Principal agitador, divulgador e um dos maiores expoentes do Modernismo, o jornalista, poeta, romancista e dramaturgo paulista Oswald de Andrade foi generoso com a posteridade, ao deixar um acervo de 4 mil documentos. São manuscritos, recortes de jornais, cartas e fotografias, entre outros itens, incluindo pelo menos três obras fundamentais para a construção de sua biografia: Um homem sem profissão, Diário confessional e o diário coletivo O perfeito cozinheiro de almas deste mundo.
Com a expertise de quem já publicou um livro com o título de A arte da biografia, e passou a limpo, sem cortes, a vida do ex-presidente Getúlio Vargas (em três volumes), da cantora Maysa, do padre Cícero e do escritor José de Alencar, o jornalista e escritor cearense Lira Neto dedicou quatro anos de trabalho para entregar ao público, neste mês de fevereiro, as 528 páginas do livro Oswald de Andrade: Mau selvagem (Companhia das Letras).
Aos 61 anos, Lira Neto paga um tributo afetivo e intelectual. Na Fortaleza dos anos 1980, onde cursou Filosofia, Letras e Jornalismo, “cometeu” seus primeiros versos – “na maioria, infames” – publicados em folhetos mimeografados ou xerocados. Era, na opinião de amigos, um dos principais nomes da chamada “poesia marginal” de sua geração. “Amava a poesia de Leminski, Chacal e Chico Alvim”, confessou em depoimento, em 2021, ao jornal O Povo, no qual foi repórter especial, editor de cultura e ombudsman. Todos esses poetas, tributários do Modernismo da Semana de 22. “Oswald era uma referência para todos nós, jovens universitários, que teimávamos em fazer literatura fora do circuito das grandes editoras, vendendo poesia à porta dos cinemas, teatros e bares.”, afirma na nota “Este livro”, ao fim da biografia.
O projeto sobre Oswald começou em 2018. Lira Neto estava em Portugal fazendo um doutorado em cultura, história e sociedade na Universidade de Coimbra. A primeira tarefa: reler toda a obra oswaldiana e fazer as anotações. O acervo do poeta e dramaturgo foi ponto de partida e de chegada. Ele segue a cronologia da vida de Oswald, mas, em alguns momentos, é obrigado a antecipar alguma informação, ou avançar a narrativa para, depois, retroceder. Outro recurso é a montagem através da colagem de histórias que correm em paralelo e servem para ilustrar ou trazer à luz determinada passagem da narrativa. Dessa forma, o biógrafo faz um panorama de momentos importantes da vida brasileira, especialmente cultural e política, nas primeiras décadas do século XX, quando o Brasil passava por um processo acelerado de modernização e urbanização, especialmente no Rio de Janeiro, e em São Paulo.
Das 528 páginas, cerca de 400 compõem a biografia propriamente dita. Outras dez são para a bibliografia consultada. As notas – cerca de 2.200, em média, 68 por capítulo – ocupam 56 páginas. Lira Neto fez o trabalho de garimpagem no acervo de Oswald, sob a guarda do Centro de Documentação Alexandre Eulálio, no Instituto de Estudos da Linguagem (Cedae), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O escritor aproveitou o período de pesquisa no Cedae para dar aulas aos estudantes da graduação e pós-graduação, como professor especialista visitante. Esses alunos tiveram o privilégio conhecer, em primeira mão, trechos de Oswald de Andrade: Mau selvagem.
A generosidade do acervo de Oswald caiu como uma dádiva. “Além de centenas de fotografias e da vasta correspondência passiva e ativa [de Oswald], há dezenas de cadernos, cadernetas e notas avulsas, com originais, esboços, versões variadas de um mesmo livro. Oswald escrevia e reescrevia, cortando, acrescentando, lapidando o texto a cada reescrita. Tentei me aproveitar desse material da melhor forma possível, mostrando como o romance experimental, por exemplo, foi concebido com linguagem tradicional, com o texto sendo descontruído, quase como numa decomposição cubista, ao longo do processo criativo”, comenta Lira Neto em entrevista à Pernambuco.
O biógrafo deu especial atenção às cartas, “quase sempre muito reveladoras”, afirma o biógrafo. “Ao contrário de Mário de Andrade, Oswald não tinha o costume de manter uma correspondência mais frequente com amigos escritores. Também não era de guardar cópia das cartas que remetia. Presumo que muito tenha se perdido nos anos de 1930, quando ele viveu um bom período fugindo da polícia, em esconderijos provisórios, perseguido por subversão. Nesse sentido, seu acervo epistolar é muito fragmentado, embora bastante significativo.”
Lira Neto também foi em busca de fontes de informações de terceiros: jornais, documentos pessoais, cartas, livros que ajudassem a compor o retrato da época e, principalmente, pudessem revelar impressões, opiniões e versões de pessoas que conviveram com Oswald – em especial aquelas que foram amigas e com as quais rompeu, para que o leitor pudesse ter o outro lado da história e, caso houvesse. Cada declaração ou informação selecionada foi checada, rechecada e confrontada por ele. Muitas dessas divergências estão explicitadas ao longo do texto ou em comentários do autor.
Oswald de Andrade já havia sido escrutinado em obras escritas pelas professoras Maria Augusta Fonseca (Oswald de Andrade – Biografia, 2007) e Maria Eugênia Boaventura (O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade, 1996. Lira Neto vê com naturalidade o desafio de escrever sobre personagens famosos. “Sempre digo que não existem biografias definitivas. Getúlio Vargas e Padre Cícero, por exemplo, já tinham sido biografados por dezenas de autores. Isso não impediu que eu escrevesse sobre eles. Na verdade, o que justifica uma nova biografia não é, necessariamente, a novidade ou o ineditismo de fontes, mas o olhar do biógrafo sobre a documentação já dada e conhecida. Pesquisar a história significa lançar perguntas do presente ao passado. Penso que meus biografados compartilham todos de uma mesma característica: atraíram amores e ódios, paixões extremadas. Todos foram amados e odiados na mesma medida. É isso que me atrai em um personagem histórico: a capacidade de não serem sujeitos lineares, previsíveis, mas indivíduos imersos em contradições e controvérsias”, ensina o jornalista e escritor.
Oswald foi um homem contraditório e o maior contestador do Modernismo, dado a explosões e brigas. De um humor muitas vezes feroz. A atividade intelectual e sua atribulada vida, seja ela pública (quase sempre ruidosa) ou privada (que terminava nas páginas dos jornais), são uma fonte quase inesgotável para um biógrafo.
“Uma boa biografia não pode fugir das contradições do biografado. As ambivalências do indivíduo são exatamente a matéria-prima do biógrafo. No caso de Oswald, elas são inúmeras. Anticlerical, fazia promessas para Nossa Senhora. Latifundiário, aderiu ao comunismo. Pregava o matriarcado e, ao mesmo tempo, era dado a surtos de ciúmes e de explícito machismo. É surpreendente como ele conciliava qualidades e defeitos diametralmente opostos. Era um gênio, mas também um homem de temperamento difícil. Fazia valer a máxima de perder os amigos para não perder a piada. Seu humor cáustico por vezes assumia contornos de violência gratuita. Era lírico e panfletário, romântico e agressivo, engraçado e brutal”, enumera Lira Neto.
Esses arroubos de temperamento poderiam indicar algum distúrbio de personalidade. A falta, no entanto, de um diagnóstico médico levou o biógrafo a não considerar essa questão. “Impossível afirmar isso, já que não foi diagnosticado à época. Mas penso que o grande ‘transtorno’ de Oswald, digamos assim, era sua sede de viver de modo intenso e efusivo, sem reservas e sem jamais medir as consequências de seus atos com a régua do moralismo”, diz Lira Neto. “Era um libertário radical, com doses consideráveis de egocentrismo.” O jornalista e poeta Augusto Frederico Schmidt, citado na biografia, no entanto, tinha uma opinião formada: “Oswald era um disparate a ser estudado. Quer ser o que não é, vivendo em briga consigo mesmo.”
O mimado Nonê
Nascido em 11 de janeiro de 1890, José Oswald de Souza Andrade era filho único do mineiro José Oswald Nogueira de Andrade, de família de fazendeiros em decadência, e da paraense Inês Henriqueta Inglês de Sousa de Andrade, filha de um desembargador, de família tradicional que desbravou o Pará. Tinham 41 e 35 anos quando se casaram – uma idade avançada para a época. Não demorou muito para Nonê (acrônimo de nosso nenê) vir ao mundo e ter uma infância mimada. Seu pai se tornaria vereador por quatro mandatos em São Paulo e próspero homem de negócios no ramo imobiliário – um de seus investimentos foi a compra da Chácara Água Branca dos Pinheiros e o Sítio Rio Verde, que foram transformados no loteamento, hoje bairro, de Cerqueira César, um dos mais valorizados da capital paulista. Loteou também a área que hoje é o bairro do Cambuci.
Oswald perdeu a mãe Inês quando estava em sua primeira viagem à Europa, em 1912. Era muito jovem também quando morreu o pai, em 1919, e se viu obrigado a tocar os negócios da família, embora tivesse mais preocupado com a sua vocação jornalística do que com a corretagem e a incorporação imobiliárias. Faltava-lhe o talento para administrar a boa herança que recebeu. “Ele se acostumou a não se preocupar com o dia seguinte, gastando fortunas com jantares, viagens e farras homéricas, colecionando obras de arte, charutos, perfumes e vinhos finos. Como consequência, amargou a miséria nos últimos anos de vida. Morreu pobre, doente, rejeitado pelos amigos dos chamados ‘tempos heroicos’ do modernismo”, atesta Lira Neto.
O maior abalo nas finanças ocorreu com a crise na Bolsa de Nova Iorque, que repercutiu no Brasil e derrubou os preços do café. “Sem dúvida, a crise de 1929 alterou a vida de Oswald por completo. Ele vivia dos terrenos deixados pelo pai, que era dono de praticamente toda a zona oeste da capital paulista, hoje a mais nobre da cidade. Com a crise, o mercado imobiliário entrou em declínio. Os terrenos sofreram grande desvalorização. Oswald teve de recorrer a agiotas e a hipotecas para tentar manter o padrão de vida, ostensivo e esbanjador. Depois disso, mergulhou em dívidas, provocadas pelos juros impagáveis”, registra Lira Neto.
Nessa época, Oswald estava casado com Tarsila do Amaral, herdeira de família de cafeicultores, um dos mais atingidos pela crise. “As frequentes viagens a Paris, as reuniões em altas rodas, a carreira literária glamorosa, tudo isso, sustentado pelos negócios com terrenos, veio abaixo”, afirma Lira Neto. A essa altura, seu primeiro filho, também apelidado de Nonê, e a filha de Tarsila, Dulce, que viviam e estudavam na Europa, foram obrigados a retornar ao Brasil. Oswald chegou a abrir um escritório imobiliário com Nonê e vivia para cima e para baixo atrás de dinheiro para resgatar seus papagaios nos bancos e parar os agiotas.
“Quando se viu falido, vivendo ao lado de Pagu, uma militante comunista, Oswald deu uma guinada em sua carreira literária. Tornou-se célebre o ‘antiprefácio’ que escreveu para Serafim Ponte Grande, renegando o modernismo, dizendo-se ‘enojado de tudo’ e declarando ter sido apenas um ‘palhaço da burguesia’. É dessa época O Homem do Povo, jornal político que fundou com Pagu”, Além de assinar a coluna A mulher do povo, Pagu também fazia ilustrações, revelando versatilidade. “A produção literária de Oswald nesse período específico, perseguido pela polícia e acossado pelos credores e agiotas, gerou O rei da vela, peça tão engraçada quanto feroz, na qual criticava a agiotagem e o próprio capitalismo”, recorda Lira Neto,
A professora Maria Eugênia Boaventura considera que os estudos de cunho político-partidário da fase de militância de Oswald eram “enfadonhos e completamente desinteressantes”. Lira Neto reconhece esse problema, mas faz uma ponderação: “De fato, os textos proselitistas de Oswald não estão entre suas produções mais louváveis. Ao mesmo tempo, é dessa mesma época o melhor de seu teatro, que era essencialmente político. Além de O rei da vela, escreveu, por exemplo, O homem e o cavalo, uma peça cheia de altos e baixos, com momentos de grande expressividade simbólica e outros do mais baixo panfletarismo.”
Oswald tinha uma grande capacidade de fazer amigos, na mesma proporção que criava desafetos ou transformava esses amigos em inimigos. Ele gostava do embate em campo aberto. Principal meio de difusão dos escritores e intelectuais da época, os jornais eram sua tribuna e sua trincheira preferidas. Um de seus expedientes favoritos era a carta aberta. Ainda jovem, esgrimia sua pena afiada em O Pirralho, fundado, em 1911, por ele e pelo advogado Dolor de Brito Franco. No início, fustigava os românticos, simbolistas e parnasianos. Em outro flanco, lançava, elogiava e defendia os futuristas, que depois trocariam de pele para modernistas. Com boa parte desses, romperia ou se afastaria – Mário de Andrade, Brecheret, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Ronald de Carvalho, Plinio Salgado, alguns deles – por razões as mais diversas, estéticas ou políticas. Ao ler a biografia de Lira Neto, alguns desses confrontos causam o riso, pois o humor, a ironia, o achincalhe e o escárnio eram armas sempre em punho de ambos os lados.
Com Mário de Andrade as discussões eram mais sérias. Embora se admirassem, a amizade teve altos e baixos, até o rompimento e a recusa final do autor de Macunaíma de reatar com Oswald. “O problema é que, enquanto Mário criticava Oswald em particular, este o maltratava publicamente, em letra de fôrma”, escreve, a certa altura, Lira Neto.
Na Revista de Antropofagia, criada por Oswald e Tarsila para difundir as ideias do Manifesto Antropofágico, a verve de seus articulistas não tinha limites, como deixa claro este trecho de Lira Neto: “‘Não fazemos política literária, intriga, sim!’, anunciou Oswald, em negrito, no terceiro número da ‘segunda dentição’. A Revista de Antropofagia distribuía catiripapos em todas as direções, atacando até mesmo os velhos amigos.” Um artigo no número 12, assinado por Tamandaré (pseudônimo de Oswaldo Costa), zombando da homossexualidade (enrustida) de Mário foi a gota d’água para ele romper em definitivo com Oswald, que deixou o texto ser publicado.
Um dos textos de Oswald mais conhecidos, o “Manifesto Antropófago” foi publicado no primeiro número da Revista de Antropofagia, com bico de pena de Tarsila. “Oswald bebeu em várias fontes para fundar o conceito de antropofagia. Sem dúvida, leu as ideias de Johann Jakob Bachofen para construir a utopia lúdica e anárquica do ‘matriarcado em Pindorama’. O ‘Manifesto Antropófago’ é de 1928, mas ele irá retomar a antropofagia de forma mais aprofundada nos últimos anos de vida, quando começou a estudar filosofia e escreveu a tese ‘A crise da filosofia messiânica’, para disputar uma vaga como professor na Universidade de São Paulo, a USP”, afirma Lira Neto. “Há um detalhe curioso nisso. Oswald percebeu suas lacunas de formação ao entrar em contato com uma nova geração de intelectuais oriundos do mundo universitário, como Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes e Antonio Candido. Decidiu então recuperar o tempo perdido e mergulhar em leituras mais aprofundadas.”
No fim da vida, falido e quase sem amigos a quem recorrer, Oswald planejou lançar uma pentalogia, Marco Zero. Era sua aposta em recuperar, pelo menos em parte, o prestígio perdido. “Marco Zero foi uma tentativa final de Oswald se fazer levar a sério pelos críticos contemporâneos, que o tinham na conta de mero iconoclasta, autor de obra pouco consistente e verdadeiramente ‘literária’. Como autor experimental, nunca tinha sido um sucesso de vendas. Ele esperava mudar essa situação escrevendo uma prosa supostamente mais legível por parte do grande público, construindo uma espécie de ‘romance mural’ sobre a sociedade paulista, inspirado nos grandes pintores muralistas como Diego Rivera. Não alcançou seu objetivo. Mesmo tentando escrever de modo menos experimentalista, era um autor ousado demais para se transformar em best-seller”, diz Lira Neto. De Marco Zero, publicaria apenas dois volumes – A revolução melancólica (1943) e Chão (1945).
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