Sorteei um exemplar de O processo, de Kafka, entre meus alunos. Dias depois, o ganhador, conhecido como Estopim, me confessou: “A verdade, professor, é que não consegui entrar no livro”. Lembrei-me de minha primeira leitura do romance de Franz Kafka. Eu era jovem e ele me abalou tanto, que, ao contrário, me vi detido em seu interior. Eu me tornei um prisioneiro. Um preso cego, que já não sabia onde pisava. Um segundo Joseph K.
Convidei Estopim para um café e lhe fiz minha confissão. Dias depois dessa primeira leitura atordoante, fui ao centro do Rio em busca de um cartório. Saltei do elevador no andar errado. Para me orientar, me dirigi ao quadro de condôminos. Ao lado da sala 714, estava escrito: “Titorelli, fotógrafo”. Um impulso me levou até a página 170 de O processo, momento em que Joseph K. se dirige à casa do pintor – e não fotógrafo - Titorelli, famoso por seus retratos de juízes.
Não costumo deixar que as coincidências me escapem. A duplicação confirmava minha figura de prisioneiro. Eu precisava ver até onde o paralelo entre os dois Titorelli se sustentava. Toquei a campainha. Uma menina corcunda surgiu e me perguntou: “O que o senhor quer dele”? Menti que precisava de uma fotografia para passaporte. Entrei.
Era um cômodo abafado, sem janelas, com paredes feitas de treliças de madeira. Parecia um armário, e não uma sala. Ao fundo, uma porta estreita levava ao que devia ser o estúdio de Titorelli. “Sei que o senhor é famoso por fotografar juízes”, eu lhe disse. Surpreendeu-se: “Como o senhor sabe disso”? Em vez de responder, perguntei se eu podia tirar o paletó. “Aqui o calor é opressivo. Precisa se habituar”, ele me disse.
Vi uma banqueta e, sem pedir licença, me sentei. Ofereceu-me um copo d’água, que não consegui beber, porque a água era amarela e nojenta. “Estou bem”, agradeci. Titorelli – Mario Titorelli – me perguntou, então, se eu estava pronto para a fotografia. “Ainda não”, respondi. “Antes, preciso respirar.”
Perguntou-me que tipo de fotografia eu desejava. “Uma que seja solene, pois a colocarei em meu gabinete”, menti. Não sei por que disse isso. Não tenho gabinete algum. O mais provável é que pensasse em Joseph K., o personagem de Kafka, em seu escritório de burocrata. Ali percebi que as correntes de O processo se apertavam em torno de minha garganta. Já não podia respirar. “Preciso sair daqui”, consegui dizer. Naquele momento me dei conta da violência inerente às ficções.
“Será rápido”, Titorelli me disse, como se fosse aplicar em mim uma injeção. Um antídoto contra a literatura? Antes fosse. Acendeu luzes ainda mais fortes e eu me senti na borda do Sol. As treliças das paredes, como chamas, se avermelharam. Eu suava. “Não posso desmaiar”, pensei. No desespero, bebi o copo de água suja, que cheirava a querosene.
“Sua fotografia está feita”, Titorelli me comunicou. Nem cheguei a ver a máquina fotográfica. “O senhor tem certeza de que me fotografou”? – ousei perguntar. Olhou-me insultado. Do lado de fora, repetindo o romance, as meninas socavam as treliças de madeira. O estúdio sacolejava. “Elas vão derrubar a porta”, eu o adverti. Debochou de meu medo: “Estou acostumado, elas fazem todo esse escândalo para nada”.
Dizem que também a literatura é para nada. Franz Kafka seria só um morcego checo que a tradição transformou em gênio. Não sei para que serve a literatura. A verdade é que ela me engoliu. Escapei por uma segunda porta, atrás do sofá. Na calçada, lembrei-me de meu aluno Estopim. Pode ser que, depois de ler o livro que lhe dei, ele desista, para sempre, de escrever. Não posso deixar de pensar que talvez ele esteja certo. Nesse caso, o estopim seria eu.