquinha da pura sobrevivência. Então, para mim, poesia teve uma função libertadora e psicoterápica. Poesia sempre foi uma coisa vital na minha vida e continua sendo. Digo que faço a transmissão simultânea da vida através da poesia.”
Antes de ser uma avaliação, o texto acima é um reconhecimento do que a atividade poética operou na vida do poeta e então preso político caruaruense Marcelo Mário de Melo, autor dessas palavras. Que em maio que vem completa 80 anos de vida. Que neste ano da graça de 2024 vê o golpe civil e militar de 1964 completar 60 anos do seu nascedouro. Golpe que lhe tirou mais de oito anos de liberdade, a partir de 1971, quando foi preso, até 1979, ano da Anistia. Golpe pelo qual ele foi preso duas vezes em virtude de sua ação política e na luta armada, abraçada por uma legião, em sua maior parte de jovens, para tirar do poder o governo militar que se instaurou no país entre 1964 e 1985.
Pernambucano da Capital do Agreste, Marcelo Mário aos nove anos veio morar no Recife, onde viria mais tarde a dar os primeiros passos na luta política, como líder estudantil, depois como militante do Partidão (Partido Comunista Brasileiro), de Luiz Carlos Prestes e Gregório Bezerra, e como guerrilheiro urbano pelo Partido Comunista Revolucionário, o PCBR de Jacob Gorender e Mário Alves. Ou será que essa história pode ter começado mais cedo?
“Eu tinha um ano de idade, minha mãe estava comigo na janela de casa, quando estourou o fim da Segunda Guerra Mundial. O povo saiu festejando pela rua. Aí, um carregador de frete, Biu de Romana, pai do vereador Fernando Safadeza (Fernando Soares), me botou na corcunda e entrou na passeata. Só me acharam duas ou três horas depois. Então, participei da minha primeira passeata com um ano de idade. Pode crer, aquilo me influenciou muito”, assegura o precoce agitador político. Caruaru gerava mais um futuro militante alinhado com as ideias da esquerda. E paria também um poeta, pois episódios como aquela passeata do pós-guerra renderiam matéria-prima para uma perene, densa e prolífica produção literária.
Poesia e luta política sempre estiveram na vida de Marcelo, que começou sua militância aos 17 anos e logo virou líder estudantil. Em 1963, passou a integrar a comissão juvenil do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão. Nesse período, cursou o Método Paulo Freire tornando-se alfabetizador por um dos mais importantes instrumentos políticos do governo socialista de Miguel Arraes.
O golpe de 1964 viria logo em seguida. E viria depois o AI-5, que seria o golpe dentro do golpe e decretaria em todo o país os chamados anos de chumbo. Com o fechamento do regime e a institucionalização da ditadura, uma parte da esquerda, principalmente jovens, estudantes, operários e ex-militares, partiu para a luta armada, estratégia baseada numa correlação de forças irreal e por muitos tida como equivocada. Afinal, do lado contrário aos guerrilheiros urbanos estavam as Forças Armadas, com ajuda externa, sobretudo dos Estados Unidos, montadas numa poderosa máquina de torturar, matar e, máxima crueldade, fazer desaparecer os corpos.
Apesar de haver participado ativamente da luta armada, Marcelo tem dela uma avaliação crítica, embora não haja espaço para arrependimento. Ele achava, e ainda acha, que deveria ter havido uma resistência armada já na época do golpe. “Qual foi o erro fundamental? Porque comunista tem essa de ‘erro fundamental’”, ironiza Marcelo. Até hoje, uma corrente considera que se radicalizou muito, que muito se provocou a direita, que deveria ter havido mais moderação.
Para outros não. “O erro fundamental é que nós mobilizamos massas e veio a reação golpista como sempre, a gente é que tinha que estar preparado para reagir ao golpe. Eu me alinhei a essa avaliação”, reconhece.
Se bem que, de ações armadas, ele pouco participou. Jornalista por profissão, Marcelo sempre era escalado para ações de comunicação, sobressaindo-se no setor de imprensa tanto do PCB quanto, em seguida, do PCBR. Diz só haver participado de duas delas, ocasionalmente. Como sempre andava armado, numa dessas ações precisou substituir um militante que havia faltado. Era para “expropriar” um mimeógrafo americano, moderno, e a ação acabou em tiroteio próximo ao comissariado da Macaxeira, zona norte do Recife. Felizmente, sem mortos ou feridos.
A primeira prisão de Marcelo foi em 1961, praticamente em sua estreia como militante político, dois antes do seu ingresso no Partido Comunista. Jânio Quadros havia renunciado e o cenário estava pronto com as três armas prontas e decididas a dar um golpe. Golpe este que chegou a acontecer em alguns estados, incluindo Pernambuco, onde o governador era Cid Sampaio, representante dos produtores rurais, particularmente dos usineiros. Prisão por ações estudantis, na época, sem consequências traumáticas.
Em 1971, já militando no PCBR e participando ativamente da organização clandestina, Marcelo foi preso pela segunda vez. E foi a partir dessa fase que a poesia entrou na sua vida como suporte à rotina no cárcere. Passou por todas as fases da prisão, desde os interrogatórios e do enfrentamento à tortura, a física e a psicológica. Em seguida, vem o que se chama de “dia a dia cinzento”, quando o preso cai na realidade.
“Quando chega na cadeia, você tem que organizar sua rotina. Eu parti para manter a atividade física. E lia e escrevia regularmente”, diz. Surgiram os primeiros exercícios poéticos, tudo registrado num caderno de anotações junto com os poemas que tinha escrito antes de ser preso e que foram perdidos. “Aí eu tive que relembrar de cabeça tudo que eu tinha escrito. Eu me lembrei de 90% e reelaborei. Passei quatro a cinco meses somente me lembrando dos velhos poemas. E recomecei a escrever. Não somente poesias, mas artigo, nota, reflexão. Escrevia de tudo”, lembra Marcelo, que tinha na prisão companheiros de atividade poética, como Chico de Assis, Chico “Passeata” (Francisco das Chagas Monteiro) e Alberto Vinícius, que escrevia, mas não mostrava.
Numa das greves de fome feitas pelo coletivo em 1978, Marcelo fez a “cobertura poética” ao ato, criando poemas que compuseram um pequeno álbum. Peça editada por ele e rodada na prisão. O colega de prisão Carlos Alberto Soares montou uma serigrafia e João Bosco Rolemberg Cortez, que era pintor, fez os desenhos A improvisada, mas bem-elaborada, publicação foi “contrabandeada” e vendida do lado de fora. Chico de Assis fez a apresentação.
Não havia muito retorno de fora a essas publicações do cárcere. Era quase que uma circulação interna. O tanto que vazava era por conta de amigos e parentes e de um grupo que ganharia importância fundamental para o coletivo de presos políticos: o pessoal do Movimento de Anistia, fundado em 1975, a partir das companheiras, irmãs e primas dos encarcerados.
“Foi a mulherada que começou a luta pela anistia. O Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), do Comitê Brasileiro de Anistia (CBA), foi que pegou a barra mais pesada. Aí tinha a Rejane, que era a mulher de Chico de Assis; Carminha, que era casada comigo, e Rosângela Tenório. Foram elas que levaram essa luta à frente”, atesta Marcelo.
Nesse esforço de apoio e divulgação das atividades, Marcelo se lembra de políticos como Marcos Cunha, Carlos Eduardo Cadoca, Cristina Tavares, Paulo Henrique Maciel, Jarbas Vasconcelos. “Já como deputado estadual, Jarbas deu um grande apoio aos presos políticos, na tribuna da Assembleia Legislativa. Nas greves de fome, ele recebia documentos clandestinos de preso político e lia na íntegra, na tribuna. E isso, num período muito brabo, onde as reações eram as mais violentas”, referenda.
Da greve de fome de 1978 para cá, Marcelo Mário de Melo consolidou sua carreira de militante de múltiplas tarefas com as de escritor, crítico implacável da direita e também da esquerda, poeta inspirado e pensador arguto. Uma agitação cultural perene e a serviço de causas democráticas, independentemente de quem as promova. Desde que sejam forças progressistas. Uma espécie de democrata radical e assíduo.
Leitor voraz, Marcelo cultivou essa relação com a leitura muito cedo, lendo poesia nos livros escolares, ouvindo também os vendedores de folhetos de cordel “cantando o romance” na feira de Caruaru, em paralelo com gibis e livros infantis. O gibi e o cordel marcaram muito o futuro militante. Assim como o Jornal do Commercio, a revista O Cruzeiro e os almanaques editados pelos laboratórios, todo ano distribuídos nas farmácias. “Tendo começado a militância organizada no PCB aos 17 anos, comecei a ler livros políticos, marxismo etc., com uma atração especial por Lenin, que continuei a ler pelo resto da vida”, conta.
A estante literária do jovem era farta: Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Dostoiévski, Tolstoi. Em poesia, Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Oswald de Andrade, Ferreira Gullar, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Zé Limeira, Camões, o sonetista Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa, Maiakovski, Bertolt Brecht. Millôr Fernandes e o Barão de Itararé foram as referências de humorismo, estilo que, na adolescência, incluiu também Leon Eliachar. Nos tempos da ditadura, O Pasquim.
E hoje, o que o poeta lê? “Atualmente, faço releituras de poesia e vivo atrás de poemas sobre poesia, depoimentos de poetas falando e coisas de teoria da poesia. Também gosto de ler memórias políticas, onde vou sublinhando lacunas, torções e contrapontos, com a ideia de escrever um livro em torno disso. Organizo programas de leitura em função de algo que pretenda esclarecer na polêmica ou escrever em artigo ou livro, procurando preencher buracos da minha ignorância. Neste sentido, no ano que passou li todos os livros de Frantz Fanon e vou pegar mais dois sobre ele. Na fila, está a leitura dos marxistas da Escola de Frankfurt, recomendação do mestre Michel Zaidan”, salienta.
Em termos de produção poética e literária, escreve o tempo todo e lança livros com rara regularidade. Instado a apontar suas obras mais importantes, começa pelo inaugural, Os quatro pés da mesa posta, que retrata o cárcere, a tortura, o sofrimento, os anseios e os amores na prisão. Ao citar Os colares e as contas, enfatiza a dimensão política militante, livro mais denso, em termos mais amplos: “A vida de uma pessoa/ é um colar de contas ano a ano/ a vida de um país se conta/ em colares de décadas e séculos”.
Seu Manifesto masculinista, escrito em 1985 e publicado no Rei da Notícia, no Recife, e no O Pasquim, obteve grande repercussão nacional na mídia impressa. Foi objeto de análise no livro A construção da sexualidade feminina, de Jean Claude Naum. O segundo manifesto foi o Manifesto da esquerda vicejante, outra obra de expressiva repercussão.
De militante político e de produtor de arte e cultura, Marcelo Mário tem de tudo em doses generosas. Passando pelo ofício de artesão e marceneiro, que cultiva há décadas. Sem deixar de criar, todo o tempo. Recolhendo restos de metal para fazer bonecos. Aproveitando toras de árvores podadas para criar esculturas femininas como a Arvorina. Guardando chumaços de arame e cascas de árvores para virarem esculturas como a híbrida Vaginólia.
Dos anos 1970 para cá, lançou de tudo. Foram livros diversos, 15, entre poesias, estudos, manifestos, literatura de cordel, participação em antologias poéticas e de humor, gênero que lhe permeia o dia a dia, na arte e na vida. É devoto do Barão de Itararé (Aparício Torelli), que recebia a polícia em casa, apanhava, apanhava e quando o algoz saía, ele ia e colocava uma placa na sala: “Entre sem bater!”.
Sobre essa capacidade criativa, ele define: “Minha produção escrevinhatória no terreno artístico-literário pega poema, histórias em geral, história infantil, histórias no estilo realismo fantástico, miniconto, texto teatral, texto de humor e reflexões na trilha do aforismo”. No que chama de “prosa seca”, cita os seus artigos jornalísticos e livros, a exemplo de perfis parlamentares. Sem contar com 10 a 11 livros publicados e algumas dezenas praticamente prontos, na gaveta. “Além daqueles em projeto e esboço, como um estudo sobre Frei Caneca, um perfil parlamentar de Joaquim Nabuco e uma reflexão crítica sobre os fios e desafios da esquerda socialista, com o foco concentrado nos nós-cegos”, adianta,
Marcelo não poupa a esquerda como alvo do escracho nem impede o próprio PT, seu partido (“embora sem frequência!”) de levar na lata algumas avaliações duras, embora bem-humoradas. Quando lançou o já citado Manifesto da esquerda vicejante, em 2008, batizou algumas tribos que atuam no chamado campo progressista, sobrando para todos e para todo tipo de comportamento: Liberal de Sala VIP; Democrata de Cobertura; Social Democrata de Condomínio Fechado; Comunista Cinco Estrelas; Anarquista de Salão; Agitador de Corredor; Ativista de Sala de Espera; Cacique Jovem Guarda; Pré-candidata a Cacique; Liderança de Outdoor e Transparência com Vidro Fumê. Naquele tempo, tinha o Guerrilheiro de Mesa de Bar, o cara tinha que fazer o grande esforço de juntar meia dúzia no bar. “Agora, não precisa mais você, tem o Franco Atirador de internet, não precisa mais ir para o bar, basta postar.”
Sobre ele, disse o escritor Raimundo Carrero, no livro de MMM Literavida – histórias & casos, de 2019: “(...) não se pode ver nele apenas um poeta, mas um escritor na guerrilha, em permanente luta a destruir aqueles valores antigos, a vicejar nos clássicos e nos consagrados. De arma em punho destrói a palavra, o verso tradicional, os conceitos de ritmo e de tom, batendo forte na pasmaceira literária”.
Está dito.
Marcelo Mário de Melo
Viver poeticamente
é um grande desafio.
É ter poética
mente
nadando no cosmo-rio.
Ovo posto
nave
ave
poe
mar
poetizar.
Mar da vida incandescida
esfinge a desafiar
sintonias dissonâncias
gritos e balbuciar
abismos a céu aberto
véus e venenos no ar.
Quem quiser viver poesia
tem que se deseducar
tirar cerca do caminho
quebrar bitola e altar
sentir o cheiro do nunca
o cio do quebra-mar
beijar boca de vulcão
com sereia mergulhar
cavalgar no Minotauro
e voar sem decolar.
Estou de nariz aceso
de tanto poetizAr.
Esse ar poetizado
não me deixa definhar
enche os pulmões de energia
respirar é poemar.
Poemares ares água
nascimento morte mágoa
língua que lava e enxágua
acaso encanto e espanto.
Me sento e me levanto
na ciranda e na trincheira
falar sério e brincadeira
duas faces da moeda
caminhar e levar queda
tristeza e alegria
tudo que a vida desfia
versos no cotidiano.
Em um pedaço de pano
ver o manto da princesa
poesia posta na mesa
também na ponta da estrela.
Olhar a luz e bebê-la
fazer do sol alimento
ideia e sentimento
caminhando de mãos dadas.
As verdades acabadas
indo pro redemoinho
poesia fazendo ninho
no olho da invenção.
Com a palavra na mão
poeta faz pá e cava
ata desata e desbrava
mina e ourivesaria
a todos ele anuncia
seu produto acabado
diamante lapidado
nosso pão de cada dia
brilho brilhante poesia!