Meditação do urubu

Sonho que sou um urubu. É um sonho doloroso, um pesadelo. Em círculos, sobrevoo a Baixa do Sapateiro, região da favela da Maré que guardei na memória desde que, há muitas décadas, eu a visitei como um jovem repórter. Hoje, eu, um velho urubu, retorno à Maré, uma das maiores favelas do Rio. Procuro o que comer. Flutuo sobre os lixões, dou rasantes entre as pilhas de dejetos, vasculho, nada encontro. Meu desespero aumenta. Enquanto busco alimento, minha mente se esvazia. Nenhum pensamento, ou ideia a respeito de meu destino. Limito-me a voar. 

Se meditar é esvaziar a mente, como dizem os místicos, eu, um urubu, medito. De onde veio o urubu que me tornei? Meus leitores já conhecem o modo enfermiço como as ficções me abalam. A cada página, uma ferida se rasga. A cada leitura, uma sequela. Às vezes, me pergunto se deveria abandonar os livros. Mas não sinto esse vínculo fatal como uma doença, e sim, ao contrário, como um alimento. Um sustento pesado, de digestão lenta, que me mantém vivo. Um alimento semelhante ao que os urubus, com seus estômagos de aço, procuram em desespero.

De onde surgiu o urubu que me tornei? Refaço seu caminho. Lendo as narrativas de Turguêniev, deparei-me com alguns versos do poeta russo, do século XIX, Aleksey Koltsov. Quem os cita é Avenir, um poeta tísico, personagem de Turguêniev. Nunca li Koltsov. Recorri a meu velho “Garzantine” italiano, mas nada encontrei sobre ele. O frágil Avenir, que caminha para a morte, se limita a recordar quatro versos da “Medicação do falcão”, poema que Aleksey Koltsov escreveu em 1842. Eles se resumem a duas perguntas: “As asas do falcão/ estão amarradas?/ Seus caminhos estão/ todos cerrados?” 

O falcão peregrino domina os céus da grande Rússia. Arrisco-me a um paralelo perigoso: talvez ele seja tão imponente quanto os urubus que sobrevoam os céus brasileiros. Nem seu nome completo, urubu-rei, livra os urubus do desprezo que lhe destinamos. Ave de rapina, eles têm um destino criminoso. Urubus, pensamos, revolvem a miséria, cortejam a podridão e se lambuzam da morte. Nós os vemos, quase sempre, como feios e nojentos. Reis dos lixões – muitos pensam. Seja como for, eles reinam. 

Arrisco-me: as perguntas expressas em verso por Aleksey Koltsov podem ser dirigidas também aos urubus? Ao contrário dos falcões, urubus não caçam. Preferem se alimentar de animais já mortos, largados entre despejos e entulhos.  Por isso, rondam as periferias, os guetos, os terrenos abandonados. Onde a pobreza e a miséria reinam, eles estão. 

Veja, meu leitor, o estrago que os quatro versos de Koltsov fazem em minha mente. Do topo das montanhas russas, onde o falcão reina, despenquei até a miséria brasileira. Também o urubu, como o falcão, permanece acorrentado a seu destino. Só se alimenta da decomposição, não se livra disso. Atrevo-me aqui a macular os versos de Koltsov e assim os reescrevo: “As asas do urubu estão amarradas? Seus caminhos estão todos cerrados”? Enquanto a miséria persistir, o urubu não se livrará de sua sina. Continuará a se alimentar das sobras e da putrefação. Continuará a vigiar o sofrimento dos que nada têm. Mais brasileiro do que nunca, o urubu se aferra ao lado mais cruel de nossa história.

Urubus não pensam, mas urubus meditam? Em seus voos, guiados unicamente pela fome, ainda assim se conectam à realidade. Seu estômago segrega um ácido mortal. Podem devorar carcaças, carnes apodrecidas, restos de sangue, que nada os afetará. Nada lhes escapa, nem a fome. É sobre ela que, em meu pesadelo, também eu, um urubu miserável, me ponho a meditar.