Na fotografia que o poeta José Inácio Vieira me enviou pelo WhatsApp aparecemos ao lado de Milton Hatoum e Rubens Figueiredo. Estamos num evento literário na cidade de Natal, o ano é 2013, lembro que durante a mesa com Rubens um jornalista do sudeste perguntou se me considero escritor regionalista. Dez anos atrás, São Paulo e Rio de Janeiro ainda eram lugares de desdém, mas agora sinto-me curado dos ventos que sopram de lá.
Rubens doeu-se por mim e quis responder à pergunta. Meu sorriso no retrato é o de quem se diverte com a cara do público. Sentado na primeira fila, Milton autografava livros para leitores indiferentes à nossa conversa. Mais perguntas da plateia, mais respostas: sim, somos todos regionalistas como os escritores russos traduzidos por Rubens.
Encerrada a mesa, decidimos comer tapioca e beber suco de frutas. Seguimos à procura de uma tapiocaria, caminhamos pelas calçadas, olhamos o mar próximo, curtimos o encontro. Milton confessa a vontade de parar com a escrita. Raduan Nassar, que abandonou o hábito bem cedo, vem convencendo-o de que escrever é bom, mas não ter a obrigação de escrever é bem melhor. Não se trata de uma síndrome de Bartleby, mas de algo próximo da preguiça e do cansaço. Fala o quanto acha agradável andar pelas ruas do bairro de Pinheiros, onde mora em São Paulo, sentindo-se livre ao fazer isso. Acho graça da conversa, me concentro na tapioca e sugiro que ele caminhe no parque do Ibirapuera, bem mais silencioso.
Esse encontro fez uma década, Milton não parou de escrever e continua sendo um autor muito lido. Lembrei-me dele porque no mês de dezembro enviei ao meu editor Marcelo Ferroni os originais de um novo romance, Rio sangue. Senti desapego como se me curasse da veleidade de ser escritor, ofício que exerci junto à medicina por cinquenta anos. Trabalhando em enfermarias, emergências e ambulatórios de serviços públicos, atendendo populações interioranas e periféricas, me aproximei de uma realidade distante das academias e festas literárias.
O meu enfado com a escrita não é problema de idade, é aborrecimento com um modelo eficaz de censura que se implantou ao tratarmos de gêneros, raças, religiões e povos. As palavras escorrem dos pensamentos e ao ganharem forma entre dedos e lábios podem ser a nossa perdição, a centelha que desencadeia uma campanha de cancelamentos, nos transformando da noite para o dia em banidos, apócrifos e malditos. A serviço de que poder se instalou o controle? Será uma moda passageira, uma onda fugaz? Guimarães Rosa repetia que viver é perigoso. Escrever tornou-se perigoso. Um fazendeiro afirmava que a vida do vaqueiro é arriscada porque as árvores foram plantadas nos lugares errados. Um descuido... o descuido com uma palavra escrita no lugar errado... de maneira equivocada...
Em Buenos Aires, pediram-me que relatasse uma visão da praça de Maio, depois de ficar a manhã inteira circulando por seus jardins e arredores. O texto seria lido durante o encerramento de um encontro. Na praça histórica acontecia um desfile, anunciado em cartazes como sendo de “mulatas brasileiras”. Escrevi a crônica e, anos depois, resolvi publicá-la em livro, A arte de torrar café. Os revisores sugeriram que eu retirasse a palavra “mulatas”. Por quê? Porque não se usa mais, é politicamente incorreto. O que faço? Estava escrito “mulatas” na publicidade. Bom, isso é lá com os argentinos, no Brasil não pode mais. E as músicas, os livros com mulatas e mulatos? Justifiquei-me em vão.
Por fim acatei o pedido e substituí as “mulatas” por “mulheres brasileiras”, falseando a realidade. Foi o primeiro tropeço.
Bandidos, apócrifos e malditos
Texto: Ronaldo Correia de Brito
05 de Março de 2024