O leitor comum

Ah, o leitor comum, lendo por prazer e não para corrigir os escritos alheios. Jamais interrompe a leitura com o objetivo de remendar alguma frase imperfeita e precária. Não acha que a criação alheia dependa de julgamento, supõe que o autor deseja apenas comunicar a sua alma.

Circunescrevo Virgínia Wolff.

Divirto-me ao lembrar uma crônica de Paulo Francis, em que revela a impressão de que Dostoiévski seria bem melhor se retirasse de seus livros tudo o que lhe parecia excesso. Fez a experiência de recortar as páginas de Os irmãos Karamazov ou Crime e castigo, não lembro ao certo, e produziu um amontoado de papéis, o que achava digno de ler. O novo livro censurado se revelou ilegível. Dostoiévski, pobre, epiléptico e viciado em jogo, vivia de literatura, os editores lhe pagavam pelo número de palavras escritas, ele precisava escrever muito, às vezes 18 páginas numa única noite. Porém mesmo com todos os excessos, seus romances ocupam lugar marcante na história da narrativa mundial.

Toda literatura, à medida que o tempo passa, tem seus montes de entulho, seus registros de momentos findos e vidas esquecidas contados em tom vacilante e medíocre que se deterioram. Mas ao se entregar aos encantos da leitura de certas tolices você pode se surpreender, ser deveras conquistado pelas relíquias de humanidade que foram banidas do que se considera modelo.

O modelo em que os acadêmicos se formaram e formam estudantes?

Ariano Suassuna me confessou que aprendia muito com os livros considerados ruins pelo index. Às vezes, mais do que com os livros celebrados pela crítica. Para que serve a crítica?, concluía me perguntando. Eu não mudo uma palavra do que escrevo por conta do que falam. Professor universitário de profissão, ele não questionava os acadêmicos togados, esses que se julgam três degraus acima do leitor comum.

Já imaginaram Joyce sendo subtraído de neologismos, palavras e expressões clichês – “arde em febre”, “se enche de desejo” – do Finnegans Wake ou do Ulisses, por sugestão de um ego inflado. E os estragos que fariam em Rosa?

– Cortem a cabeça! Gritam igual à Rainha de Copas de Lewis Carroll.

Um editor disse certa vez que a crítica de Antonio Candido já não tinha o poder de condenar uma obra literária ao esquecimento ou elevá-la ao gosto dos leitores. Valia bem mais o trabalho dos editores e as campanhas de venda. Muitos acadêmicos que escrevem resenhas para jornais e revistas, deixam-se contaminar pelas pautas de costumes, se atrapalham, afirmam no início e negam no fim, não assimilam deslocamentos de tempo das narrativas, terminam se expressando em frases pomposas, com reflexões soando meio fora de órbita.

Indiferente ao bombardeio acadêmico, o autor prefere a opinião de pessoas lendo pelo amor à leitura, lenta e amadoristicamente, e julgando com grande simpatia, ainda que severidade. Pergunta se isso poderá aperfeiçoar a qualidade do seu trabalho e se convence de que sim.

Conversei com estudantes de letras e jornalismo em uma das Sorbonne. Ao final do encontro, os professores me convidaram para uma avaliação. Queixaram-se do desprestígio dos cursos universitários de humanas, frequentado por jovens que não alcançam nota suficiente para medicina, informática ou engenharia, a maior parte deles imigrantes. Também referiram dificuldades em controlar o uso de celulares e o desinteresse pela leitura. Também na França como no Brasil se publicam muitos livros, mas há poucos leitores. Também lá como aqui, os professores leem pouco, queixam-se da falta de tempo. Pode-se esperar deles que escrevam bem e sejam capazes de uma crítica consistente?