Conheci Jorge Amado aos 12 anos, ouvindo o professor de Religião narrar Seara vermelha. No interior do Nordeste eram comuns narradores ambulantes, pessoas que liam cordéis e romances, contavam filmes e histórias de Trancoso. Essas bibliotecas orais percorriam as casas e, num tempo em que ainda não existiam internet, rádio e TV, tornavam-se meios de transmissão de conhecimento e notícias.
Até a década de 1960 do século XX, as tipografias nordestinas imprimiam milhares de folhetos e almanaques, lidos nas feiras, em casa ou no trabalho. Como na Inglaterra de Shakespeare, poetas populares se apropriavam da literatura produzida, fossem os autores vivos ou mortos, e a reescreviam no formato de cordel. Jorge Amado teve vários romances adaptados aos cordéis.
Durante muitos anos ele quis e soube ser a voz, o sentido e a alegria do Brasil. Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro.
escreveu José Saramago.
Pode-se ler Jorge Amado pelo simples prazer da leitura, igual se lê Dickens, Alexandre Dumas ou Balzac. Seus romances históricos e de costumes não possuem a sociologia e a antropologia aprofundadas de Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Holanda, mas foi graças a ele que boa parte dos leitores do mundo conheceu nosso país. Escrevendo sobre Gabriela, cravo e canela José Paulo Paes chama a atenção para o quanto “o espontâneo talento de narrador testemunhado em Cacau amadurece em arte de mestre na grandeza de um quadro de tessitura por assim dizer polifônica, dos mais bem-logrados de que se pode orgulhar a prosa de ficção do Brasil”.
Vale a pena ler e reler Terras do sem-fim e Gabriela cravo e canela. O primeiro romance remete à luta pela conquista da terra – as florestas de São Jorge dos Ilhéus –, e o segundo aos movimentos migratórios de nordestinos fugindo da seca, aventureiros do Sudeste, libaneses, sírios, turcos e russos, desejosos de enriquecer no eldorado do cacau. Jorge Amado, primeiro do que todos e melhor que ninguém soube registrar a “polifonia das vozes sociais, cada qual com a sua inflexão própria e o seu universo de valores”, mostrando um Brasil que não é feito apenas da mistura de três raças.
Já a salvo do realismo socialista que marcou seus primeiros escritos, em Terras do sem-fim ainda prevalece a luta dos coronéis pela posse de latifúndios: a gente do Coronel Horácio contra os Badarós. Tudo construído em meio a dezenas de pequenas tramas, histórias bem-amarradas ao fio narrativo principal, como a do negro Damião, um matador de tocaia que se desgraça por causa de um encantamento. Identificamos pegadas de realismo mágico em algumas dessas narrativas paralelas, e certo romantismo à José de Alencar.
Passados 80 anos do lançamento de Terras do sem-fim, no Brasil continua a mesma devastação da terra, os assassinatos por encomenda e a falta de lei.
Apesar de todas as correlações possíveis entre os dois romances, em Gabriela o assunto prevalente é o declínio dos coronéis e a ascensão dos exportadores de cacau. As personagens já não estão perdidas em matas encharcadas, temendo cobras, onças e as febres malignas. Uma sociedade civil e urbana contagiada pelos anseios das cidades grandes, o cinema, a música, as viagens e o consumo, de olhos voltados para o Rio de Janeiro e a Europa, já não aceita a moral antiga, a submissão da mulher, o poder sem limites dos coronéis. E é também como se Jorge Amado, liberto da coerção do comunismo, pudesse deixar solta a sensualidade, os anseios feministas e o gosto pelos signos do capitalismo.