A despedida de Fernando Monteiro

Poeta, romancista, contista, ensaísta, crítico de arte, cineasta e dramaturgo pernambucano morreu aos 75 anos

A notícia do desaparecimento do escritor e cineasta Fernando Monteiro chegou no fim da manhã desta quarta-feira (12), de forma desencontrada. Foi preciso algumas ligações para pessoas próximas, que o conheciam, para que se confirmasse. Era um hábito do poeta, romancista, contista, ensaísta, crítico de arte, dramaturgo, colecionador e realizador pernambucano caminhar pela vizinhança onde morava, pelas ruas dos bairros das Graças e do Espinheiro. Assim ele fez, na terça-feira (11) à noite, relatou a esposa Cristina, para aqueles que conversaram com ela. Saiu para passear e não voltou - era a explicação. No meio da tarde, veio a confirmação de sua morte. Seu corpo foi encontrado nas águas turvas do Rio Capibaribe.

Fernando não estava bem, ultimamente, convivendo com uma depressão. Sintomas da idade avançando, aos 75 anos? Mal-estar com o mundo pós-pandemia? A perda de rumos da América? Aquela América do século 20, que viveu seu apogeu? O descaso das editoras e dos leitores? Pode-se especular sobre esses e outros assuntos. Quem o encontrava nas ruas, nos cafés, cinemas e eventos literários poderia conversar, longamente, sobre esses temas da literatura, do cinema e da política, ouvindo a voz modulada, um pouco mais fraca, de Fernando. Mas, desta vez, Fernando não responderá, nada comentará.

Recifense, nascido a 20 de maio de 1949, Fernando Monteiro formou-se em Ciências Sociais e estudou Cinematografia em Roma. Enquadrado na Geração 65 do Recife, sua estreia na literatura ocorreu aos 24 anos, com a publicação do poema longo Memória do mar sublevado (Editora Universitária). A primeira premiação veio logo em seguida. Em 1975, ganhou o Prêmio Othon Bezerra de Mello, da Academia Pernambucana de Letras, pela peça em dois atos O póstumo. Com o livro de poemas Ecométrica, recebeu o prêmio nacional da UBE/Rio (1984) e despertou interesses de leitores como o futuro prêmio Nobel de Literatura Camilo José Cela. Ele publicaria ainda mais sete livros de poesia, entre os quais A interrogação dos dias (1984), Vi uma foto de Anna Akhmátova (2009, publicado inicialmente em parte no jornal Rascunho, de Curitiba), Mattinata (2012), e Museu da Noite (2018), escrito sob o impacto do incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Fernando Monteiro estreou no romance tardiamente, aos 46 anos, com Aspades, Etc, etc, uma homenagem aos 100 anos do cinema, lançado primeiro em Portugal (1997), bem-recebido pela crítica de lá. O segundo romance foi Cabeça no fundo do entulho, vencedor do Prêmio Bravo! de Literatura, como autor revelação (1999). Em seguida, lançou A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro (2001), O Grau Graumann (2002), As confissões de Lúcio (2006) e O livro de Corintha (2013), com o qual recebeu o Prêmio Pernambuco de Literatura (hoje Prêmio Hermilo Borba Filho), na categoria romance, o último que conquistou. O autor também publicou dois livros de contos, Armada América e Contos estrangeiros de Fernando Monteiro (2017), além do infantojuvenil O nome de um hamster (2017). Um dos mais importantes críticos de arte de sua geração, Fernando Monteiro é autor do livro Brennand (Prêmio pela Funarte, em 1987).

A literatura dividia a paixão, o entusiasmo e a atenção de Fernando Monteiro com o cinema, no qual teve um papel importante em Pernambuco, como realizador - entre os anos 1960 e 1980. Foi documentarista, com uma filmografia com mais de uma dúzia de produções em 25mm, incluindo Visão apocalíptica do radinho de pilha, Brennand: Sumário da Oficina pelo artista, Cultura Marginal Brasileira, Simetria Terrível ou Mecânica de JC, A pedra do sono, entre outros.

Uma de suas obsessões era o arqueólogo, aventureiro e oficial britânico Thomas Edward Lawrence, que ficou famoso como Lawrence da Arábia (vivido no cinema por Peter O’toole na superprodução que levou sete Oscars), e foi autor de Os sete pilares da sabedoria. Fernando dedicou dois ensaios ao herói - T. E. Lawrence: O triunfar da náusea (1987) e T.E. Lawrence: Morte num ano de sombra (2000) e traduziu A matriz, de Lawrence (2005).

Fernando Monteiro foi um colaborador frequente na imprensa, publicando obras inéditas ou escrevendo colaborações - textos, artigos e ensaios - para veículos como a revista Continente, a Pernambuco, o Jornal do Commercio (Recife) e jornal literário Rascunho (Curitiba), entre outros.

Leia matéria sobre Fernando Monteiro na Revista Continente (aqui)

Veja resenha do escritor sobre o premiado O livro de Corintha (aqui)


Repercussão

"Fernando Monteiro foi um intelectual de força extraordinária: cultivava a cultura — em especial a literatura e o cinema — como o espaço das boas batalhas contra a barbárie do mundo, contra o vazio das ideias, contra a bestialidade que grassa entre nós. Defensor dos grandes textos, dos livros e autores clássicos, cultivou uma literatura que jamais fez concessões ao mercado ou a modismos. Seu romance Aspades, ETs etc é uma prova da potência de sua literatura e da seriedade com que ele encarava o ofício de escritor."

Rogério Pereira, escritor, editor do jornal Rascunho (PR), autor de Antes do silêncio e Na escuridão, amanhã, entre outros

"Nos anos 1970, o cinema brasileiro estava cercado pela censura e brutalmente concentrado no Rio e em São Paulo. Tudo parecia confuso, sobretudo as questões de financiamento. No Nordeste, filmar em 35 milímetros — ou seja “profissionalmente” — tornara-se uma impossibilidade quase absoluta. Quem podia, fazia super-8, subvertendo tudo: estilo, modo de produção, distribuição. Foi nesse cenário complicado que Fernando Monteiro decidiu que era possível fazer curtas em 35mm, no Nordeste, enfrentando todos os dragões da maldade. De cara, lançou Visão apocalíptica do radinho de pilha, que revisava, sociologicamente, a comunicação de massa nos grotões do Brasil. Depois dirigiu seu olhar para o Mercado de São José, para a arte rupestre, para a pintura de João Câmara… Sempre filmes ousados na linguagem, mexendo com a própria ideia do que seria o cinema documentário. Nós, que fazíamos nossos curtas experimentais em super-8, nos perguntávamos como Fernando Monteiro conseguia fazer esses curtas em 35mm. Com o tempo descobrimos: ele simplesmente dava um jeito. Creio que alguns anos depois, deve ter cansado e buscou de vez abrigo na literatura. Recentemente, durante a fase em que Fernando Monteiro escrevia o lindo prefácio da minha biografia de Rucker Vieira (Árida luz nordestina, Vacatussa Editora), perguntei-lhe onde andavam os seus filmes, seus originais. Ele me respondeu: “Não sei. Perdidos por aí…” Agora, diante da notícia tão triste da partida de Fernando Monteiro, penso que será preciso, ao menos, recuperar esses filmes corajosos. Mostrá-los aos que não os conhecem. É o mínimo que devemos e podemos fazer."

Paulo Cunha, pesquisador e professor titular aposentado da UFPE, realizador de curtas do Ciclo do Super-8 do Recife

"Difícil expressar em palavras o que sinto ao saber da morte do poeta, escritor e cineasta Fernando Monteiro, uma amizade constante de 43 anos. Tanto que nas mensagens por e-mail nos tratávamos como amigo velho ou velho amigo. Foram tantos os momentos e encontros que poderia iniciar com nossas conversas sobre cinema nos bares da Rua do Hospício, quando me encontrava com ele e José Carlos Targino, outro poeta, para falar dos westerns de John Ford, Howard Hawks, Delmer Daves, Samuel Fuller e John Huston e da obra de Alberto Cavalcanti, nos primeiros anos da década de 1980. Eu tinha 20 anos e Fernando 34, idade de irmão mais novo e irmão mais velho. Desde então, nos falamos e nos encontramos centenas de vezes, não só para falar de cinema, mas também de poesia e livros, de T.E. Lawrence e Joseph Conrad, e de sua própria obra, tanto literária quanto cinematográfica. Fernando não só era um artista culto, mas primordialmente um homem gentil. Encontro sim, encontro não, ela chegava com um envelope e me surpreendia com algum presente: a biografia de Billy Wilder acompanhada de um autógrafo do cineasta; ou um DVD de Era uma Vez na América com um autógrafo de Elizabeth McGovern. No nosso último encontro, em dezembro passado, ele trouxe um livro de entrevistas de Samuel Fuller acompanhado de um autógrafo do cineasta que era nossa paixão mútua. Foram tantas as trocas, que mais recebi do que dei, que Fernando Monteiro ficará eternamente comigo, pois sua presença e gentileza em tantas situações jamais serão esquecidas. Até breve, amigo velho."

Ernesto Barros, jornalista, crítico de cinema, autor de História Ilustrada dos 100 anos do Cinema em Pernambuco, em parceria com Germana Pereira

Leia entrevista de Fernando Monteiro por ocasião dos 20 anos de lançamento de Aspades, ETs, etc (aqui)


Poema de Fernando Monteiro
E para que ser poeta em tempos de penúria? (Fernando Monteiro)

Insepulta jaz a pergunta acima

e bem acima do motivo
supostamente íntimo
visto no verso de um dos últimos poemas de Roberto Piva.

A inquirição, franca, fende a fina porcelana de cera dos ouvidos.

Sabemos da penúria,
porém não queremos saber dela.

Plantamos a flor carnívora,
mas desviamos a vista
quando o jardim do pecado
castiga com isso:
indiferença, acídia, tédio mortal
no peito de avestruzes
(os do estômago forte
para literatura feita
com lixo).