O espetar de "Cacto na boca"

Em seu novo livro publicado através do Círculo de Poemas, Gianni Gianni escreve a raiva através de poemas aguçados

Abre-se Cacto na boca, pequeno livro de capa mole, em um tom de roxo claro, um padrão das publicaçõesdo Círculo de Poemas, que chegou aos leitores no final de 2024. Talvez a apresentação adocicada engane, mas o gosto que fica na boca depois da leitura dos poemas de Gianni Gianni é de pura acidez.

Composto de poemas que denunciam o racismo através de provocações inteligentes, o novo livro da escritora e editora pernambucana utiliza-se da raiva para construir um trabalho que ecoa muitas vozes. No Recife, o lançamento da obra acontece nesta quinta-feira (30), na Livraria do Jardim. Marcado para às 19h, o evento conta com um bate-papo com a autora mediado pela jornalista e editora Julya Vasconcelos.

Além de escritora, Gianni trabalha como editora na Cepe e à Pernambuco, contou um pouco mais sobre sua inspiração por trás dos curtos, porém vigorosos, poemas presentes em Cacto na boca, além de explicar seu processo de construção literária. Confira a seguir:

Como se deu seu processo de escrita para Cacto na boca?
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Em 2023 eu comecei a escrever alguns poemas e textos em torno dessa imagem, do “cacto na boca”, que é de fato o ponto de partida desse projeto. Me veio essa imagem e com ela eu fui pensando alguns textos que levavam para questões que tinham em comum os gestos de violência, do silenciamento. E aí eu engavetei, estava trabalhando em outras coisas, não era exatamente um projeto. Eu tenho um fluxo de ideias e de abas que se abrem e que eu tento registrar de alguma forma, mas eu não necessariamente sei, de cara, o que eu vou fazer com aquilo, né? De alguma forma, esses lampejos ou se tornam projetos ou se encaixam em algum projeto, enfim, mas é esse tipo de fluxo mais caótico mesmo. Então, eu fiz alguns textos, engavetei numa pasta que chamava Cacto na boca, mas eu não tinha muita ideia do que era aquilo.

Em 2024, Tarso de Melo, que hoje é editor do Círculo de Poemas, me escreveu falando que gostava do meu trabalho e perguntando se eu tinha algum material para apresentar. Meu primeiro pensamento foi: “cara, eu não tenho nada”. Eu não tinha nenhum original pronto, mas era uma oportunidade, então pedi um tempo. Eu voltei nas coisas que eu tinha e percebi que do Cacto na boca eu já tinha mais coisas do que eu lembrava. Eu não lembrava que tinha escrito tantas coisas, são poemas muito curtos, é um projeto muito da ordem da experimentação que costura gêneros variados. Ele saiu na caixinha [do Círculos de Poemas] de novembro, mas fim de ano é um período muito complicado para lançamentos e por isso a gente optou por segurar o lançamento até janeiro.

Você falou dessa experimentação, e o livro começa com uma fotografia de Priscila Buhr, de uma boca e a frase “cacto na boca”, que é o título da sua obra está presente em muitos dos poemas. De onde veio essa coisa do Cacto? Foi realmente uma imagem que apareceu e você quis explorar?
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É engraçado, eu não sei em qual contexto exatamente eu comecei a pensar sobre isso… fiquei pensando agora e de 2021 para 2021, eu fiz uma viagem com um grupo de amigas pra Piranhas, e eu lembro que nas trilhas, o elemento do cacto e as variações de cacto foi uma coisa muito marcante pra gente. Talvez essa viagem, que foi um ano novo bem marcante pra mim, tenha deixado essa imagem meio forte, meio presente. Quando eu comecei a escrever o livro, fui atrás  de uns livros da área de botânica, estava com uma pira de trabalhar até com o léxico, com o científico. Tinha um interesse dessa natureza.

Nada disso ficou no livro, mas no começo, a forma como a imagem ficou pra mim, e tinha muito a ver realmente com um contato com essas espécies, com esse ambiente, com esse ecossistema ali. É um ambiente do sertão, mas também um ambiente muito verde. E aí eu desconfio, embora eu não consiga amarrar o fio disso, que essa troca, com os cactos nessa viagem, de alguma forma ficou pra mim. E a imagem também realmente vem dessa noção fálica. O livro vai falar bastante de questões estruturais de silenciamento, mas é uma imagem também muito erótica.

Tem a ver também com uma relação com o patriarcado mesmo. Eu aproximo essa imagem do cacto à imagem fálica, do sexo oral. De alguma forma foi isso, uma associação de imagens, de imaginar como seria realmente introduzir esse elemento cheio de espinhos numa mucosa que é muito sensível, que é a mucosa da boca. E de que forma, também, as relações de poder entre homens e mulheres se relacionam, o gesto do sexo oral, que envolve se ajoelhar, que envolve relações de passividade, também trazem essas certas imagens.

Priscila é uma fotógrafa que eu admiro muito o trabalho e durante todo o processo de criação do meu livro, como editora também, eu me envolvo muito. Na escolha da imagem, era muito importante que fosse um trabalho de uma mulher racializada, não branca. Acho que quando eu penso no projeto de um livro, e eu acho que isso está no meu trabalho de editora, eu gosto de pensar tudo, gosto de pensar formato, material, imagens, edição. Eu sou, eu brinquei com o pessoal, o tipo de escritora com a qual, enquanto editora, eu detesto trabalhar, que é uma pessoa que quer se meter em tudo [risos].

Como o seu trabalho como editora influenciou na hora de fazer o livro e de realmente colocar ele no mundo?
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Eu penso o livro dentro dessa lógica muito de um objeto, e trabalhar com editoração numa editora que tem uma gráfica própria, que me permite acompanhar um processo de produção e aprender com as pessoas da produção gráfica, na forma como eu penso o livro, o processo do texto é uma etapa. Mas quando você entra num projeto, dentro de uma coleção que já está amarrada, é diferente. Ela tem projeto gráfico, não é como se eu tivesse mil pitacos a dar, mas de fato é isso: a menor intervenção, onde eu puder entrar, seja na escolha de imagens, seja em negociações, hora da edição, de uma espécie de operariado do livro, de oficina mesmo, hoje eu me envolvo muito.

Eu queria perguntar sobre a poesia. Em Cacto na boca você traz diversos exemplos de situações que são muito regidas pelo machismo, pela violência. Como é que é o processo de transformar esses momentos de violência em poesia, que é uma arte que ainda é vista por alguns como algo para ser “belo”?
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Eu acho que, hoje, já está razoavelmente superada essa associação da poesia com o belo. Pessoas que são leitoras de poesias mais regulares, eu acho que não fazem mais ligações tão românticas entre o gênero e algo dessa ordem, do conciliatório, do romântico. Isso, eu acho que desde a literatura moderna, está consolidado e acho que leitores mais assíduos e que acompanham a poesia não fazem tanto essa aproximação. No meu caso, o processo veio muito transfigurado nessa brincadeira com gêneros variados. Acho que existe um conflito entre a minha formação acadêmica de base, que vem se transformando e sendo reformulada. É uma tendência minha ter uma produção meio confessional, que, essa minha formação acadêmica olha um pouco com maus olhos. Mais que uma crise, isso é um construto, isso é quem eu sou, isso é como eu lido com poesia, isso tem a ver com um campo de referências muito variadas.

Você fala de denúncia, acha que o livro bebe um pouco disso? Dessa literatura de denúncia?
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É porque eu não sei bem o que a gente encaixaria numa literatura de denúncia, sabe? Acho que esteticamente isso pode ser construído de muitas formas e não me sinto muito confortável em dizer qual dizer qual que é a literatura que é válida e qual não é.

Eu acho difícil responder isso, porque o que a gente está chamando de literatura de denúncia, sabe? Isso, para mim, é o que eu tento colocar um pouco no livro. Quando a crítica fala em poesia identitária, o que a gente está chamando de poesia identitária, exatamente? O que a gente está chamando de literatura de denúncia? É difícil para mim responder essa pergunta porque é difícil para mim entender o que a gente está colocando nessa categoria. Que categoria é essa? Não é clara para mim. É como criar conceituações que estão valorando uma coisa que você não está dizendo exatamente o que é. Assim, em termos de literatura, eu não sei o que é literatura de denúncia, sabe? Eu não sei o que é poesia identitária. São termos críticos que quando eu escuto, eu não tenho uma concretude.

Se é importante que a literatura denuncie coisas, eu acho que é, assim como acho que é importante que ela faça uma série de outras coisas. Acho que são intervenções no mundo, são diálogos com o mundo. Denunciar é um movimento possível e no mundo que a gente vive, parece um movimento muito necessário. Agora em termos de linguagem, se vai denunciar algo, aí isso é uma outra questão.

Tem um verso que você escreve “mais quero ter coração? eu não quero”. O que significa pra você, pra sua produção poética, essa negação?
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Esse verso comenta um poema antes, que é um poema da Penélope de Pernas Abertas. Esse poema é de uma série de poemas que não está completa em nenhum lugar. Eu acho que saíram quatro poemas na Piaui e são seis.

Então, aqui eu fixei um poema que já saiu numa outra publicação, num outro veículo, num outro tipo de impresso. Cacto na boca tem esse aspecto muito fragmentário, ele tem esse aspecto de até a forma como ele foi feito, é como se tivesse uma coisa meio de coleta. De coleta de cacos, de coisas. É como se esses poemas fossem coletas de espécies, de resquícios que a gente vai recolhendo, ele tem essa coisa meio arqueológica. Esses elementos vão compondo alguma coisa, e esse todo é feito de pedaços de outras coisas.

Então esse é um verso que está no poema e que fala de um movimento, de uma escrita que vem no cacto, que é de fato uma escrita muito movida por raiva. Eu acho que isso é muito marcante na obra de grupos minoritários. Essa pulsão que é um realmente um gesto, uma investida contra uma violência sofrida. Então essa escrita  vem do fígado e não do coração. É um livro meio de quem está farto, sabe?