Vendo um filme do armênio Sergei Parajanov, reencontro as palavras do poeta Harutyin Sayatyen, que viveu na milenar Erevã durante o século 18: “O mundo é uma janela. E eu estou cansado desses arcos, quem olha através deles se queima”. Também hoje, em meio às chamas do século XXI, penso nas mil janelas que, descerradas nos celulares, nos atraem e engolem. Espalham-se como um incêndio. Sinto-me cansado desses arcos, que levam a um abismo de imagens, mas não consigo resistir. Na garganta do precipício, há uma força que me puxa. De onde ela vem?
Não é fácil resistir ao grande clarão. Entre lampejos e cintilações, a garganta de luz me imobiliza. A cada página, uma promessa – que não se cumpre. Volto ao poeta armênio. No distante desfiladeiro do tempo, Harutyin Sayatyen não recua. Para afugentar o grande puxão, ele escrevia seus poemas. A poesia se erguia como uma muralha, que detinha o jato luminoso.
Quem primeiro me falou de Harutyin Sayartyen foi João Rath, meu grande mestre. Estávamos em São Paulo a trabalho. No metrô, saltamos na estação Ponte Pequena – depois rebatizada Armênia –, e caminhamos devagar em busca da senhora Abigail Agassian que, conforme avisara ao jornal, tinha uma grave denúncia a fazer. Era um feriado, um dia vazio, resolvemos arriscar.
“Quisera estar dentro dos poemas de Sayatyen”, murmurou Rath, de repente. Perguntei a quem ele se referia. “Você sabia que era na Armênia que se situava o Jardim do Éden”? – ele desconversou. Custei a entender que Sayartyen era um poeta. E que era armênio. Rath tinha a mente em fragmentos – uma mente “em janelas”, hoje posso pensar. Nela, imagens deslizavam, sem qualquer conexão. Seu método era o mosaico. Tinha uma catedral dentro de si.
Não disse ainda que nosso amigo Sérgio Martins, o grande repórter, nos acompanhava. “Dê um tempo para ele se explicar melhor”, Sérgio me sugeriu. Nunca deixei de respeitar suas ponderações. Embora jovem, Sérgio Martins era bastante surdo – conversávamos aos gritos –, mas penso que a deficiência auditiva era compensada pelo instinto. Seus pressentimentos, atributos femininos em um tipo bruto e viril, tomavam a frente do pensamento. Movia-se por presságios – o mundo, para ele, era composto de sinais e de agouros. Tinha uma alma de bailarina.
Chegamos, enfim, à casa de Abigail Agassian, que nos esperava na janela. Já naquele tempo, as janelas se multiplicavam em minha vida. Foi só na viagem de volta ao centro, porém, que Rath rememorou as palavras de Sayartyen. “O mundo é uma janela. E eu estou cansado desses arcos, quem olha através deles se queima.” Dessas palavras, logo esqueci. Pois agora, tanto tempo depois, eu as reencontro no filme de Harutyin Sayatyen. E elas continuam a me queimar.
A denúncia que a senhora Abigail Agassian tinha a fazer era irrelevante. Referia-se a uma briga de vizinhos a respeito de um galinheiro. Não era notícia que prestasse. Desanimados, voltamos à Ponte Pequena. “Pelo menos tomamos um pouco de ar”, Rath avaliou. Respirou fundo, como se estivesse nos Alpes e não em São Paulo, e sugeriu: “Já que estamos aqui, vamos comer uns quibes”. Foi o que fizemos, na pastelaria de um português, perdido entre armênios.
“Precisamos selecionar melhor nossas pistas”, Sérgio Martins nos alertou. Argumentei que, pelo menos, a pista falsa nos levou a um grande poeta. Acho que foi nesse momento, e não no metrô, que Rath relembrou as palavras de Sayatyen. “O mundo é feito de janelas, temos que saltá-las, e não podemos deixar de nos queimar”, ele disse. Talvez prenunciasse a internet, com suas janelas em abismo, que hoje nos mastigam. Acredito na poesia de Sayartyen: ainda acho que conseguirei escapar.