Traduzir palavras, ritmos, ambiguidades, dissonâncias e múltiplas vozes

Pesquisador busca novos registros no versos de Fernando Pessoa, cuja obra ainda tem muito a se descobrir, sendo o poeta um espelho onde tantas identidades se refletem

O colombiano Jerónimo Pizarro vem trabalhando, por décadas, no labirinto-esfinge que é Fernando Pessoa. Com um olhar acurado, o pesquisador transformou o estudo do autor português em um vasto campo de redescoberta, revelando novos textos, contextos e interpretações que ampliam o entendimento de sua obra. 

Nesta entrevista à Revista Pernambuco, afirma não ter preferência por nenhum heterônimo e garante que a busca por novos registros da poesia do lisboeta está longe de ser finalizada. “A obra não publicada de Pessoa é vasta e continua a surpreender.” 

Você se lembra de quando e como descobriu  os textos de Fernando Pessoa? Gostou de imediato? Leu seus textos nessa época em português ou castelhano?
Lembro que descobri Pessoa nos meus anos de universidade. Primeiramente, Alberto Caeiro — e essa complexa obra que é o Livro do Desassossego, que tanto depende da edição lida. Quanto à língua: inicialmente li traduções, para o espanhol e o italiano, porque eram as que tinha mais à mão; mas muito cedo quis lê-lo no original, em português. Vivi mais de uma década em Lisboa e passei meses e meses quase sem sair da sala de consulta dos espólios modernos da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP).

Parece que todo leitor aficionado tende a preferir algum dos muitos heterônimos de Pessoa. É o seu caso ou você gosta de tudo por igual?
Não, não tenho um heterónimo favorito — cada heterónimo (e cada texto) revela algo diferente de Pessoa, algo que me atrai por motivos diversos. Álvaro de Campos fascina-me pelo ímpeto inicial (o das grandes odes) que, a partir de Lisbon revisited, se torna menos expansivo e mais intensivo; Ricardo Reis, pelo aparente equilíbrio clássico em tempos das vanguardas históricas; Alberto Caeiro, pela suposta simplicidade poética, quase metafísica, em tempos de constantes sismos artísticos. Dito isto, posso sentir afinidade especial por certos heterónimos em momentos da vida — mas não creio que seja justo dizer que gosto de “tudo por igual”: algumas partes desafiam-me mais do que outras.

Você pode falar um pouco sobre a obra não publicada de Pessoa? Descobriu alguma coisa ou já se sabe tudo sobre a arca inesgotável?
A obra não publicada de Pessoa é vasta e continua a surpreender. Mesmo com as edições críticas mais recentes, e com o trabalho constante sobre o arquivo, surgem variantes de poemas conhecidos, fragmentos nunca publicados, textos dispersos, esboços e tentativas que ele deixou pela metade. Ninguém sabe tudo — nem pode morar, mesmo que quisesse, dentro da BNP.

Por que é tão difícil encontrar alguém que se atreva a dizer que não gosta da obra de Pessoa?
Talvez porque Pessoa representa não só uma obra literária, mas um mito cultural — para muita gente, Pessoa é um símbolo. Alguns leitores não toleram bem a crítica (não todos; basta pensar em Vasco Graça Moura, por exemplo...), porque ela parece atacar o que amam ou ameaçar uma autoridade literária. Mas é justo e necessário não gostar de certas partes da obra de Pessoa.

O que você sugere sobre os melhores estudos sobre Fernando Pessoa? É possível citar cinco ou seis obras imprescindíveis?
Difícil responder, porque a bibliografia pessoana é imensa e muito variada. Mas talvez eu destacasse: Eduardo Lourenço, Pessoa revisitado; Leyla Perrone-Moisés, Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro; Maria Irene Ramalho, Fernando Pessoa and the Lyric: Disquietude, Rumination, Interruption, Inspiration, Constellation; Approaches to Teaching the Works of Fernando Pessoa; os volumes da Coleção de Ensaio Pessoano (Tinta-da-China), que reúnem ensaios de múltiplas gerações de estudiosos. E acrescentaria ainda Fernando Pessoa Ironista, de Caio Gagliardi; Pessoa Plural — Revista de Estudos Pessoanos (que edito com colegas internacionais); e trabalhos recentes, como os de Rodrigo Xavier, sobre a recepção de Pessoa no Brasil, dando continuidade a outros anteriores de Arnaldo Saraiva.

Pessoa é um dos escritores mais conhecidos e lidos no Planeta. Mas ele alcança vastas camadas de leitores ou apenas alguns privilegiados? Na Europa, seus textos são consumidos por todas as faixas econômicas?
Pessoa é certamente muito lido, citado e estudado. Em países de língua portuguesa, o público com acesso escolar ou universitário geralmente já o conhece; em outros contextos, tudo depende da qualidade das traduções, do preço e da promoção editorial. Na Europa, ele tem leitores além das elites acadêmicas, mas não sei se se pode dizer que é “popular” no sentido de best-seller. Pessoa alcança públicos variados, mas de modo desigual.

O poeta lisboeta pode ser visto como um, nenhum ou 100 mil. Quem é ele para você?
Para mim, Fernando Pessoa é justamente esse “100 mil” — multiplicidade, contradição, fragmento, busca, máscara, heteronimismo. É simultaneamente o que vemos e o que não vemos: um espelho onde tantas identidades se refletem, e algo que nunca se esgota. Cada leitura devolve outro Pessoa. Por isso, ele é mais “100 mil” do que “um” ou “nenhum”, embora nenhuma dessas categorias se exclua completamente.

Atualmente, qual trabalho você vem desenvolvendo? O que tem sido mais difícil nessa busca de se aprofundar na “tradução”

do homem, do poeta, dos heterônimos?
Atualmente, continuo o trabalho de edição crítica e o estudo do arquivo de Pessoa, além de uma mediação editorial — antologias, traduções e projetos de divulgação que ajudem leitores de diferentes línguas e contextos a entrar nesse universo pessoano. A revista Pessoa Plural é um desses espaços. As maiores dificuldades têm sido decidir entre variantes textuais, lidar com manuscritos fragmentários ou ilegíveis e reconstituir as intenções — ou, melhor, as possibilidades — de Pessoa, que tantas vezes mudava os textos, deixava versões preliminares ou abandonava outras. Traduzir Pessoa não é apenas traduzir palavras: é traduzir o ritmo, a ambiguidade, as dissonâncias e as múltiplas vozes.